As rosas de Heliogábalo. Alma-Tadema (1888).

Série SIM | Considerações sobre Liberdade de Expressão e Sexualidade

Por Leonardo Fernandes de Sá

O Veterano
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6 min readMay 12, 2021

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Talvez um dos direitos mais conhecidos e debatidos nas democracias ocidentais, a liberdade de expressão e livre manifestação do pensamento seguramente incluem-se no conceito de bloco de constitucionalidade originalmente cunhado pelo Conselho Constitucional Francês em 1971. Em sua acepção clássica, abordada por Locke no escrito “Carta sobre a Tolerância”, a espécie de direito analisada diz respeito à não-intervenção estatal na esfera privada individual, manifestando-se primordialmente como um “direito de abstenção” e, como desdobramento lógico, constituindo-se em garantia oponível a violadores da liberdade, titularizada pelo emissor de conteúdo gestado por seu pensamento ou por aqueles que eventualmente o divulguem (ramificando-se portanto na liberdade de imprensa).

Com o advento dos direitos classificados pelo jurista Karel Vasak como de segunda dimensão, a liberdade de expressão passa a ser analisada também a partir de perspectivas socioeconômicas. O Estado já não ocupa mais o papel de mera abstenção ou garantia contra terceiros, mas da viabilização material do rol de direitos conquistados com o surgimento do Estado Moderno. Percebe-se portanto a inextricável ligação entre o desenvolvimento humano, garantido pela autoridade pública, e o pleno exercício do direito à livre manifestação do pensamento. Sua evolução histórica culmina no desenvolvimento da concepção tridimensional (individual, material e coletiva) atualmente adotada. Grupos historicamente reconhecidos como vulneráveis passaram a ter acesso ao princípio clássico para defenderem-se de forma difusa contra arbitrariedades do poder público e privado.

Afinal, em que o assunto de direitos fundamentais relaciona-se à sexualidade dos indivíduos de uma determinada sociedade?

No universo subjetivo individual, a expressão de signos e gestos e a exibição de padrões comportamentais, bem como a autodeterminação corporal, devem ser entendidos como uma extensão da própria personalidade de seu agente. Em um mundo cada vez mais complexo, dinâmico e visual, atos como expressar determinado ponto de vista ou vestir-se de determinada forma estão intimamente ligados ao sentimento de pertencimento do indivíduo. E não é irreal pensar que tal pertencimento possa se expressar na dimensão sexual também. Em um contexto de extrema repressão da identidade sexual dos indivíduos, o domínio dos signos relativos à homossexualidade, por exemplo, pode permitir a identificação entre iguais sem qualquer tipo de verbalização.

Aqui no Brasil, a pressão pela “normalização”, ou seja, a compatibilização do comportamento individual com valores ligados aos vazios conceituais da “moral” e dos “bons costumes”, gerou ampla camada de perseguidos e excluídos de espaços formais e até mesmo institucionais da sociedade. Um famoso exemplo foi a organização da chamada “Comissão de Investigação Sumária”, instalada em 1969 no Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Seu objetivo era a repressão a homossexuais, alcoólatras e a pessoas consideradas emocionalmente instáveis, todos categorizados como portadores de padrões comportamentais desviantes na sociedade. Sob os auspícios do AI-5, o órgão formulou uma lista que culminou com a cassação de 44 funcionários, a maior da história do Ministério das Relações Exteriores, na acusação de “afrontarem os valores do regime” em suas condutas na vida privada. Dentre quinze pedidos de exoneração de diplomatas, sete tinham como justificativa a “prática de homossexualismo” e a “incontinência pública escandalosa”. Outros dez diplomatas suspeitos de tal prática deveriam passar por exames médicos e psiquiátricos e, caso ficassem comprovadas as acusações, eles também seriam afastados.

A heteropassabilidade, ou seja, a capacidade de determinada pessoa em ser enxergada como heterossexual, constituiu e ainda apresenta-se como verdadeiro mecanismo de sobrevivência de grande parte do grupo LGBT em ambientes extremamente homofóbicos Brasil afora. Portanto, pode-se afirmar que, por meio da rotulação e exclusão das camadas menos “heteropassáveis” do grupo analisado, a liberdade de expressão sexual e de gênero é negada e violada sistematicamente, tanto em uma perspectiva individual como sob o prisma dos direitos coletivos consignados na Constituição Federal de 1988.

O dialeto Pajubá exemplifica a marginalização histórica da parcela do Grupo LGBT, incapaz de atingir padrões socialmente exigíveis da já abordada heteropassabilidade aqui no Brasil. Para além de mera linguagem, gestado na mistura de termos provenientes do Nagô e Iorubá com o Português, o argot queer estabeleceu-se como forma cifrada de comunicação entre travestis e homossexuais, que não queriam ser entendidos por qualquer um não-pertencente à “tribo” em razão de temerem por sua segurança:

“Os travestis falam uma língua própria e essa nossa língua é uma forma de defesa contra a violência que sofremos” Jovana Baby, organizadora do primeiro dicionário de Pajubá do país, o Diálogo das Bonecas, lançado em 1995.

Com o tempo, o jargão foi se transformando em forte mecanismo de identificação individual ao coletivo de orientação sexual não-heteronormativo. Em 2008, polemizando como questão do Exame Nacional do Ensino Médio, e em 2011 viralizando através da iniciativa GLOSSário das Bichas, o dialeto permanece sendo um dos mais utilizados no meio, passando a ser incorporado na cultura popular através da apropriação de termos antes restritos apenas ao universo LGBT.

E o que seria o comportamento considerado “desviante”, marginalizado?

A resposta mais simples e autoevidente pode ser encontrada na heteronormatividade, estereotipicamente não só relacionada à orientação sexual de determinada pessoa, mas também à sua própria expressão de gênero. Eis a lógica imperante: o homem deve portar-se e usar signos próprios e aceitos pela sociedade dentro de uma concepção limitada de masculinidade. De igual modo, a mulher deve representar valores atribuídos a ela através da “moral” e dos “bons costumes”. A incompatibilidade entre determinado indivíduo com os estereótipos de expressão e/ou comportamentais descritos gera quebra na expectativa social. A quebra gerada, por sua vez, enseja reações por parte da sociedade, que busca agir de modo a “corrigir” os “desviantes”, ao invés de readequar suas próprias expectativas, respeitando a individuação alheia. Entretanto, por serem características inalienáveis, inolvidáveis e incoercíveis, tanto a expressão sexual quanto a expressão de gênero não podem ser integralmente restringidas, seja por incapacidade de racionalizar o controle sobre tais atributos da personalidade, seja por gravíssimos danos à esfera existencial do indivíduo do qual se quer limitar parcela significativa de seu próprio eu.

É importante pontuar que a violação clássica à liberdade de expressão afigura-se como a simples censura da emissão da opinião ou do pensamento, por questões eminentemente político-filosóficas. A colisão entre os interesses do status quo e o emissor do pensamento importam em gravíssima restrição às opiniões e à própria consciência do agente. Entretanto, não é forçoso atribuir dimensão mais sensível à violação da expressão de característica inerente à personalidade humana como a orientação sexual e de gênero.

Conforme já explicitado, não há como exigir que características razoavelmente independentes da vontade, elementos biopsíquicos que compõem o indivíduo e que não geram a outrem qualquer tipo de dano, sejam conformadas e contidas nos padrões estabelecidos pela maioria da sociedade. A natureza coletiva da violação à expressão de sexualidade e gênero também precisa ser destacada, posto que afeta parcela vulnerável e minoritária da sociedade atual. As ações e restrições impostas a um indivíduo em tal contexto impactam, consequentemente, o grupo inteiro, com as mesmas características restringíveis e repudiadas pelo senso comum hétero e cisnormativo. Conforme ressalta Judith Butler na obra “Corpos que Importam: os limites discursivos do ‘sexo’”, os sujeitos têm a materialidade de seus corpos delineada a partir de exercícios de poder, de expressão e expansão da própria autoimagem. É um desdobramento natural, portanto, que questões como sexualidade e gênero aflorem consciente e inconscientemente de práticas cotidianas, posto que fazem parte da própria natureza individual humana e precisam ser, sob pena de inviabilizarem as relações em sociedade, protegidas sob a mesma égide defensora de opiniões e da própria consciência.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.