Victoria Harbour e Ilha de Hong Kong nos anos 1860s; Domínio Público

Série Pacífico | Uma Nação, Dois Sistemas e Alguns Acordos

A história político-econômica de Hong Kong

Pedro Cytryn
O Veterano
Published in
8 min readJul 19, 2020

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Como seguimento da Série Pacífico, o presente ensaio se propõe a discorrer sobre o processo de formação de Hong Kong (HK) bem como da identidade de seu povo. O fator geográfico da província — formada pelas ilhas de Hong Kong e Latau formando um porto natural para a província de Guangdong — tem sido determinante para sua história econômica e política [1]. A presença populacional na Península de Kowloon, situada no Mar da China Meridional, que abriga Hong Kong, data da era do bronze. Mais recentemente, o local esteve sob domínio das dinastias imperiais Han, Tang, Song, Yuan, Ming e Qing.

Durante a dinastia Qing, a balança comercial chinesa com os britânicos era positiva — bens de luxo saíam e a prata inglesa pagava por eles. Visando reverter o déficit, a Rainha Vitória permitiu que britânicos comerciassem ópio pelo porto de Hong Kong. Atividade essa vista como profundo desprezo pela administração local Xi’an, subordinada à dinastia Qing. O incômodo dos aristocratas chineses somado à insistência dos britânicos em manter seu negócio lucrativo levou, conjuntamente a outros fatores, à 1ª Guerra do Ópio em 1839 .

Período Colonial

Assinatura do Tratado de Nanquim em 1842 abordo do HMS Cornwallis; Domínio público

Com a vitória britânica em 1842 e a posterior assinatura do Tratado de Nanquim, Hong Kong se tornava uma colônia britânica. Promulgou-se a Letters Patent, documento que estabelecia o novo sistema político da ilha, e Hong Kong se tornava uma Monarquia Parlamentarista, cujo primeiro governador foi Henry Pottinger.

Nas palavras de K. Hopkins “Hong Kong não era uma democracia. O poder, tanto administrativo quanto executivo, estava nas mãos de servidores civis que, pela lei, eram primeiramente responsáveis, através do Governador, mediante o Reino Unido. O povo de Hong Kong não podia nem apontar esses servidores nem os remover” — tradução do autor [2].

De 1842 até meados da 2ª Guerra Mundial, a economia de Hong Kong teve como motor seu porto e atividades direta e indiretamente relacionadas. Dessa maneira, servir como porta de entrada do ópio para o território chinês era o papel central de HK até 1856. Neste ano deflagra-se a 2ª Guerra do Ópio, que contou com participação francesa, pois lhes agradava aumentar a pressão sobre a China. Os Qing foram novamente derrotados e, através do Tratado de Beijing, o domínio inglês foi estendido até a península de Kowloon. Além disso, o porto de HK passou a ser ainda mais vital para a economia da província, servindo de entreposto comercial para a entrada e saída de mercadorias da China. Estima-se que, já em 1880, cerca de 37% das exportações e 21% das importações chinesas passavam pelo local[3].

A expansão do domínio britânico, além do caráter geográfico aumentado em 1898 pelo 2º Tratado de Pequim, foi também de teor cultural: a chegada de imigrantes ingleses significou uma importação de valores morais e perspectivas filosóficas do Ocidente. Leia-se: moralidade cristã e filosofia liberal econômica.

Inclusive, os ingleses fundaram a Universidade de Hong Kong, na qual surgiram os idealizadores do Guomindang — os Four Bandits. Eles foram líderes da Revolução Xinhai, que derrubou os Qing e transformou a China em uma república em 1912.

Porém, tirar a dinastia imperial do poder não foi um simples ato político. A desestabilização nacional da guerra de revolução , somada ao crash da economia internacional nos anos 20 deixou a economia chinesa à beira do exício. HK, colônia inglesa, se tornava um oásis de estabilidade e atraía muitos negócios e empreendedores chineses [1].

Parte costeira de Hong Kong nos anos 1930s; Domínio Público

Já em 1937, o Japão Imperial, motivado pelo expansionismo, invade a China — promovendo um grande êxodo de chineses para Hong Kong, com crescimento populacional de 63% [4]. A indústria cresce rapidamente, com o choque positivo do estoque de capital humano.

2ª Guerra Mundial

Invasão japonesa à Hong Kong; Domínio Público

A pouca preocupação com seus territórios ultramar no início da guerra leva os ingleses a não tomarem medidas acertadas quanto a defesa de seus interesses em Hong Kong. O maior motivo sendo deste descaso seria a demanda da atenção de Churchill e da Royal Navy por questões como Dunkirk e nazistas à sua porta, o que fez o primeiro-ministro aceitar a perda iminente de HK. Aliás, os militares da Coroa Britânica sabiam que a ineficiência da defesa de HK contra ataques aéreos japoneses era virtualmente não-solucionável. Some a isso o fato de que antes da guerra por HK se iniciar, a ilha já se encontrava repleta de espiões japoneses coletando todo tipo de informação que facilitasse o ataque.

Tentando tornar a perda de HK menos humilhante, juntaram-se às tropas britânicas locais alguns batalhões indianos e canadenses, havendo, inclusive, presença chinesa. Contudo, a estratégia de montar uma linha defensiva no chamado Gin’s Drinker Line não foi capaz de barrar as mais de 20.000 tropas japonesas. Em 1941, a Coroa britânica perdia HK para o Império do Sol Nascente no que ficou conhecido como Batalha de Hong Kong.

Os japoneses impõem a Lei Marcial através do novo governador da ilha, General Rensuke Isogui. Ele reduz o cenário econômico da região a insignificância . Para se ter uma dimensão do estrago, a quantidade de fábricas cai de 1250 para 366 [3]. O período ficou conhecido entre os habitantes de HK como os “negros 3 anos e 8 meses”.

Pós 2ª Guerra

Após a Guerra do Pacífico terminar e os termos de rendição serem assinados na Declaração de Potsdam, os britânicos retomaram dos japoneses o controle sobre ilha. Sob o Governador Young, foram feitas reformas para aumentar a participação política dos cidadãos asiáticos, visando conter o descontentamento geral existente no pós-guerra [3]. Havia, à época, grande preocupação em não retornar ao status quo colonial, ainda mais no mundo da Era Democrática.

No pós-guerra, o que marca o crescimento da economia de HK é o abandono da função de mero entreposto comercial e uma rápida expansão industrial. Grande parte deste processo ocorreu graças aos chineses de HK, que eram responsáveis por maior parte dos investimentos e mão-de-obra. Aqui se destacam os grandes industrialistas, que vieram de Shanghai. Outra marca importante de HK na década de 1950 foi a criação de uma rede de seguridade social, envolvendo serviços públicos de educação e de saúde, por exemplo. Essa orientação contribuiu para construção de um mercado interno, algo positivo no quadro de embargos econômicos da Guerra Fria [3/4].

Durante os anos 1960, através de financiamento japonês e britânico, a indústria realmente pôde se estabelecer. As bases do desenvolvimento de HK foram o livre comércio, superávit fiscal, baixa carga tributária e legislação trabalhista simplificada. O take-off foi tamanho que, entre 1961 e 1969, a renda per capita pulou de US$ 582 para US$ 1000 (em PPP) [1/4]. Nos anos 1970, os retornos sobre terra e capital estavam se esgotando, o que trouxe a necessidade de diversificação industrial para sustentar o crescimento econômico. Um dos efeitos da diversificação foi o aumento de empresas nos ramos bancário e de remessas e seguros, um claro direcionamento no sentido de desenvolver seu mercado de capitais e uma economia de serviços. HK surgia como um novo centro financeiro de relevância internacional [4].

A reabsorção de HK por parte da China se inicia em 1978 com a Open Door Policy de Deng Xiaoping, sucessor de Mao. Ao abrir a China ao comércio e investimento internacionais, HK se torna a maior provedora de serviços comerciais e financeiros do país. As economias passam a ficar ainda mais intrincadas com a Declaração Conjunta Sino-Britânica, que estabeleceu o lema “Uma nação, dois sistemas”. Ficou estabelecida a Basic Law (caráter quase-constitucional) e a SARHK — Special Administrative Region of Hong Kong. Em 1997, respeitando o Segundo Tratado de Pequim, Margaret Thatcher devolve à China, sob governo de Zhao Ziyang, a região de HK. O acordo visava, principalmente, manter o estilo de vida da ilha e isso ia de perspectivas sociopolíticas à liberdade comercial fiscal e monetária.

De 1978 a 1997, o comércio entre Hong Kong e a República Popular da China (RPC) cresceu a uma taxa média de 28% ao ano, com a renda per capita de HK no final deste período sendo de um pouco mais de US$ 23.000 (PPP) [1]. O acadêmico chinês S. Tang diz que: “A economia de Hong Kong não se fundiu à da RPC em 1997, mas as duas economias tornaram-se tão intrincadamente ligadas que o bem-estar de uma se tornou crucial para a outra” — tradução do autor [4].

Victoria Harbour e Ilha de Hong Kong em 1989; Domínio Público

Anos 2000

A brutal resposta do regime comunista aos protestos de Tiananmen em 1989 foi responsável por enraizar uma percepção única na cabeça dos habitantes de HK quanto à mainland. Enquanto a liberdade, os direitos humanos e a democracia não pudessem ser garantidos na RPC, eles não estariam protegidos em HK após 1997 [4]. Obviamente isso trazia à tona um único questionamento “que nação somos nós?’.

Os anos 2000s começaram para a ilha com a crise asiática e a epidemia de SARS abalando o mercado de HK, produzindo desemprego e recessão. Cenário que, resumidamente, significou o aumento da dependência da RPC [1]. Ao longo do século XXI, sim já faz mais de 20 anos, inúmeros eventos acirraram as tensões entre uma população que visa manter sua identidade nacional, valores e principalmente, liberdade com a ditadura comunista chinesa.

A tentativa de passar a Lei de Segurança Nacional — artigo 23 da Basic Law — por parte da RPC e de ampliar seu domínio e censura sobre a SARHK, além de levar a um grande protesto civil em 2003, demonstrou a crise de legitimidade e governança [5]. A influência da Partido Comunista Chinês nas eleições de HK, i.e colocar o partido pró-Pequim no poder levou a massivos protestos em 2014. Em 2019, a luta dos manifestantes era contra a ‘Lei de Extradição’ — que permitia julgamentos em HK pelos órgãos judiciais do PCC.

Nesse momento, o que acontece é a aplicação do artigo 23 em HK, com muitos manifestantes pró-democracia sendo presos e o projeto de construir a própria nação com os próprios valores baseado na auto-imagem de seu povo indo por água abaixo. O Reino Unido ofereceu 3 milhões de passaportes britânicos a cidadãos da ilha, facilitando assim sua fuga das garras do dragão vermelho, que já abocanhou o sonho de liberdade. O que resta e o que restará da história de Hong Kong está, portanto, completamente dependente das mudanças na balança de poder internacional.

Pichação feita em Hong Kong demonstrando o descontentamento de certos habitantes da ilha com a mainland; Fonte: Unsplash

Referências:

[1] Schenk, Catherine. “Economic History of Hong Kong”. EH.Net Encyclopedia http://eh.net/encyclopedia/economic-history-of-hong-kong/

[2] K. Hopkins (ed.), Hong Kong: The Industrial Colony (Hong Kong, 1971), p. 55

[3] Liu Shuyong (1997). Hong Kong: A Survey of its Political and Economic Development over the Past 150 Years. The China Quarterly, 151, pp 583–592

[4] S. Tsang, A Modern History of Hong Kong, London: IB Tauris, 2004

[5] Ma Ngok, Political Development in Hong Kong: State, Political Society and Civil Society; Hong Kong University Press, 2007

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