Série FGVs | As Bolsas de Estudo na FGV

A importância e as limitações das bolsas de estudo na FGV.

Gabriel Martins Mendes
O Veterano
10 min readJun 2, 2021

--

Imagem disponível em Wikimedia Commons

No texto anterior da Série FGVs, “A questão da diversidade na FGV”, Kaio Torres tratou da falta de inclusão social de diversas minorias no âmbito da educação superior, especialmente na Fundação Getulio Vargas (FGV). Como sou bolsista do CDMC (entrarei em detalhes mais adiante, mas, resumidamente, minha bolsa se deve a premiações em olimpíadas de matemática), resolvi concentrar a abordagem deste texto em uma importante ferramenta na redução dessas desigualdades: as bolsas de estudos; bem como sua importância e, principalmente, suas limitações.

A disponibilização de bolsas de estudos por parte das intuições da rede privada de ensino é extremamente importante para viabilizar o acesso de indivíduos de determinados grupos sociais que, geralmente por limitações financeiras, tiveram (e ainda têm) menos oportunidades. Fazendo uma analogia com uma corrida, não seria justo compararmos apenas quem chegou primeiro à linha de chegada, uma vez que que os competidores partiram de diferentes posições e têm diferentes distâncias até o objetivo em comum, representado pela linha de chegada. Dessa forma, os primeiros a chegar — os ganhadores da corrida — não necessariamente serão os mais rápidos. Por mais que esse exemplo não tenha uma relação direta com o ambiente universitário, ele é extremamente útil para começarmos a compreender os impactos das desigualdades. Para não me estender muito nesse assunto e cumprir com o objetivo deste texto, encerro o tópico com a seguinte reflexão: até que ponto é válido falar de meritocracia?

Voltando às bolsas de estudo, seu maior impacto se dá pela viabilização do ingresso na FGV de algumas das pessoas que chegaram à linha de chegada (ou seja, foram aprovadas no vestibular), mas que não têm condições de pagar uma mensalidade tão elevada e, consequentemente, não poderiam estudar na Fundação em condições “normais”. Sem dúvida alguma, a FGV seria muito menos diversa se não fosse pela existência das bolsas de estudo, entretanto isso não significa que o problema tenha sido resolvido por completo.

Composição quanto ao tipo de bolsa de estudo (ou a inexistência dela) dos corpos discentes da FGV do Rio e da FGV de São Paulo

Como pode ser observado na imagem acima, a FGV do Rio possui percentualmente quase o dobro de bolsistas do que a FGV de São Paulo e, por isso, é possível observar uma diferença considerável na comparação da faixa de renda familiar entre as FGVs. Como demonstrado no gráfico abaixo, a FGV do Rio é relativamente mais acessível do que a de São Paulo:

Composição quanto à renda familiar dos corpos discentes da FGV Rio e da FGV SP

Por outro lado, o fato de a FGV do Rio possuir um percentual de bolsistas consideravelmente maior do que a FGV de São Paulo não necessariamente resulta em ganhos de diversidade em relação à etnia, à orientação sexual e ao gênero dos alunos. Como podemos observar nos gráficos abaixo, esses ganhos de diversidade, quando existem, não passam de 3% do total de estudantes. Essa falta de diversidade (além da renda) pode ser atribuída à forma como as bolsas são distribuídas, ainda avaliando os primeiros a cruzarem a linha de chegada, ao invés de analisar todo o trajeto da corrida e valorizar os desafios superados ao longo do processo, por meio de cartas de recomendação e entrevistas — como muitas Universidades estadunidenses costumam fazer, por exemplo.

Composição étnica dos corpos discentes da FGV Rio e da FGV SP
Composição quanto à orientação sexual dos corpos discentes da FGV Rio e da FGV SP
Composição quanto ao gênero dos corpos discentes da FGV Rio e da FGV SP

Outro aspecto a ser considerado, quando falamos das bolsas de estudo, é o retorno que os bolsistas dão à FGV. Afinal, as bolsas só são ofertadas à medida que oferecem uma relação custo-benefício favorável a ambos os envolvidos. Segundo o artigo “Modelo de Previsão da Influência das Desigualdades Socioeconômicas no Desempenho Acadêmico”, de Nícola Fini, na média os bolsistas têm um Coeficiente de Rendimento (CR, ou seja, a média das notas das disciplinas cursadas ao longo da graduação) aproximadamente 0,7 pontos acima dos não-bolsistas, em uma relação ceteris paribus, ou seja, todo o mais é constante.

É importante ressaltar que as principais exigências feitas pela FGV para a manutenção das bolsas de estudo são: CR igual ou superior a 7 ou 8 — corroborando a tese de que o CR médio das faculdades privadas tende a aumentar com a inserção de bolsistas nesse ecossistema — e a conclusão do curso no tempo previsto na grade curricular — 4 ou 5 anos, a depender do curso. Ambas as exigências incentivam o aumento do CR médio nos cursos da FGV, que por sua vez costuma ser utilizado como termômetro interno da qualidade do ensino. Apesar disso, nem tudo são flores e alguns dos efeitos gerados a partir dessa cobrança são perversos, minando e até mesmo reduzindo esses resultados.

No decorrer do estudo, Nícola Fini constatou que quanto maior a pressão na qual o estudante trabalha pior seu desempenho. Segundo ele, “quanto menos ele [o aluno] se sente prejudicado por essas pressões externas, melhor é o seu desempenho a uma média de 0,1526 [de acréscimo ao CR] dentro da escala Likert”. Esse estudo também contou com relatos de diversos alunos, e me chamou a atenção o fato de que a maioria das reclamações em relação à pressão foram feitas por bolsistas. A seguir reporto dois dos relatos que mais me chamaram atenção:

“Eu consegui manter minha média padronizada alta se comparada com alunos que não eram bolsistas. Mas é isso: a minha saúde mental foi completamente danificada por causa disso, a minha saúde física… nos meus 2 primeiros anos eu engordei 20 quilos. É bizarro… e eu passava muito pouco tempo com a minha família.” C, Adm. Pública

Se a situação já não parece muito boa, ela se mostra ainda mais complicada em alguns casos:

“A única chance da minha família ascender socialmente, economicamente, intelectualmente, é através de mim e eu me vejo muito responsável. Eu me sobrecarreguei tanto pensando nisso nesse semestre que eu surtei.” I, Adm. Pública

“O que me difere do resto da GV é que eu tenho uma dívida de 300.000 reais para pagar, que é a [bolsa] restituível, e eu acho que por isso afeta meu desempenho no sentido: eu vou ter que ser melhor que todo mundo da sala porque eu preciso pagar essa dívida de qualquer jeito senão meu pai vai se f**** por causa disso.” R, Adm. Pública

Outro fantasma que assola os bolsistas são as expectativas que são despejadas. Um estereótipo muito comum é o de que os bolsistas são todos gênios, especialmente os do CDMC (Centro para o Desenvolvimento da Matemática e Ciências), como podemos observar no seguinte relato:

“Eu olhava para eles e pensava: ‘nossa, gênios… nunca vou conseguir chegar nesse nível’ […] também é uma questão de ter nota maior, ter CR maior, quem tem mais medalhas.” KK, Matemática

Elementos como ambiente extremamente competitivo, muita pressão, muitas exigências e expectativas descomunais, quando combinados, possuem um potencial explosivo muito grande, e seus efeitos podem ser devastadores:

“Eu fico absolutamente estressado, porque na minha cabeça só está martelando uma coisa: bolsa, bolsa, bolsa, bolsa! Não existe outra coisa que martele na minha cabeça em semana de prova, senão bolsa. Às vezes eu estou olhando um texto e eu me desconcentro, tipo “eu não sei nada dessa matéria, eu vou reprovar e vou perder a minha bolsa. […] Ativa uma linha de ansiedade que ela não acaba, ela só vai se enrolando ali.” UU, Direito.

Além dos danos à saúde mental, essas expectativas também contribuem para o desenvolvimento da Síndrome do Impostor, caracterizada pela falta de reconhecimento das próprias realizações como resultado de capacidade e esforço próprios. Praticamente todos os Bolsistas do CDMC, até então, só estudaram em escolas públicas e — mesmo tendo sido aprovados no vestibular — temos deficiências em algumas matérias que para o resto da FGV são tidas como básicas, como um bom domínio do inglês, e temos ainda que lidar com tantas cobranças. De acordo com Nícola Fini:

“A marginalização também gera nos alunos pertencentes a minorias sociais (não necessariamente bolsistas) sentimentos relacionáveis à síndrome do impostor. Em diversas ocasiões, alunos relataram não se sentirem capazes de tirarem notas boas (principalmente matérias relacionadas a exatas ou que tivessem muito material em inglês), ou temiam que fossem ridicularizados por possíveis participações na aula ou até perguntas. Os relatos indicam também que esses sentimentos de ser um impostor são agravados por climas de competição dentro de sala de aula e também por machismo.”

Na EPGE, é tão enraizada a crença de que os alunos são fluentes em inglês que no início deste período a coordenação decidiu ofertar algumas disciplinas obrigatórias apenas em inglês. Não houve consulta alguma a respeito do nível de inglês dos alunos, e tampouco o aviso dessa mudança foi feito com antecedência. Apenas depois de alguns meses de diversas reclamações que algumas medidas foram tomadas para ajudar os alunos a contornarem essas problemáticas envolvendo o idioma, e conseguirem finalmente acompanhar o conteúdo.

Já na EBAPE, as desigualdades quanto à renda são mais evidentes. A grade atual conta com 1 semestre de intercâmbio obrigatório, que pode ser feito no exterior ou em outra escola da própria FGV. Como a EBAPE não oferece uma espécie de “bolsa intercâmbio”, os alunos de alta renda cumprem o intercâmbio fora do país, enquanto os bolsistas ficam no Rio de Janeiro:

“Isso é muito frustrante, porque eu sei que eu não vou conseguir fazer intercâmbio para a Europa, para o Canadá, para os Estados Unidos, para lugar nenhum […] Eu vou atravessar a rua e vou entrar na escola de Direito […] ok, é ótimo […], mas o ideal é que eu pudesse colocar no meu currículo que eu conheci outro país. Não tem ajuda de custo para isso.” SS, Administração

Esse ponto é extremamente importante para pensarmos a vivência de uma situação análoga à de “um peixe fora d’água”. O curso de Administração é o com menos bolsistas dentre os da FGV Rio (como podemos ver no gráfico abaixo) e, aliado a essa questão do intercâmbio, potencializa esse sentimento de “um peixe fora d’água”. Em seu artigo, Nícola mostrou que quanto mais o aluno concorda com a frase “me sinto um ‘peixe fora d’água’ dentro da FGV”, seu desempenho [medido pelo CR] piora a uma média de 0,1110 dentro da escala Likert.

Composição quanto ao tipo de bolsa de estudo (ou a inexistência dela) dos corpos discentes dos cursos da FGV Rio

Como pode ser observado no gráfico acima, a distribuição das bolsas provenientes do CDMC (em roxo) pelos 6 cursos da FGV Rio é bastante heterogênea e pode ser explicada pelo perfil dos alunos selecionados. Os bolsistas do CDMC são escolhidos de uma forma peculiar: o CDMC seleciona um determinado número de medalhistas de destaque na OBMEP — geralmente medalhistas de ouro e/ou prata, com uma certa recorrência nas premiações -, convida-os para prestar o vestibular e, se aprovados, independentemente da posição, estes alunos ingressam na FGV como bolsistas. Ou seja, o critério fundamental para a concessão dessas bolsas é a premiação na OBMEP, uma Olimpíada de Matemática. Por isso, há a tendência natural de que o perfil dos bolsistas do CDMC seja voltado aos cursos mais ligados à área de exatas, como Matemática Aplicada, Ciência de Dados e Economia.

Como um número significativo dos alunos da FGV Rio são bolsistas do CDMC, quanto “mais de exatas” for o curso, maior é o número de bolsistas em comparação com os demais cursos. Além disso, quase toda a diferença entre as bolsas da FGV do Rio e da FGV de São Paulo pode ser explicada pela falta de um equivalente ao CDMC na FGV de São Paulo. Isso explica, em partes, uma distribuição mais homogênea das bolsas entre os diferentes cursos de graduação da FGV de São Paulo, como pode ser observado no gráfico abaixo:

Composição quanto ao tipo de bolsa de estudo (ou a inexistência dela) dos corpos discentes da FGV de São Paulo

Além do elevado número de bolsistas, o CDMC possui um acompanhamento muito próximo dos alunos e fornece um suporte incrível. Para a adoção do ensino remoto, por exemplo, eles emprestaram os equipamentos necessários àqueles bolsistas que não os tinham e não teriam condições de acompanhar as aulas on-line.

Recapitulando alguns pontos importantes que foram abordados ao longo do texto: as bolsas de estudos têm diversos pontos positivos, dentre eles o favorecimento do acesso dos menos favorecidos financeiramente à FGV, uma instituição privada de ensino e de referência, e a contribuição para o aumento da qualidade do ensino (CR médio) da instituição. No entanto, as bolsas não têm um impacto muito significativo em termos de ganhos de diversidade, pois em última instância os bolsistas também passaram pelo funil do vestibular (linha de chegada). Ademais, as cobranças decorrentes das bolsas de estudos funcionam tanto como incentivos quanto como fontes de pressão e estresse, interferindo no desempenho dos bolsistas de forma ambígua. Por fim, o grande diferencial da FGV do Rio em relação à FGV de São Paulo quanto às bolsas de estudo ocorre por causa do CDMC, que gera uma grande distorção na distribuição dos bolsistas entre diferentes cursos. Assim sendo, podemos perceber que existe um espaço muito grande para avançarmos nos debates relativos às bolsas de estudo e nos meios para que estas maximizem os benefícios possíveis para todos os envolvidos.

Os gráficos e as estatísticas do corpo discente da FGV apresentados neste texto foram baseados nos resultados do PIBIC “Modelo de previsão da influência das desigualdades socioeconômicas no desempenho acadêmico” de Nícola Victor Augusto Batista de Gouveia Fini, que contou com uma amostra de 271 alunos na FGV Rio e 625 na FGV SP. Desta forma, podem haver divergências entre os valores apresentados e a realidade, o que mostra a importância de a própria FGV realizar um censo com todos os estudantes para que se compreenda melhor a verdadeira dimensão da questão da diversidade na instituição.

--

--