Série Re(vira)volta da Vacina | Revolta da Vacina e o movimento antivacina da Covid-19: rupturas ou continuidades? Parte 1

Por Aron Giovanni Oliveira, Heloísa de Souza Rocha, Leonardo Maia do Carmo, Luiza Botelho, Maria Julia de Moraes Atty, Paulo Henrique da Silva, Raquel Porto e Renê Bastos Ventura

O Veterano
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5 min readDec 15, 2021

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Foto do Arquivo FGV CPDOC

Em dezembro de 2019, em Wuhan, na China, foram relatados os primeiros casos de pessoas contaminadas com o vírus SARS-CoV-2, também conhecido como o novo coronavírus, causador da covid-19. Como apresentado no relatório WHO-convened Global Study of Origins of SARS-CoV-2: China Part, da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicado originalmente em março de 2021, a origem dessa doença ainda é desconhecida e as possíveis teorias são diversas, desde a transmissão de um animal – o morcego – para um ser humano até um possível vazamento acidental de um laboratório, ou mesmo através de alimentos. A única característica que pode ser afirmada é que o vírus se espalhou rapidamente por todo o mundo, iniciando uma nova pandemia. Logo, a comparação com outros momentos semelhantes. torna-se quase inevitável, mas é preciso cuidado ao relacionar tempos históricos diferentes, vírus diferentes e as formas de prevenções diferentes, derivadas das diferentes formas de contágio.

A partir do desenvolvimento de vacinas para controlar os casos de covid-19, os movimentos antivacina também se intensificaram. Não seria a primeira vez no Brasil que haveria manifestações e contestações acerca da vacina. Como temos demonstrado em nossa série, A Re(vira)volta das vacinas, em 1904 a revolta foi motivada por diversos fatores. Como apontado pelo historiador José Murilo de Carvalho no capítulo Cidadãos ativos: a Revolta da Vacina, do livro Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, havia uma pluralidade de setores da sociedade (entre eles, estudantes, operários, comerciantes, militares, imprensa, opositores do governo vigente, entre outros) envolvidos nas manifestações. As suas motivações também eram de várias ordens: política, econômica, ideológica, moralista e, principalmente, em oposição à obrigatoriedade da vacinação. Desse modo, Angela Porto e Carlos Fidelis Ponte, pesquisadores da Casa Fiocruz, apontam que, apesar dos diversos elementos presentes para uma insurreição, “a obrigatoriedade da vacinação por si só trazia força suficiente para provocar reações violentas em defesa da privacidade e da livre determinação” (p. 728). Portanto, será que a Revolta da Vacina de 1904 é semelhante ao movimento antivacina do século XXI, gerado pela pandemia de COVID-19?

Alguns historiadores, principalmente aqueles da escola de Annales – como Marc Bloch, autor do livro Apologia da História – apontam que a história é feita de rupturas e continuidades; ela não se trata de uma trama linear, é construída a partir de recortes e costuras. Partindo dessa perspectiva, defendemos a ideia de que a Revolta da Vacina de 1904 possui semelhanças e diferenças em relação ao movimento antivacina de 2020/2021, as quais pretendemos apresentar a seguir.

O primeiro elemento no qual se podem observar as continuidades e as rupturas entre os dois momentos históricos é a forma como os discursos são construídos. Como apresentado nos Folhetos da Igreja Positivista do Brasil, presentes no acervo digitalizado do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), a Igreja Positivista tinha um plano de agente social e papel de divulgação da ciência e, em 1904 se posicionou contrária a obrigatoriedade da vacina. Isso pois defendia o direito à liberdade de escolha, com base em seus princípios científicos e sendo a favor divulgação da informação, que por vezes foi falha acerca da vacina contra a varíola. Portanto, defendiam que deveria haver maiores informações acerca da vacina para toda a população, papel que muitas vezes fizeram em seus escritos, e a partir disso permitir às pessoas que tivessem. o poder de escolher se vacinarem ou não serem submetidas ao “despotismo médico e estatal”.

Em contrapartida, em 2020/2021 houve maior disseminação das informações acerca das vacinas, desde as suas fases de testes, como a percentagem de eficácia de cada imunizante, a composição e até os possíveis efeitos colaterais provenientes de cada vacina. Porém, dessa vez, o discurso contrário à vacinação obrigatória também está circundado pelo direito à liberdade de escolha de utilizar ou não as vacinas, mas, distintamente de 1904, pautados muitas vezes no negacionismo das informações apresentadas sobre a vacina e no acionamento da pós-verdade. Sobre a pós-verdade, no artigo Pós-Verdade e a Crise do Sistema de Peritos: uma explicação cibernética, a antropóloga Letícia Cesarino aponta que por muitas vezes ela está pautada em uma “eu-pistemologia”, ou seja, as experiências individuais passam a ser verdades e crenças absolutas para alguns indivíduos. Um exemplo desse fenômeno pode ser observado no movimento dos transvacinados, que lutam pelo direito de não vacinar pois se sentem vacinados em um corpo não vacinado. Além desse, também é presente nos discursos do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, o relato da experiência de usar hidroxicloroquina e obter-se sucesso após testar positivo para o vírus, assim como o menosprezo da doença, a chamando de “apenas uma gripezinha” e apontando que o Brasil precisa deixar de ser um “país de maricas” que deseja a vacinação.

Portanto, enquanto o movimento contrário à vacinação obrigatória de um período prezava por maiores informações e divulgação científica, o outro, mais recente, questiona a cientificidade dos dados apresentados e acredita em opções alternativas com fundamento em experiências individuais e sem comprovação de eficácia.

Dentro desse âmbito, outra divergência que é possível observar entre os dois momentos históricos é a postura do Estado. Em 1904, o Estado foi a favor da obrigatoriedade da vacina após a demanda do médico Oswaldo Cruz, ao enviar um projeto solicitando a obrigação, ser aprovada no Congrespor meio de de uma lei. Já em 2020/2021, o Estado – representado pelo presidente do Brasil – é contra a obrigatoriedade da vacina e realiza discursos pautados na eu-pistemoloia anteriormente citada, com a finalidade de aproximar a população de seus discursos e umase rma de incentivar que se faça o mesmo.

Além disso, o discurso realizado atualmente consiste em uma individualidade em excesso que não possui a dimensão de saúde coletiva, já que, segundo alguns estudos, pessoas vacinadas são menos infectadas e infectam em uma proporção menor. Os discursos são realizados com base no questionamento da vacina, a alegação de que ela faz mal e a defesa do direito individual de escolha. Enquanto o discurso da Igreja Positivista do Brasil pautava-se em uma defesa voltada para os direitos sociais da população, como o direito de escolha, também havia uma perspectiva de possibilitar melhor condição de vida para os cidadãos, visando ao progresso e ao bem-estar, principalmente dos pobres. Essa característica, por sua vez, não é visível no movimento atual.

Referências Bibliográficas

CARVALHO, José Murilo de. Cidadãos ativos: a Revolta da Vacina. In: Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 91–139.

CESARINO, Letícia. Pós-Verdade e a Crise do Sistema de Peritos: uma explicação cibernética. Ilha – Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 23, n.1, p. 73–96, 2021.

PORTO, A.; PONTE, C. F. Vacinas e campanhas: imagens de uma história a ser contada. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 10 (suplemento 2): 725–42, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/8c34sgQ93tCJfn6QTXYqrmG/abstract/?lang=pt. Acesso em: 08 set. 2021.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.