Quando ir ao mercado ficou tão caro?

Kaio Torres Dias
O Veterano
Published in
7 min readOct 22, 2020

Uma análise da inflação brasileira atual

Fonte: Alexa Fotos

Nos últimos meses, o país se viu em uma impactante crise econômica, com quedas dramáticas no PIB e aumento na taxa de desemprego. No entanto, enquanto a renda dos brasileiros caía, o preço de diversos bens subiu de maneira expressiva, em um movimento que deixou um grande número de consumidores prejudicados. Nesse sentido, é preciso entender como essa subida ocorreu, o porquê de ela existir e o que se pode esperar dela.

A natureza da inflação

A variação nos preços está ocorrendo de forma muito heterogênea este ano, com alguns produtos tendo aumentos inéditos em seus valores enquanto outros desvalorizam de forma igualmente notável, mas a tendência geral é de alta. Essa situação é verificada tanto pelo IPCA (que mede a mudança nos preços dos bens e serviços direcionados ao consumidor), quanto pelo IGP-M (que considera a inflação relacionada a ambos, produtor e consumidor). Dessa forma, é necessário analisar como a mudança nos valores ocorreu em cada área da economia.

Variação percentual acumulada em 12 meses dos índices (Fonte: FGV)

A variação acumulada em 12 meses do IGP-M atingiu seu maior valor em 17 anos (17,94%). Esse número, por si só, representa um aumento considerável nos gastos de muitos consumidores, tendo em vista que várias empresas (como universidades e planos de saúde) o utilizam como indexador para o reajuste de seus preços, bem como o setor imobiliário no reajuste dos valores dos aluguéis. Assim, as despesas com diversos serviços devem registrar um aumento notável nos próximos meses, o que pode levar a muitas renegociações de contratos.

Nesse sentido, o IPA (Índice de Preços ao Produtor Amplo) se mostra o principal responsável pela alta do IGP-M, com uma variação de mais de 25% nos últimos meses. Entre os crescimentos mais expressivos relacionados a esse índice estão os do preço da soja (63%), do milho (69%) e dos minérios (80%), o que representa um aumento relevante nos custos de produção de muitas companhias nacionais. Tal alteração não apenas se reflete nos lucros dos produtores (que podem crescer ou diminuir, a depender dos insumos utilizados e dos produtos fornecidos), mas também nas despesas de vários consumidores.

Nesse contexto, ainda que o crescimento do IPCA seja pequeno em relação ao do IGP-M (3,14% nos últimos 12 meses), determinados bens têm ficado consideravelmente mais caros para a população, algo sentido com maior intensidade pelas camadas mais pobres da sociedade. Os crescimentos mais notáveis nos preços foram no setor de alimentos, com destaque para o arroz, o feijão e o óleo de soja, enquanto as quedas mais impressionantes estão no setor de serviços, principalmente entre as passagens aéreas. Essas tendências resultaram em uma inflação com um impacto mais duro para as famílias mais pobres, cuja cesta de produtos sofreu uma inflação de 4,31% segundo o IPEA, em comparação ao aumento de 1,81% registrado para as mais ricas.

Fonte: IPEA

A origem da inflação

A mudança no preço dos bens pode ter muitas causas, a maioria relacionada a variações na oferta e na demanda por eles. No caso do Brasil atual, as origens da inflação se encontram tanto no cenário nacional quanto no internacional, sendo todas, em alguma medida, ligadas à pandemia global. Desse modo, pode-se identificar três causadores principais para as tendências inflacionárias presentes: as mudanças na oferta de trabalho e no consumo dos trabalhadores brasileiros, o crescimento da demanda global por commodities e a desvalorização do real.

Em primeiro lugar, o contexto de isolamento social alterou de forma notável a participação dos brasileiros na economia. Por um lado, o número de desempregados e de pedidos de falência cresceu nesse período, o que provocou uma redução significativa na produção nacional. Por outro, o fato de as pessoas permanecerem um tempo maior em suas casas representou uma mudança importante nos hábitos de consumo dos brasileiros. Por exemplo, eles passaram a gastar uma fração muito maior de sua renda com alimentos comprados em mercados, e uma menor com restaurantes, roupas e viagens.

Essas mudanças tiveram efeitos relevantes nos valores de diversos bens e serviços produzidos nacionalmente. O menor número de empregados e de empresas na indústria reduziu a oferta de diversos produtos nacionais, tornando estes escassos e, portanto, mais caros. Enquanto isso, o deslocamento do consumo dos cidadãos aumentou a demanda por determinados setores do mercado, fazendo os preços desses subirem, e reduziu aquela por outros, obrigando-os a diminuir os valores cobrados. Essas tendências explicam, em parte, porque determinados bens encareceram enquanto outros baratearam.

Em segundo lugar, por conta de diversos fatores climáticos, sanitários e de outras naturezas, nos últimos meses, a demanda internacional por alimentos e commodities cresceu, ao passo que a oferta deles caiu. Por exemplo, a China aumentou a importação de soja para recompor seus estoques, o México elevou a de arroz devido à queda de barreiras sanitárias e a Tailândia reduziu suas exportações de açúcar por causa de uma seca. Assim, eventos como esses provocaram o crescimento dos preços de diversos produtos agrícolas no mercado internacional, dentro do qual o Brasil está inserido.

Tal efeito é notável principalmente nos custos de produção das empresas e nas mesas dos brasileiros. No primeiro caso, os produtos usados como insumos na indústria ficam mais caros (o que é refletido no IPA). No segundo, os alimentos produzidos nacionalmente encarecem pois deve ser igualmente lucrativo para o produtor vender para o mercado interno ou negociar com o externo, no qual o preço está elevado. Dessa forma, o ambiente internacional afeta de maneira eminente a inflação nacional.

Em terceiro lugar, a desvalorização do real frente ao dólar foi, talvez, o fator mais significativo para o aumento dos preços na economia brasileira. Tal perda de valor ocorreu por diversos motivos, entre os quais destacam-se a tendência dos investidores de tirar dinheiro de países emergentes quando o mundo está avesso ao risco (o que ocorre durante uma crise global) e a incerteza quanto à capacidade do governo brasileiro de arcar com seus gastos após o período de pandemia (o risco fiscal). Em suma, investidores ao redor do mundo estão com medo de colocar seu dinheiro no Brasil e essa hesitação se reflete no enfraquecimento da moeda nacional.

Tal tendência é causadora da inflação por diversos caminhos. Por um lado, ela encarece as importações, aumentando o valor dos produtos importados (insumos ou bens finais). Por outro, ela torna mais lucrativa a produção para exportação no Brasil, o que leva as empresas a ofertarem menos para o mercado nacional, tornando alguns produtos escassos e, portanto, mais caros (um efeito particularmente grave no caso dos bens cujos estoques são limitados no país, como o arroz). Desse modo, ao aumentar os preços tanto de produtos nacionais quanto importados, sejam eles vendidos no varejo ou no atacado, a desvalorização do real se mostra um grande motor para a inflação.

O futuro da inflação

Naturalmente, não existem previsões certas ou específicas quanto a como ou quando a tendência inflacionária elevada irá acabar. No entanto, a perspectiva para essa situação é otimista: muitos economistas acreditam que o ritmo atual de aumento dos preços pode ser algo temporário. Nesse sentido, a recuperação econômica e a atuação governamental terão papel fundamental na retomada da inflação a níveis pré-pandemia.

Segundo o economista André Braz, o mercado interno ainda não recuperou espaços perdidos durante a crise. Isso significa que existe lugar para mais trabalhadores retomarem suas atividades econômicas e, assim, aumentarem a oferta de bens e serviços em território nacional. Desse modo, com a distância entre a oferta e a demanda brasileiras reduzida, a pressão inflacionária sobre os preços deve diminuir.

Ademais, entre as políticas recentes do governo brasileiro para reduzir o preço dos alimentos destaca-se a suspensão dos impostos de importação do arroz. Essa ação, no entanto, não aparenta ser efetiva, tendo em vista que a maior parte do arroz importado pelo Brasil tem origem em países do Mercosul (que já possuem tarifa nula) e que o produto asiático deve demorar a chegar, já que novos contratos terão que ser firmados. Desse modo, uma forma de combate mais incisiva à inflação se encontra em outro front: o do risco fiscal.

A redução da incerteza em relação à capacidade do governo brasileiro de pagar suas contas é essencial para a valorização da moeda nacional e, portanto, para o controle da tendência inflacionária. Nesse sentido, a elaboração de um orçamento governamental para 2021 que respeite o teto de gastos e o avanço de reformas há muito prometidas pelo governo — a administrativa e a tributária — são de grande importância para a retomada da confiança internacional no Brasil. Assim, a responsabilidade fiscal se mostra uma das melhores formas de o governo ajudar a manter a inflação controlada nesse momento.

Referências:

MOTA, Camilla. “Não é só o arroz: os preços de alimentos vão continuar subindo nos próximos meses?”. BBC Brasil, 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54097305.

MOTA, Camilla. “Por que o real é a moeda que mais se desvalorizou em 2020”. BBC Brasil, 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54549137.

MARTINS, Raphael. “Inflação sobe em meio à crise; o que está provocando a alta dos preços?”. G1, 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/12/inflacao-sobe-em-meio-a-crise-o-que-esta-provocando-a-alta-dos-precos.ghtml.

G1. “Inflação dos mais pobres acelera a 0,89% em setembro com salto de 10,64% do arroz e feijão”. G1, 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/06/inflacao-para-familias-de-baixa-renda-acelera-a-089percent-em-setembro.ghtml.

FGV. “IGP-M avança 4,34% em setembro”. FGV, 2020. Disponível em: https://portal.fgv.br/noticias/igp-m-setembro-2020.

AGENDA BRASIL. “Inflação de famílias pobres é três vezes maior do que a dos mais ricos”. CNN Brasil, 2020. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/10/14/inflacao-de-familias-pobres-e-tres-vezes-maior-do-que-a-dos-mais-ricos.

--

--