Série Rio 360º | Entrevista com Eduarda La Rocque

O Veterano
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9 min readNov 12, 2020

Eduarda Cunha de La Rocque é economista com uma trajetória que impressiona. Na dimensão acadêmica, foi a primeira doutora mulher formada na PUC-Rio, já na profissional recente, primeira mulher a ser economista-chefe do Banestes. Além disso, La Rocque acumula uma série de feitos no setor público e privado. É uma das principais especialistas em Gestão de Risco do país, foi sócia-fundadora da RiskControl. Foi Assessora da Diretoria Financeira do BNDES, Professora da PUC-Rio e EPGE-FGV e Consultora do Tesouro Nacional. Após uma experiência adversa na cidade do Rio de Janeiro, La Rocque direcionou suas energias para o setor público. Nessa passagem, ativa tanto no debate público quanto propriamente no serviço público, sua trajetória também foi exemplar. É reconhecida internacionalmente pela gestão pública inovadora à frente da Secretaria de Fazenda da Prefeitura do Rio de 2009 a 2012, onde colaborou para a redução da dívida do município em 25%. Com o sucesso na Secretaria de Fazenda e preocupada com a sustentabilidade socioeconômica da cidade, especialmente com a desigualdade social, assumiu a Presidência do IPP de 2012 a 2015. Ganhou dois prêmios internacionais (UNHabitat e IFC/Cities Alliance) pelo programa UPP Social de Desenvolvimento Urbano, Econômico e Social das Favelas do Rio. Em janeiro de 2019 ingressou na equipe de governo do Espírito Santo, como diretora do Instituto Jones dos Santos Neves, passando a ocupar o cargo de economista-chefe do Banestes em outubro (ainda em 2019) até agosto deste ano. Nesta entrevista, La Rocque nos conta mais detalhes de suas trajetórias e seus pensamentos acerca do desenvolvimento econômico inclusivo.

Foto : Andrea Leopardi

O Veterano [V]: Sua trajetória trabalhando no setor privado foi incrível, tanto que se tornou bem conhecida e admirada dentro do mercado financeiro — que é conhecido por ser extremamente machista. Você poderia nos contar como foi a construção de tal carreira?

Eduarda La Rocque [E]: Na época eu não tinha consciência do machismo, foi a minha filha, Maria, de 20 anos, que me tornou uma “ecofeminista” (Solon). Era a única mulher no comitê financeiro de umas 15 pessoas no banco BBM e ainda fui presidente da comissão de riscos da Febraban, uma mulher jovem mineira de sotaque mega carioca presidindo aquele comitê de homens paulistas, brancos, ricos, bem mais velhos e muito bairristas. E o pior: nunca tive interesse em ficar rica. Sofria muito todas as segundas-feiras, tinha síndrome de Garfield. O doutorado em economia na verdade já havia sido um sacrilégio porque, na ocasião, eu já percebia que aqueles modelos estavam se distanciando cada vez mais da realidade, cada um no seu grupinho de estudo temático específico que muito pouco contribui para a sociedade. Os modelos econômicos resumem os cidadãos a consumidores (e quanto mais melhor!?) e o funcionamento da sociedade ao pobre dueto pib vs. inflação. A democracia do Brasil ruindo em 2015 e todos os economistas discutindo se houve ou não um atraso na redução de 0,25% nos juros. O mercado financeiro vive numa bolha e agrega muito menos valor à sociedade do que somos catequizados na maior parte dos cursos de economia. A criação da RiskControl, com a qual passei a desenvolver modelos de gestão de riscos corporativos me salvou da jogatina do mercado financeiro. Desenvolvemos os modelos de risco de empresas como CSN, Petrobras, vários bancos e fundações. A empresa foi vendida e até hoje é um ramo de negócios da Accenture. O que venho tentando fazer desde que comecei a trabalhar há doze anos no setor público é desenvolver um modelo de gestão de riscos urbanos. Eu brinco que vivo à procura do “indicador perfeito” (numa alusão à música de Marcelo D2), que não existe, mas que requer um aperfeiçoamento contínuo, baseado em evidências empíricas e muito diálogo entre todas as partes interessadas.

[V]:. Após 12 anos trabalhando no mercado financeiro, você resolveu e passou a atuar no setor público. Quais foram as motivações que culminaram nessa decisão?

[E]: Eu queria sair da bolha e me dedicar mais à sociedade. Com todo o respeito a todos os meus sócios do Banco BBM, uma escola de excelência e ética dentro do mercado financeiro, nunca compartilhei dos mesmos valores. Nunca quis ser rica, sou meio hippie. Andei até tentando desenvolver um modelo, os hippies e os yuppies, para mostrar que podemos conviver em sociedade respeitando os interesses e diversidades, desde que com ética e transparência. Fui para o mercado porque a medida de “sucesso” da sociedade era acumular riqueza. A tirania do mérito. Como pergunta Michael Sandel, “o que aconteceu com o bem comum”? Tomei consciência dos meus privilégios. Ganhei uma bolsa de estudos no curso de economia na PUC, fui bolsista PET desde o início, fiz mestrado e doutorado na PUC recebendo bolsa do governo. Fui para o mercado financeiro e ganhei muito dinheiro. Muito para mim, não para eles. Você ganha dinheiro tão rápido que ele passa a não ter valor. Tenho uma hipótese baseada na minha experiência pessoal que, caso verdadeira, mudaria por completo os modelos econômicos, todos construídos com base em médias e na hipótese de expectativas racionais. Baseado no PIB per capita, o Brasil é um país de renda média, mas se excluirmos o 1% mais rico da população, o Brasil — a segunda democracia mais desigual do mundo — é um país muito, muito pobre. A hipótese é de que a utilidade marginal da riqueza passa a ser decrescente a partir de determinado ponto (o que depende de preferências individuais), eu diria que até negativa (quando, por exemplo, uma família passa a ter que blindar seus carros e ter seguranças pessoais — uma perda enorme de liberdade). Minha tese é que chegamos num nível tão grande de mal-estar na civilização, que dá para ser melhor para todo mundo se conseguirmos compartilhar mais a riqueza e colocá-la para girar. O papel social do crédito é fundamental. Acredito muito nas finanças solidárias e no desenvolvimento do mercado de capitais para causas socioambientais (venho defendendo artigos nesta direção na Revista RI desde 2010, quando era secretária de fazenda e tentando estimular o mercado de capitais no Rio). Comprei briga com os paulistas, a maior delas quando criamos a Bolsa Verde do Rio (com Suzana Kahn, Pedro e Maurício Moura). Tivemos muito sucesso na organização de dois “Rio Investors Days”, encontros dos CEOs das empresas abertas com os gestores de fundos. Eventos que contaram com 1000 pessoas do mercado e do governo circulando no Copacabana Palace, 100% financiados pelo setor privado. Na época, queríamos mostrar que com o Investment Grade adquirido pela Prefeitura do Rio e todo o investimento planejado teríamos uma situação que chamei de “crowding in” (investimento público trazendo investimento privado) com o que acreditávamos que as empresas “beta alavancadas” no Rio teriam valorização de suas ações. O que foi verdade durante algum tempo — vide o caso das empresas do Eike Batista, mas perdemos a oportunidade de trilhar um rumo para o desenvolvimento sustentável.

[V]: Você tem estudado os problemas da desigualdade nos últimos anos. O que tem encontrado e quais as implicações da desigualdade social no desenvolvimento de uma cidade/país?

[E]: Vou citar como referência no Brasil, o artigo do Armínio Fraga, um economista tradicionalmente de direita mas que rompeu com o mainstream neoliberal que insiste em provar que só a miséria deveria ser combatida e que a desigualdade não é um problema — na verdade, o que é bem pior, exige provas de que a desigualdade é um problema! É aí a gente chega no viés das perguntas que são feitas num curso de economia: “A desigualdade é um veneno, que dificulta a construção de uma agenda de reformas necessária para o crescimento. Sem crescimento as oportunidades de melhoria do padrão de vida das pessoas são muito escassas. Ou seja, o combate à desigualdade é mais do que um imperativo moral — é condição necessária para a construção e execução uma agenda de crescimento sustentável e inclusivo. Por isso não se deve repetir o erro dos anos 60 e 70, quando se defendia o crescimento do bolo antes de seu fatiamento. […] Além de investir mais no social, cabe também um esforço para aumentar a produtividade do Estado, ou seja, cabe melhorar a gestão do Estado com vistas a entregar mais e melhores serviços e bens públicos por unidade de gasto público”(FRAGA NETO,2019).

[V]: O que é uma Parceria Público-Privada de 6 Setores, qual sua opinião a respeito e como as práticas ESG (isto é, Environmental, Social and Governance, ou ambiental, social e de governança) estão inseridas neste contexto?

[E]: Esta ideia de parceria público-privada participativa surgiu no Pacto do Rio, uma ideia que desenvolvemos no Instituto Pereira Passos para o desenvolvimento urbano, social e econômico das favelas. Não tem nada a ver com os modelos ESG, que é uma força (louvável) de medir os impactos ESG gerados pelas empresas abertas. A aposta na qual eu acredito é que as empresas que investem em ESG terão maior reputação e, portanto, rentabilidade no longo prazo.

A ideia básica da PPP6 é que, em geral, as parcerias público-privadas são negociadas de forma não transparente, sem a participação da sociedade civil e sem considerar os interesses da população. Começamos com a ideia de uma PPP3, inserindo as ONGs para aumentar a capilaridade, mas depois vimos a necessidade dos outros poderes: o setor de pesquisa, fundamental para monitorar os resultados, os parceiros internacionais (que eram muitos à véspera das olimpíadas, propondo projetos superpostos); e a própria população, que na maior parte das vezes não se sentia representada pelas ONGs tradicionais. Faltou um sétimo poder no modelo da ocasião, que é a imprensa. Ou seja, hoje o “modelo de desenvolvimento territorial” (MDT) que eu proponho (link para o artigo: o Rio e o ES) tem sete poderes e sete “ativos de desenvolvimento” para gerar a prosperidade de um determinado território: econômico, social, ambiental, cívico, cultural, urbano e humano.

[V]: Quais as principais diferenças entre o setor privado e o setor público, principalmente no que diz respeito a gerar impacto positivo na sociedade?

[E]: A principal diferença está no fato de que, no direito público, só é permitido o que está expressamente dito; e, no direito privado só é proibido o que está expressamente dito. A partir daí, o setor público é feito para não funcionar. Os riscos são enormes, todo o sistema de fiscalização, editais, etc., padecem dos erros do tipo I e do tipo II, segundo o conceito da estatística: emperram bons projetos e abrem espaço para uma indústria de corrupção. No setor público, demora-se muito para gerar impacto, mas quando o faz, é gigantesco. O empréstimo de 1 bilhão de dólares que tomamos do Banco Mundial, por exemplo, reduziu em 25% o valor presente da dívida do município. O problema é que tudo que demora para se construir se desmorona muito rápido. O segredo está em criar instrumentos de parcerias público privadas participativas de tal forma que os projetos prioritários não sofram com a descontinuidade dos governos, no nosso ciclo político louco de 2 em 2 anos. A cidade de Maringá é um caso de sucesso neste sentido, a partir da gestão de Silvio Barros (2005–2013), que criou instrumentos para garantir a continuidade dos projetos estratégicos eleitos pela sociedade. A região metropolitana de Belo Horizonte também, onde a UFMG participa ativamente desde 2009 um conjunto de estudos permanente para o planejamento, com resultados para o governo, para a sociedade civil e para as empresas.

[V]: É possível conciliar uma agenda de redução das desigualdades e que preza pela justiça social com uma agenda que preza pela responsabilidade fiscal? Quais os primeiros passos para que isso possa acontecer e por que isso não é comum de acontecer — pelo menos de acordo com as experiências que tivemos no Brasil?

[E]: Claro que sim. Responsabilidade fiscal e responsabilidade social. Acho que a geringonça portuguesa é um caso a ser seguido no Brasil: uma aliança progressista de centro esquerda que tenha o combate às desigualdades sociais e regionais como prioridade, com responsabilidade fiscal e ambiental. No Brasil, os governos do Flávio Dino no Maranhão e do Renato Casagrande no Espírito Santo me parecem exemplos de sucesso neste sentido.

Bibliografia:

FRAGA NETO, ARMINIO. Estado, desigualdade e crescimento no Brasil. Novos estudos CEBRAP, v. 38, n. 3, p. 613–634, 2019.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.