Série FGVs | Saúde mental no ambiente acadêmico: estresse, depressão, ansiedade e competitividade

O Veterano
O Veterano
Published in
9 min readJun 30, 2021

Por Gabriel Linares e Lilian Kingston.

Imagem disponível em Unplash

No curto período de tempo desde a chegada do novo coronavírus ao Brasil até o momento presente, 18 milhões de pessoas contraíram o coronavírus, em uma nação com 211 milhões de habitantes. Isso é, em dezesseis meses, 8,5% da população foi infectada. Se esse nível de propagação do vírus fosse mantido durante quatro anos, 25% dos brasileiros iriam contrair o vírus — uma em cada quatro das pessoas que você conhece estaria sujeita a enfrentar a doença pandêmica. Felizmente, graças ao desenvolvimento de vacinas, fruto de um esforço admirável da comunidade científica internacional, o cenário descrito não deve suceder.

No entanto, uma outra doença epidêmica, com números de vítimas tão alarmantes quanto a pandemia da COVID-19, ainda não tem solução: não foi desenvolvida vacina nenhuma contra a epidemia da ansiedade estudantil. Segundo pesquisa da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil), 63% dos estudantes de universidades federais brasileiras enfrentaram, em algum momento dos anos universitários, ansiedade severa. Assim, comparando a ansiedade estudantil com a COVID-19 em percentagem de “infectados”, par a par, faz-se evidente quão alarmantes são as estatísticas de ansiedade entre estudantes.

Em verdade, a lista de distúrbios psicológicos acometendo alunos de faculdade vai muito além da ansiedade. Ainda segundo a pesquisa da Andifes, pelo menos 83% dos estudantes de universidades federais brasileiras sofreram com alguma questão de saúde psicológica nos anos universitários. De acordo com a Best Colleges, uma empresa de orientação estudantil, os principais distúrbios psicológicos enfrentados nas universidades são ansiedade, depressão, suicidio, vícios e distúrbios alimentares. Frente à gravidade da situação, uma pergunta não quer calar: por quê?

Nesse ponto, vale mencionar que a saúde psicológica tem um caráter extremamente multifatorial. Segundo a psicóloga da PRAE (Pró-reitoria de Assuntos Estudantis), o estado psicológico de cada estudante advém de acontecimentos de vida, da carga familiar e das condições de vida de um modo geral. Tendo isso em vista, cabe indicar o porquê da alta incidência de doenças psicológicas particularmente entre estudantes universitários: o estresse acadêmico acaba sendo difícil de manejar para muitos estudantes, assim como a competitividade e a individualidade, muito presentes na esfera acadêmica.

Notadamente, tanto o estresse quanto a competitividade e a individualidade são marcos não somente da vivência universitária, mas da vida da sociedade contemporânea como um todo. De fato, esse desgaste generalizado da população apresenta-se como um dos temas centrais abordados por Byung-Chul Han em “Sociedade do Cansaço”. De certa forma, o estresse estudantil apresenta-se como precursor do estresse advindo das responsabilidades da vida adulta e, nessa linha, a competitividade e individualidade acadêmicas, como antecessoras da competitividade e individualidade do mundo corporativo. Com isso em vista, vale traçar um paralelo entre a maneira como as organizações tratam da saúde psicológica dos empregados e a forma como o corpo docente trata da sanidade dos estudantes.

Cada vez mais, corporações têm prezado pelo cuidado com a saúde psicológica dos empregados, devido à evidente correlação entre sanidade mental e desempenho profissional. Dentre os esforços corporativos nesse sentido, destaca-se o aprimoramento de programas de assistência a funcionários. Paralelamente, em relação à sanidade estudantil, o claro nexo entre saúde psicológica e desempenho acadêmico vem estimulando universidades a estabelecerem programas de apoio aos estudantes.

Saúde mental na FGV

No caso da FGV, a experiência de assistência psicológica parece divergir muito quando se compara o serviço prestado para os alunos do Rio de Janeiro, o NAP (Núcleo de Apoio Pedagógico), com o disponível para os universitários de São Paulo, o Pró-Saúde.

O Núcleo de Apoio Pedagógico

Em particular, a FGV Rio estende aos estudantes o apoio do Núcleo de Apoio Pedagógico (NAP). Segundo o portal da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, o NAP “é um setor especializado em atendimento pedagógico e psicopedagógico aos alunos, apoio didático-pedagógico aos professores e coordenadores dos cursos de graduação das Escolas da FGV no Rio de Janeiro”. Os projetos do departamento — desde as sessões de acolhida de novos estudantes às oficinas e palestras promovidas — demonstram a proatividade das especialistas empregadas pela universidade, no intuito de promover a saúde psicopedagógica dos estudantes.

De fato, raramente passa-se mais de uma quinzena sem que os alunos da FGV Rio sejam contactados pelo Núcleo de Apoio Psicopedagógico, tamanha a proatividade do núcleo. Desde postagens no Instagram com anúncios de palestras e rodas de conversa até mensagens pelo Whatsapp com desejos de “Boas provas!” aos estudantes, são muitas as formas encontradas pelos membros do NAP de fazer a presença do núcleo rotineira na vida acadêmica dos alunos da FGV Rio.

Entretanto, os estudantes têm mais preocupações que simplesmente as acadêmicas. Como mencionada pela psicóloga da PRAE (Pró-reitoria de Assuntos Estudantis), a saúde psicológica tem um caráter extremamente multifatorial e, tendo isso em vista, a realidade acadêmica não compreende a totalidade do que está por trás da sanidade mental dos universitários. Enquanto o NAP é excelente em auxiliar alunos nos quesitos acadêmicos influentes no bem estar mental dos estudantes, ainda falta um departamento na universidade que preste apoio psicológico mais amplo — um núcleo não somente voltado para prestar auxílio aos universitários para lidarem melhor com o estresse e obrigações acadêmicas, mas direcionado ao apoio psicológico completo, abrangendo as diversas esferas da vida de cada um.

Como afirmação da carência sentida por alunos de uma estrutura da universidade voltada para os aspectos mais amplos de saúde psicológica, relatos de estudantes da FGV Rio entrevistados para o projeto de iniciação científica de Nicola Fini, um estudante da FGV SP, corroboram a visão de limitação do escopo da ação do Núcleo de Apoio Pedagógico. Nos grupos focais de estudantes abordados, o autor da pesquisa percebeu opiniões mistas sobre o NAP provenientes dos alunos: enquanto parte dos universitários atestou a eficácia dos métodos do NAP, o núcleo foi paralelamente criticado por outra parcela de alunos. Principalmente, as críticas são advindas das limitações do núcleo, que tem enfoque em aspectos pedagógicos e menor atuação na preservação da saúde psicológica para além da abordagem da psicopedagogia.

Nesse sentido, um estudante de Direito da FGV Rio comentou: “Qualquer problema, ele [o NAP] resolve assim: ‘Vamos fazer um plano de estudos.’” Em reconhecimento do escopo limitado do NAP, um estudante de Administração da FGV Rio relatou: “Eles até me ajudaram um pouco nisso [em organizar os horários de estudos], mas é mais isso […] não é exatamente um apoio psicológico, saúde mental. Elas tentam muito, elas são muito legais, mas não fica 100%.”

No entanto, vale lembrar que o Núcleo de Apoio Pedagógico não propõe ser um departamento de amplo apoio psicológico aos alunos. De fato, “o setor desenvolve estratégias de acolhimento aos alunos e por meio de uma escuta qualificada busca compreender suas demandas para atuar criando melhores condições pedagógicas que visam a favorecer o desenvolvimento intelectual e emocional desses jovens nessa nova etapa da vida, tentando, desta forma, prevenir o fracasso acadêmico”, segundo a EBAPE. De fato, o NAP cumpre muito ativamente com sua função de apoio psicopedagógico, com os diversos planejamentos de estudos que são montados para estudantes e orientações de bem estar psicológico estudantil e de administração do tempo de estudos publicadas na página do núcleo. Como departamento de apoio psicopedagógico, especificamente, o NAP funciona com êxito.

O Pró-Saúde

No caso do Pró-Saúde, serviço fornecido gratuitamente para os alunos da EAESP (Escola de Administração de Empresas de São Paulo), o programa divide-se basicamente em duas frentes. A primeira busca entregar um suporte em ações relacionadas tanto às Entidades Estudantis — formadas exclusivamente por estudantes — quanto a outros serviços da escola. Já no caso da segunda abordagem, a qual será foco do presente texto, busca-se oferecer um atendimento individual ao estudante, buscando auxiliá-lo na conciliação de suas múltiplas demandas e questões vivenciadas nesta etapa da vida. Entretanto, embora a existência desse tipo serviço já seja uma questão a ser comemorada, após entrevistarmos alguns estudantes de São Paulo (os quais preferiram não ser identificados), entende-se que é justa a contestação de sua eficácia e abrangência.

Os atendimentos individuais giram em torno de 6 sessões e, para que ocorram, é necessário haver uma primeira entrevista com um profissional da FGV, o qual fará um reconhecimento geral e superficial dos motivos que levaram a pessoa até a requisição do serviço. E os problemas já começam aí. Segundo os estudantes entrevistados, havia uma expectativa de que tal etapa seria apenas para que fosse explicado o funcionamento do programa, bem como os benefícios, direitos e possibilidades concedidos aos usuários, e não que fosse antes necessário haver uma espécie de “justificativa plausível” para o seu uso.

Não obstante, o fato de tal profissional ser vinculado à FGV faz com que muitos estudantes já tenham algum tipo de relação com ele, o que acaba dificultando todo o processo. Segundo um dos entrevistados, “toda conversa foi muito fria, não teve em qualquer momento alguma empatia ou um sentimento de acolhimento. Nem mesmo um sorriso. Eu me senti realmente constrangido naquele momento falando da minha vida para um professor que eu nem sequer conversava habitualmente.” O estudante acabou desistindo do atendimento ao longo do processo.

Mesmo com essa barreira, identificada em todos com quem falamos, alguns ainda conseguem vencer esse processo desgastante a usar o serviço. Segundo aqueles que conseguiram participar, o serviço em si é muito bom, oferecendo psicólogos de ponta e, em alguns casos, até um atendimento psiquiátrico. No entanto, a limitação das sessões, o que até certo ponto é compreensível, devido a logística e fatores financeiros, torna o serviço ineficaz para muitos pacientes, os quais podem necessitar de mais sessões para uma conclusão satisfatória, isto é, um estágio de superação da problemática apresentada, bem como uma estabilização do quadro.

No protocolo padrão do Pró-Saúde, após o número de sessões atingir seu limite, o paciente será encaminhado para um outro psicólogo ou, se desejar, manter o atendimento com o mesmo, mas sem o benefício da gratuidade. De acordo com um dos relatos coletados, tal tratamento acaba por prejudicar e dificultar a relação entre o aluno e o profissional, pois há uma pressão para que os resultados sejam atingidos rapidamente.

Para além dessa questão, a perda da gratuidade é algo que afeta profundamente os bolsistas da Fundação, em especial aqueles em situação sócio-econômica mais frágil, incapazes de arcar com os custos (em geral consideravelmente altos) de um atendimento psicológico. Segundo um dos entrevistados, “As consultas em si eram bem legais pra dar uma aliviada, então durante o uso foi muito bom. Só que é aquilo, pra pegar intimidade demora né, e quando isso de fato ocorreu meio que tinha atingido o limite de sessões, na verdade até ultrapassado. […] no final o psicólogo que me atendia até tentou saber como era minha situação financeira pra continuar pagando, mas como sou bolsista não tinha como.”

Sendo assim, entende-se que o programa, embora se trate de um atendimento individual, não consegue flexibilizar sua atuação segundo o contexto específico de cada aluno. Além disso, a predisposição ao “abandono” do aluno após atingir-se o limite das sessões só mostra o quanto tal política não consegue cumprir seu real objetivo de acolhimento. “No fim, eu menti para o psiquiatra sobre ter conseguido encaminhamento, porque não aguentei mais a cobrança constante. Entendo que é o trabalho dele, mas, para quem não tem grana, não tem muito o que fazer. Atendimento público é muito difícil de conseguir.”

Por fim, como se tudo isso não bastasse, hoje o programa conta com uma divulgação muito limitada, o que acarreta em um menor conhecimento acerca dele. Em geral, os alunos acabam o conhecendo através de algumas divulgações feitas para os calouros no início do semestre. No entanto, após esse instante, apenas em alguns momentos muito pontuais em canais de baixa adesão do alunato a difusão do benefício é feita, infelizmente.

Embora o NAP e o Pró-Saúde contem com críticas de limitação e ineficácia provindas dos estudantes, a simples existência de tais departamentos de apoio psicológico na FGV demonstra o reconhecimento, por parte da Fundação, do elo entre saúde mental e desempenho acadêmico. De fato, pesquisas acadêmicas sobre esse vínculo encontram menores taxas de abandono do curso e maiores taxas de conclusão da graduação entre estudantes com apoio de profissionais de Psicologia e Psiquiatria, de forma a verificar que o suporte psicológico contribui positivamente para a performance acadêmica. Frente à evidente correlação, é imprescindível que as universidades brasileiras ainda desprovidas de departamentos de apoio psicológico aos alunos implementem programas deste viés o quanto antes possível. Afinal, não somente a possibilidade de melhora no desempenho acadêmico dos universitários está em jogo, mas também o bem estar mental da população brasileira.

Nota:

Em especial, vale destacar uma estatística da pesquisa da Andifes: 11% dos estudantes universitários apresentaram, em algum ponto, a ideação suicida. Por favor, se você — ou alguém que você conhecer — estiver enfrentando esse pesar, entre em contato com o telefone 188, do CVV (Centro de Valorização da Vida). Lembre-se: você não está sozinho.

--

--

O Veterano
O Veterano

O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.