Imperatriz-viúva Cixi, da Dinastia Qing, em seu Palácio de Verão. Imagem extraída de Wikimedia Commons.

Série Pacífico | O Dragão Acuado

João Victor de Andrade
O Veterano

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Para inaugurarmos a Série Pacífico, que abordará a atual situação do Pacífico, em especial a da China, precisamos de uma contextualização histórica, mais especificamente a partir do momento em que a China é afetada por influências vindas da Europa moderna. Nosso ponto de partida é a Primeira Guerra do Ópio (1839), episódio em que a Inglaterra atacou a China depois de comerciantes ingleses terem sido prejudicados pela proibição e pelo confisco do ópio que levavam para a China. Os ingleses venceram o conflito com facilidade e exigiram que a China cedesse Hong Kong, compensasse as mercadorias apreendidas e abrisse portos ao comércio internacional, com o desmonte de estruturas que beneficiavam as oligarquias locais de Guangzhou. Pela primeira vez na história, a milenar China Imperial era subjugada por estrangeiros. Ao longo das décadas seguintes, tais derrotas se tornaram recorrentes, expondo a China a uma situação frágil.

Além das Guerras do Ópio, questões internas também ameaçavam a estabilidade política da China. A Rebelião do Lótus Branco, no século XVIII, foi suprimida com certa dificuldade, o que por si só já colocava em xeque o quanto as autoridades imperiais e seus aliados efetivamente exerciam a soberania do império, fomentando futuras revoltas. Dentre as rebeliões que agitaram a China no século XIX, destaca-se a Rebelião Taiping (1850–1864), que chegou a controlar grandes partes do território Sul da China, clamando por grandes reformulações sociais, baseada em uma interpretação adaptada do cristianismo. Ainda que a Dinastia Qing tenha, depois de anos, vencido os Taiping, seu controle sobre a sociedade chinesa se mostrava consistentemente mais enfraquecido, mesmo entre os “comuns”, que, mesmo sem possuir poder econômico ou político, demandavam mudanças. Por outro lado, a tragédia (dezenas de milhões de mortos) da Rebelião Taiping ficou fortemente associada à sua perspectiva “revolucionária” cristã, fortalecendo o discurso nacionalista entre as massas. Ademais, esses acontecimentos exigiam grande mobilização de recursos, o que, em um cenário com cada vez maior emancipação das aristocracias locais perante o império e as atividades econômicas prejudicadas pelos conflitos, fragilizava ainda mais a posição Qing.

Neste contexto, uma figura de enorme importância foi a Imperatriz Cixi. Após a morte de seu marido, tornou-se regente do Império e foi capaz de configurar diversas alianças na alta corte chinesa e reunir poder em torno de si e de seus aliados, aproximando-se de outras consortes como a Imperatriz Ci’an e também de outros agentes poderosos do Império. Durante o período em que controlou o poder, agentes importantes, como o próprio Imperador, tentaram levar a cabo mudanças políticas com viés institucionalista, de modo a ceder parte do poder em nome da estabilidade. A imperatriz impediu grande parte das mudanças, aumentando o potencial de instabilidade enquanto se consolidava como governante praticamente autocrática. No caso da chamada Reforma dos Cem Dias, o Imperador Guangxu, sobrinho da imperatriz (legalmente filho), tentou implementar reformas como a adoção de uma constituição, fundação de universidades, adoção de tecnologias ocidentais e internacionalização intelectual. A elite imperial, desconfiada da simpatia que o imperador nutria por elementos do exterior, concentrou-se em volta da Imperatriz Cixi e conseguiu impedir as reformas, destituindo o Imperador Guangxu de poder efetivo e preservando as estruturas tradicionais. Um outro episódio significativo foi a Primeira Guerra Sino-Japonesa, em 1894. Novamente, a China era subjugada por uma potência estrangeira, evidenciando seus relativos atraso e impotência. Cabe lembrar que o Japão já havia iniciado sua modernização na Era Meiji, a partir de 1867.

A Rebelião dos Boxers, no final do século, foi, conjuntamente às Guerras do Ópio, o maior evento no sentido de exacerbar a desavença entre a China e o Ocidente e de refletir clamores populares nacionalistas contra o Ocidente. Motivados pela invasão cultural do Ocidente por parte dos missionários e comerciantes, além do tratamento diferenciado dado a eles, e também pelo histórico de derrotas (especialmente a derrota para o Japão, com que os chineses já amargavam antipatia antiga). Ainda que estas afetassem primeiramente os nobres e comerciantes, acabavam por influenciar a vida de todos, levando populares a se engajar em um movimento nacionalista antiocidental com o intuito de fortalecer o establishment e expulsar os estrangeiros do país de maneira violenta. A resposta coordenada das potências colonizadoras europeias, Rússia e Japão superou qualquer previsão por parte dos chineses. Depois de derrotas militares, execuções de civis, com a destruição das cidades e de seu patrimônio, os chineses se viram no vale do “Século da Humilhação”, com a economia destruída e a política extremamente fragilizada (a Imperatriz Cixi teria, então, cedido a ideias menos autoritárias). Foi pavimentado o caminho para a Revolução de 1911, que, contando com o apoio ideológico ao nacionalismo do Guomindang, pôs fim à monarquia chinesa (1912) e procurou, sem grande sucesso, estabelecer um governo forte interna e externamente.

Um fator importante para compreender a política chinesa antiga e a atual é um éthos de superioridade que permeia sua cultura há milênios. O nome do país em seu idioma natural poderia ser traduzido como “Terra do Centro”. O Mar da China Meridional é chamado simplesmente de “Mar Meridional” pelos chineses. Desde séculos atrás, os imperadores chineses clamavam exclusividade sobre o título de “Imperador” dentre os povos com quem tinham contato — em nome de sua lógica de legitimidade no Mandato dos Céus. Uma estrutura social e cultural altamente rígida, prezando tradições, coletivos e ordem acima de liberdades individuais faz parte da China há séculos. Com essa estrutura, conseguiram firmar-se como potência praticamente inconteste até o século XIX. A partir de então, inaugura-se uma era de conflito com os ideias ocidentais através do imperialismo econômico e cultural.

Os eventos mencionados foram mais do que conflitos militares guiados por interesses econômicos e grandes choques culturais: o liberalismo econômico recém-adotado pelos ingleses era forçado a uma nação que passara séculos com controle rígido sobre o comércio exterior e com desconfiança dos estrangeiros (ao ponto de, antes da Guerra do Ópio, restringir sua entrada do território e seu contato com os locais ao mínimo necessário para as negociações). A Rebelião Taiping e a expedição britânica ao Tibet foram interpretadas como invasões à China de uma cultura cristã e politicamente liberal com consequências graves para a sociedade como um todo. Sob essa pressão, compreende-se a reação enérgica dos governantes chineses a quaisquer tentativas de ocidentalização, especialmente por meio da abertura da política interna, ainda que esta pudesse, talvez, ter preservado a dinastia Qing no poder e suavizado eventuais transições. Como vimos, a reação dos detentores do poder foi baseada em desconfiança e violência.

As agressões perpetradas pelas potências ocidentais, os episódios de evidente incompatibilidade com seus ideários e valores subjacentes acabaram por enraizar-se na cultura chinesa. Hoje, podemos afirmar que, em algum nível, estas feridas influem em suas decisões, alimentadas desde 1839. Encontramos, atualmente, a incompatibilidade exacerbada, possivelmente em níveis maiores do que os da própria Guerra Fria: apesar das diferenças, a cultura russo-soviética ainda continha grande influência do Ocidente. Além disso, como bem mostrado por matéria do The New York Times, nos dias de hoje, temos uma integração, especialmente econômica, muito maior com nossos rivais do que mantínhamos com a URSS, e precisamos escolher entre preservar nossos valores e nossa economia — ou arranjar algum campo cinzento. Diversas empresas já cederam à preservação da economia, mantendo unicamente os seus valores na Bolsa. Resta saber se nossos políticos farão o mesmo.

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João Victor de Andrade
O Veterano

Former Brazilian Army cadet. Economics student. Conservative.