Série Modernidades | Percursos da Modernidade Contemporânea

Modernidade, Modernização e Desigualdade Simbólica

Maria Julia
O Veterano
11 min readAug 4, 2021

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Fonte: unsplash

É curioso pensar uma história dos conceitos… Penso nisso porque, ao contrário do que afirma o senso comum, que há neutralidade ou imparcialidade nas ideias/conceitos, essas têm materialidade na medida em que orientam nossas concepções, percepções, interpretações sociais, quando fazem sentido coletivamente (LÉVI-STRAUSS, Claude;1975) e definem, portanto, a forma como lemos e nos colocamos no mundo.

Sobre isso, Karl Marx, em seu texto “Introdução à Filosofia do Direito de Hegel”, pontua que “o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade”[1] e, também, que “a teoria também se torna força material quando se apodera das massas” [2]e, para o autor, essa dimensão de massa pode ser traduzida teoricamente, com certa tranquilidade, pela ideia de gênero humano.

Nesse sentido, analisar conceitos e, principalmente, a história dos conceitos, a partir de uma abordagem sociológica/antropológica, buscando suas possíveis raízes sociais ou, ao menos, problematizando seus percursos sócio-políticos, não só tem logicidade como apresenta-se como enorme oportunidade para desvelar possíveis construções hegemônicas (GRAMSCI, A. 1999)[3] historicamente elaboradas, mascaradas por uma fachada de normalidade/normalização/naturalização.

Essa tarefa, de pensar a respeito das questões históricas e sociológicas, entendendo essa parcialidade, se torna ainda mais urgente quando escoramo-nos na teoria antropológica de Claude-Lévi Strauss; afirmando que, em primeiro lugar, a cultura seria o sistema simbólico através do qual interpretamos o mundo e, portanto, como nos colocamos nele e, em segundo lugar, que há “muito mais culturas humanas do que raças humanas, pois que enquanto umas se contam por milhares, as outras contam-se pelas unidades”[4]; ou seja, o antropólogo afirma que cada homem é uma cultura[5].

Modernidade:

Se Marx nos afirma que os conceitos ganham materialidade na medida em que são apropriados, interpretados e orientam as ações humanas na realidade, Strauss afirma que cada ser humano se apropria desses conceitos e, portanto, interage com a realidade de formas distintas e dando sentido coletivo a esse agir. Ainda que cada ser humano esteja exposto a experiências culturais subjetivas, há uma cultura hegemônica, ou seja, uma concepção de mundo que se impõe; e molda aqueles indivíduos inseridos na teia social que o capitalismo ocidental tece. Essa cultura hegemônica é historicamente disputada, numa contenda sem fim, mas é elaborada fundamentalmente por uma classe social, a burguesia, e surge da relação intrínseca entre os conceitos de modernidade e modernização.

Buscarei, nessa parte do texto, elucidar o leitor acerca dessa relação histórica construída a partir das revoluções burguesas e do processo de industrialização do século XIX; ou seja, como a burguesia constrói toda uma cultura hegemônica atrelada à ideia de modernidade-modernização e, ao mesmo tempo, tentarei mostrar que essa modernidade não é universal, mas tem um locus social específico e foi absorvida por outras regiões e empurradas para essas, como verdades e salvação.

Para isso, me aproprio da literatura do século XIX no intuito de contrapor, criticamente, uma outra concepção acerca desse mesmo processo. Isso porque há um ethos burguês que se constrói atrelado à ideia de modernidade e, como vimos, cumprindo um papel social específico. Então, depreende-se que discutir modernidade é discutir, também, interpretação, ou melhor, interpretações (LÉVI-STRAUSS, Claude; 1975) subjetivas e, ao mesmo tempo, coletivas, na complexa trama social e seus nós. O que seria, então, ser moderno? O que seria uma sociedade moderna? Como essa sociedade se estrutura?

Reflete-se, portanto, uma Europa do século XIX fundamentalmente, porque é nesse período que, após as chamadas revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII — Revolução Puritana, Gloriosa, Francesa, o processo de Independência das 13 colônias etc. -, que esta burguesia que acabara de tomar o Estado começa a reorganizar, a partir de seu ethos moderno, a sociedade ocidental[7] (HOBSBAWM, E. 2015). Partindo, portanto, de uma perspectiva histórica, mas principalmente de uma história eurocêntrica, conseguimos retratar como falar de modernidade, mas, principalmente, das disputas em torno do sentido hegemônico da modernidade, é falar de nós mesmos, já que nos referimos às características morais, sociais e afetivas que definem nosso comportamento ou cultura.

O referido século XIX nos é tão emblemático, e principalmente sua segunda metade, porque tem início, na Europa, e posteriormente em outras regiões do mundo, um intenso processo de transformações socioeconômicas, políticas e culturais orientadas, mormente, pelo capitalismo industrial e, além disso, por mudanças no ordenamento político-cultural europeu; como o esfacelamento definitivo das estruturas da Monarquia Absolutista e todo o seu capital simbólico. Sintoma disso é a própria alteração arquitetônica das grandes cidades do velho continente; Paris e Londres, por exemplo, veem-se transformadas, de antigos centros políticos facilmente identificados às grandes estruturas arquitetônicas do poder real, em novos edifícios, na medida em que novas perspectivas e experiências tomam de assalto a vida pública nesses centros urbanos.

É nesse ambiente em que Estados nacionais como França, Alemanha e Inglaterra, predominantemente rurais, caminham a passos largos rumo à urbanização; sentida pelos homens e mulheres daquele tempo e ainda que, muitas vezes, o façam de maneira inconsciente, a transformação não deixa de ser observada, descrita, admirada e/ou questionada por aqueles que a experimentam diariamente. Essa Revolução Urbana, esse processo modernizante, dispõe de uma diversidade incomensurável de representações documentais; escolho, contudo, para ilustrar-nos, a literatura. Charles Dickens, abalado pelas consequências da industrialização, ao criar a fictícia cidade de Coketown para a obra Tempos Difíceis, nos dá a seguinte descrição da referida urbe:

“Era uma cidade de tijolos vermelhos, ou de tijolos que seriam vermelhos, caso as cinzas e as fumaças permitissem; mas, no estado das coisas de então, era uma cidade de vermelhos e negros antinaturais, como o rosto pintado de um selvagem. Era uma cidade de máquinas e chaminés altas, pelas quais se arrastavam perenes e intermináveis serpentes de fumaça que nunca se desenrolavam de todo. Havia um canal negro um rio que corria púrpura por causa da tintura malcheirosa, e grandes pilhas de edifícios cheios de janelas, onde se ouviam ruídos e temores o dia inteiro, e onde o pistão das máquinas a vapor trabalhava monótono, para cima e para baixo, como a cabeça de um elefante em estado de loucura melancólica. Havia ruas largas, todas muito semelhantes umas às outras, e ruelas ainda mais semelhantes umas às outras, que saíam e entravam nos mesmos horários, produzindo os mesmos sons nas mesmas calçadas, para fazer o mesmo trabalho, e para quem cada dia era o mesmo de ontem e de amanhã, e cada ano o equivalente do próximo e do anterior.”[8]

O texto do autor britânico ressoa como um alerta dos mais graves e, juntamente com obras como “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”[9], de Friedrich Engels, ou “Sobre a modernidade”[10], de Charles Baudelaire, serve não só para a sociedade da época, como para os seus leitores de tempos futuros. O interessante desse tipo de documentação é que, ainda que sob uma perspectiva fatalista e distópica, a literatura pode nos apontar fatores interessantes acerca dessa modernização, entendidos pela burguesia autocrata do século XIX como sinônimos de avanço, como a padronização das ruas e dos hábitos dos trabalhadores e, principalmente, a passividade ao viver o cotidiano. A grande questão é que, essa burguesia, ao assumir o Estado e reformular a sociedade europeia ocidental, precisa criar bases de legitimidade para a sua empreitada, e é justamente associando modernidade e progresso que constrói essa legitimidade semântica; se desassociando daquilo que era antigo para tomar o lugar do que seria novo (HOBSBAWM, E. 2015), segundo o historiador Eric Hobsbawm,

“(…) muitas vezes se inventam tradições não porque os velhos costumes não estejam mais disponíveis nem sejam viáveis, mas porque eles deliberadamente não são usados, nem adaptados. Assim, (…) a ideologia liberal da transformação social, no século passado, deixou de fornecer os vínculos sociais e hierárquicos aceitos nas sociedades precedentes, gerando vácuos que puderam ser preenchidos com tradições inventadas.”[11]

E é justamente aí, ainda sob uma ótica eurocêntrica, entretanto, mais sociológica, que se começa a refletir sobre a ideia de modernidade associada ao trabalho, e ao trabalho capitalista; por exemplo, a partir das obras do alemão Max Weber, mas principalmente, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, em que o autor associa a ideia de modernidade ao ethos do capitalismo, e relaciona-o às questões que circundam o protestantismo, como a valorização do trabalho e a meritocracia. Essa teoria pressupõe universalidade, logo essa, assim como outras, entende que parte de todas as realidades. Que modernidade se relaciona com essa lógica e que esta cobre tudo, ou que deve cobrir.

Modernidade no Brasil:

E o que acontece quando importamos os conceitos sem entender/valorizar nossas singularidades?

“o Brazil tá matando o Brasil”

Vamos modernizar. A história brasileira é uma história de idas e vindas. É uma história de imensa instabilidade política. Uma análise possível, e não pretendo esgotar a historiografia brasileira, é a de que essa instabilidade política se dá na constante, e extremamente complexa, luta de classes nacional. Contudo, o caso brasileiro explica-se, por exemplo, utilizando a dimensão gramsciana de fração de classe; ou seja, as próprias classes sociais — burguesia e proletariado — possuem, em si, frações que também disputam projetos políticos distintos (GRAMSCI, A. 1995)[12]; e é daí que surge o que hoje é a narrativa hegemônica nacional, ou seja, o que é o Brasil moderno.

Antes dessa análise, demos dois passos atrás. A elite econômica agrária, que em associação a setores militares, foi responsável pelo golpe que derrubou o Império, precisa construir uma nova ideia de Brasil, desassociada dos ideais imperiais. Para isso, se associa àquela ideia de modernidade já exposta. A burguesia brasileira se apropria do capital simbólico acumulado, ao longo do século XIX, pela burguesia europeia e de seus significantes; dentre eles a ideia de modernidade. É daí que surgem, por exemplo, as reformas urbanas que tomam de assalto o Rio de Janeiro, transformando-o na Paris dos Trópicos.

Contudo, o projeto das elites oligárquicas esgota-se na década de 1930, e um novo golpe militar vira do avesso a política nacional. Inicia-se um Governo Provisório com Getúlio Dornelles Vargas e, com o novo líder, também um novo projeto político que busca dissociar-se de todo o simbolismo erigido em 41 anos de regime republicano. Vamos Industrializar. Vamos superar o federalismo e construir uma pátria única, um corpo único. Vamos entender, diferente da República Velha, que somos uma pátria miscigenada, em que a Democracia Racial é um imperativo. É a crise do Liberalismo de 1929 e o autoritarismo, o corporativismo e o fascismo surgindo como possibilidades. “Ora, sou eu o Estado Novo, em contraposição à República Velha”, diria Vargas, e o presidente articula ao seu discurso a ideia de que modernizar é integrar; então, vamos integrar o Brasil inteiro; não só economicamente, mas principalmente no âmbito cultural.

O Trabalhismo surge a partir de demandas da classe trabalhadora (GOMES, A. 2005)[13], sim, mas é preciso ter em mente que, durante a crise mais profunda vivida no capitalismo até então — não só uma crise econômica, mas uma crise simbólica — há um projeto de País em disputa; e a burguesia brasileira reestrutura-se em torno dessa nova ideia; obviamente, sem perder de vista a sua máxima: o lucro. Apesar do crescimento exponencial do Estado brasileiro com Getúlio, é preciso ter em mente que o capital nacional logra resultados associados ao capital privado e, principalmente, ao capital internacional.

Mudam-se então, as estruturas, no sentido mais físico possível da palavra, a indústria moderniza e a academia tenta interpretar o Brasil, ou melhor, tenta criar o País a partir de si mesmo, mas as réguas que medem seu tamanho são as de uma modernidade importada; e os sucessores de Vargas deram continuidade, com suas especificidades, a essa dimensão construída, numa espécie de esteira Varguista que resiste como uma âncora, fixa e presa à mentalidade do que é ser Brasil e brasileiro (FERREIRA, J. e DELGADO, L., 2019)[14].

Entendia-se/entende-se que o país não correspondia/corresponde a régua estrangeira, então buscava-se explicações. Como há, na maioria das vezes, principalmente na época retratada, uma não atenção às questões brasileiras imbuídas de senso crítico e literatura brasileira, as explicações encontradas são, muitas vezes, racistas e xenofóbicas. Nesse âmbito, há os ensaios, como por exemplo, Casa Grande e Senzala e Raízes do Brasil[15], os dois que com suas divergências, analisam o Brasil, circundados de parâmetros estrangeiros, carregando muitas vezes estereótipos.

O brasil é moderno sim, ele vive uma democracia racial. O brasil é moderno sim, o brasileiro detém cordialidade, o jeitinho brasileiro, mas há modernidade sim.

Qual o preço dessa modernidade? É difícil responder com precisão, mas já pode-se inferir com o que já foi exposto que alguns corpos não são bem-vistos nela. Estão à margem. Porque nessa régua não se encontram as nossas medidas. Primeiro empurram a ideia de modernidade como salvação, como algo inevitável, e depois quando as expectativas não são cumpridas, nos estereotipam.

Como discutir modernidade no Brasil se ao menos falamos verdadeiramente sobre a colonização, se ainda estudamos a história do Brasil e dos negros a partir dessa? Como discutir modernidade no Brasil se não nos aprofundamos no passado, se negamos esse, o estereotipamos? Se ao menos entendermos que a modernidade faz parte de uma lógica capitalista que não entende e nem quer entender as especificidades? (KILOMBA, Grada.2019).

Notas de Rodapé

[1]MARX, Karl; Crítica à Filosofia do Direito de Hegel — Introdução. São Paulo: Boitempo, 2005, pg.145

[2]IDEM, pg.151

[3]GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere, vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999

[4]LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História, Antropologia Estrutural Dois. 4ª edição. Tradução de Maria do Carmo Pandolfo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. P. 329

[5]Nessa ótica, reflete-se posteriormente a problemática de tornar como verdade rígida um único conceito, portanto que esse engloba todas as realidades

[6]Levo, aqui, em consideração, o conceito gramsciano de hegemonia; ou seja, a dominação ideológica — através de tecnologias culturais — de uma classe social sobre outra. O autor sardo trabalha esses conceitos nos seus Cadernos do Cárcere. GRAMSCI, A. “Cadernos do cárcere”, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1999

[7]HOBSBAWM, Eric. “A Era das Revoluções”. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

[8]DICKENS, Charles. Tempos Difíceis. São Paulo: Boitempo, 2015. Página 37

[9]ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008

[10] BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 1997

[11]HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p.16

[12]GRAMSCI, A. “Cadernos do cárcere”, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1999

[13]GOMES, Ângela de Castro, A invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV; 3ª edição, 2005.

[14]FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). “O Brasil Republicano: O tempo do nacional-estatismo: Do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

[15]Os autores escreveram após terem contato com o estrangeiro, com essa régua.

Referências bibliográficas:

DICKENS, Charles. Tempos Difíceis. São Paulo: Boitempo, 2015.

FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). “O Brasil Republicano: O tempo do nacional-estatismo: Do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo.” Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

FREYRE, Gilberto. “Casa-Grande e Senzala”. São Paulo: Global Editora, 2003.

GRAMSCI, A. “Cadernos do cárcere”, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1999

HOBSBAWM, Eric. “A Era das Revoluções”. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence.A invenção das tradições”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Raízes do Brasil”. São Paulo: Companhia das letras, 1995.

GOMES, Ângela de Casttro, “A invenção do Trabalhismo”. Rio de Janeiro: Editora FGV; 3ª edição, 2005

GRAMSCI, A. “Cadernos do cárcere”, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1999

KILOMBA, Grada. “Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano”. Rio de Janeiro: Cobogá, 2019.

LÉVI-STRAUSS, Claude “A eficácia simbólica”. In: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975

LÉVI-STRAUSS, Claude. “Raça e História”. IN: Antropologia Estrutural Dois. 4ª edição. Tradução de Maria do Carmo Pandolfo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

MARX, Karl; “Crítica à Filosofia do Direito de Hegel — Introdução”. São Paulo: Boitempo, 2005

WEBER, Max. “Ética protestante e o espírito do capitalismo”. São Paulo: Pioneira, 1999.

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