Série América Latina | Alento Latino

Gabriel Gambini
O Veterano
Published in
6 min readOct 20, 2021

A história cultural latino-americana com o resgate da cultura autóctone e o sincretismo com influências europeias.

Photo by L’odyssée Belle on Unsplash

“O homem esquece que é um morto que conversa com outros mortos” Jorge Luis Borges.

De acordo com apenas uma das infinitas histórias nativas da América Latina, os deuses maias fizeram várias tentativas de criar a mulher e o homem. A justificativa para quimera destas criaturas que somos era o enorme tédio que estas divindades experimentavam, de maneira que gostariam de ter com quem conversar. Nesta alquimia divina, determinou-se, enfim, que seríamos feitos de milho. Não transgênico, ou químico — claro. O milho natural, multicolorido, o qual abarca todas as cores do existir deste ente criado pelos deuses. Até esta forma final, entretanto, os deuses pensaram em nos fazer de madeira. A versão em madeira ficou perfeita quanto à estética, mas havia um enorme inconveniente: não respiravam, e como não respiravam, não tinham palavras para dizer, porque de suas bocas não saia nada. A tradução para o espanhol desta falta de respiração constatada pelos deuses maias é aliento. Eduardo Galeano, ao refletir sobre este conto, constatou: “Se não respiram, não têm tristeza. Para ter fôlego é preciso ter tristeza”. Para ter fôlego, é preciso ter desalento. Esta reflexão sobre uma das expressões genuínas da cultura latino-americana explicita, sinteticamente, seu momento atual e sua construção. A sobreposição entre o afago e a dor da grande pátria da diversidade humana. Um reino de contradições e da diversidade, no qual se misturam, e às vezes brigam, todas as cores, cheiros e dores do mundo.

Em que momento se fala, devidamente, sobre a edificação de uma cultura latino-americana? Ao que se sabe, começa em um descomeço. Os autoproclamados arautos da modernidade e da razão fizeram e fazem do sangue latino descartável em frascos de vidro e pó que se diluem junto à fauna e flora nativas. Em que pese, o documento civilizatório latino é um documento de barbárie. No romance O Velho que Lia Romances de Amor (1989), de Luis Sepúlvida, descreve a efetiva instauração da contemporaneidade em terras cujo Sol era intenso, os habitantes pagãos e a riqueza abundante: “António José Bolívar ocupava-se de as manter à distância, enquanto os colonos devastavam a floresta construindo a obra prima do homem civilizado: o deserto.” Sobre o deserto, foram construídos mais desertos, as dunas sempre enterrando a si próprias. Sobre o sangue jorrado à esmo, mais do mesmo. Todo este amálgama cultural marcado por uma desigualdade socioeconômica que lhe define, por excelência, fez surgir no início do século XX uma expressão artística essencialmente crítica, que duvidava da própria identidade e, em simultâneo, a fazia aparecer ao mundo: enquanto dúvida, enquanto questionamento.

Um ímpeto de renovação e atualização de valores cujo intuito era fazer surgir uma cultura genuína, não mais sob os moldes do espelho europeu-aristocrático, a América Latina, enfim, pode estabelecer e criar padrões e linhas autóctones de estilo em todos os campos da expressão artística. Embora ainda influenciados pelos padrões canônicos europeus, a ideia era de empenho em redefinir sua identidade cultural e de seus respectivos países a partir da recuperação de elementos genuinamente latinos. Outrossim, ainda que combinados com padrões do Velho Continente, a ideia era produzir e atribuir significados próprios frente aos produzidos àqueles que eram então os únicos centros emissores de cultura. Definida pela própria vanguarda artística como a “Gaia Barbárie”, grandes nomes da América Latina se tornaram expoentes ao mundo, tais quais Alejandro Xul Solar, Jorge Luis Borges, Oswald de Andrade, Tarcila do Amaral, Frida Khalo, José Clemente Orozco, entre tantos outros, cuja repercussão e influência ecoam, ainda, na produção contemporânea.

A vanguarda artística latino-americana se utilizou, sobretudo, de uma singular forma de expressão: o surrealismo. Muito embora a corrente surrealista tenha como origem o grande período de desencanto na Europa no ínterim entre as duas Guerras Mundiais (1918–1939), especificamente na década de 1920, os membros da “Gaia Barbárie” utilizaram-se destes “anos loucos” no que diz respeito à arte de Dali, Arp, Tanguy, entre outros, para sua própria confecção e remodelá-la à sua própria maneira. O nome mais celebrado da pintura, ainda atualmente, talvez, seja Frida Khalo. Nascida no México, a pintora tornou-se famosa pelos inúmeros retratos e autorretratos, cuja intenção era explorar questões de gênero, classe e raça na sociedade mexicana. Segundo Frida Khalo, a predileção pelo autorretrato se dava por um simples motivo: “Pinto a mim mesmo porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor. ” Em uma de suas obras mais famosas, As Duas Fridas (1939), há a representação de duas “Fridas” sentadas, em um banco, conectadas uma à outra por uma única artéria. Uma das “Fridas” usa um traje tehuana, tradicionalmente mexicano. Enquanto a outra Frida veste um pomposo vestido branco, tradicionalmente europeu. Esta específica obra se torna um símbolo do sincretismo cultural o qual a cultura latina atravessava: Frida Khalo, enquanto indivíduo, sob influência de suas raízes mexicanas e da cultura europeia.

Alejandro Xul Solar, pintor argentino, é conhecido como o “gênio místico”. Suas obras retratavam imagens fantásticas, em que pese o termo como algo próximo à metafísica em estado puro, ou, no caso, às pinceladas. Jorge Luis Borges definiu Xul Solar como “um dos acontecimentos mais singulares de nossa época, suas pinturas são documentos do mundo ultraterreno, do mundo metafísico em que os deuses tomam as formas da imaginação que os sonha”. Seu potencial criativo para representar o que é indescritível, ou para acessar um imaginário incognoscível, está representado na obra Muros y Escaleras (1944). Xul Solar condensa a grande desolação e solidão de indivíduos perdidos nas recém nascidas grandes metrópoles latinas, sobre as quais os sujeitos se perdem em labirintos de construção da modernidade e da razão. O que resta é uma espécie de esvaziamento do espírito e perda de si mesmo.

Um dos maiores expoentes da literatura latino-americana, conhecido por outros escritores de sua época como “el brujo”, Jorge Luis Borges foi poeta, escritor, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino. Tantos os predicados atribuídos à figura de Borges fazem jus à alcunha de bruxo. Um indivíduo que, para além do colossal e inominável nível cultural que obtinha, possuía a perspicácia de olhar o que não se vê, e a capacidade inigualável de transcrevê-la. Apesar de também romancista e poeta, Borges se destacou pelo magnânimo poder criativo de seus contos. No Livro de Areia (1975), o conto O Outro narra o encontro do escritor argentino consigo mesmo. Borges, de maneira maestral, descreve um diálogo no qual ele próprio, mais velho e mais sábio, tenta dar conselhos para si mesmo: para um jovem Borges do passado. Uma ideação que parece já ter sido pensada, mesmo que alguns instantes, por todas as almas humanas. El brujo capta estes momentos impossíveis com criatividade ímpar e habilidade descritiva inigualável. Em Os Jardins de Veredas que se Bifurcam, um dos textos do livro Ficções (1941), trata de uma narrativa quase infinita. Borges conduz a narrativa permeada pela noção de um tempo não-linear, e desafia Newton e Schopenhauer através da personagem Ts’ui Pen, o idealizador de um jardim infinito, no qual o tempo transcorre de maneira distinta ao que concebe a filosofia tradicional de Immanuel Kant em suas condições a priori de apreensão do conhecimento.

Todo este arcabouço surrealista, cujo principal nome é Jorge Luis Borges, fez nascer o realismo fantástico, tendo como principal expoente o prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Marquéz em seus Cem Anos de Solidão (1967). O romance se passa na cidade de Macondo e a ascensão e queda de seus fundadores, os Buendía. A narrativa conta com diversas personagens que desafiam a visão simples dos romances tradicionais: Melquíades, um cigano andarilho cuja idade supera duzentos anos, trazia as novidades para a pacata cidade e prometia a alquimia e a mágica para os habitantes. Amaranta, uma menina resgatada pelo clã Buendía que conseguia nutrir-se, apenas, de terra. O patriarca, José Arcádio Buendía, fundador da cidade de Macondo e que morreu louco, escutando as vozes de quem já matou. Tantas são as personagens e tamanhas são suas complexidades que, em algumas edições, o livro traz consigo a árvore genealógica, com o intuito de que o leitor não se perca na família Buendía. Trata-se de uma obra infinita em sua autenticidade e riqueza, e um dos maiores da literatura mundial.

Nunca será exaustivo ou analítico o suficiente falar sobre a riquíssima expressão artística latino-americana, haja vista tantos intelectuais, pintores e poetas. Não há qualquer lista que possa ser feita sem que haja nome em falta, texto em falta, poesia em falta. Neste largo universo próprio que somos, América Latina, foram e serão produzidas o que há de excelência na demonstração de potência do espírito humano. Que surjam outros Vinícius de Moraes, outros Drummond, outros Nerudas, outros Rubén Darío. Denunciem o mal, e bendigam o bem. Afinal, alegria é a melhor coisa que existe.

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