Afresco na Tumba do Mergulhador, em Pestum, com cena de simpósio, século V a.C. Disponível em: https://www.wikiwand.com/

Série SIM | Gênero e sexualidade na história

Paulo Henrique da Silva
O Veterano
Published in
5 min readApr 17, 2021

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A sexualidade é da ordem do indivíduo. Diz respeito aos prazeres e às fantasias ocultos, aos excessos perigosos para o corpo e passou a ser considerada como a essência do ser humano individual e núcleo da identidade pessoal. (TONELI, 2012, p.152).

Marcado por avanços e retrocessos, incertezas e controvérsias, dilemas e imposições, o contexto histórico das discussões sobre gênero e sexualidade transcende décadas, séculos e milênios e está presente na estruturação das relações sociais do ser humano. Quem nunca ouviu falar de Adão e Eva? Esses agentes míticos representam a concepção da humanidade para os cristãos, e são responsáveis pela personificação da vida humana e daquilo que, posteriormente, ficou socialmente colocado como gênero e sexualidade. Nesse sentido, compreende-se que as referências religiosas, históricas, filosóficas e culturais moldam o modo pensar e, portanto, de agir sobre o tema.

Adriano e Antínoo: a homossexualidade como episódio histórico

As relações homossexuais fazem parte da humanidade desde os primórdios. Na Roma Antiga, por exemplo, a história do imperador Adriano ficou marcada, sobretudo, pelo relacionamento amoroso que teve com o escravo bitínio Antínoo. Os laços de intimidade que os dois mantinham não eram expressamente sigilosos. A paixão que os permeava era tão intensa que, após a morte de Antínoo, o imperador determinou que uma cidade fosse construída para que se chamasse Antinoópolis, em homenagem ao seu ex-companheiro. Adriano também o consagrou como um deus e disseminou o culto à imagem de Antínoo por todo o território romano — fazendo com que as estátuas de Antínoo fossem as terceiras na lista das que mais sobreviveram até os nossos dias.

Em um mundo marcado por tanta intolerância, preconceito e ódio quanto o que vivemos, pode ser difícil acreditar que as relações entre duas pessoas do sexo masculino não eram abominadas expressamente na antiguidade, com exceção para os relacionamentos em que ambos os envolvidos tinham laços de intimidade característicos da feminilidade; a figura do homem mais velho do romance como o elo dominante deveria ser respeitada.

Mesmo que pautadas em uma relação de poder entre indivíduos escravizados e seus respectivos superiores, em que um homem mantém relações sexuais somente com outro obrigatoriamente mais jovem (este sempre na posição passiva), as imposições sociais em relação a gênero e sexo pareciam assegurar aos homens um certo grau de liberdade e escolhas individuais na Roma de Adriano. “As sociedades anteriores eram vistas como etapas de uma evolução programada e destinada a gerar o homem moderno.” (FEITOSA, 2008, p. 121).

Aristóteles, Platão e Sócrates: os clássicos da Filosofia e a questão da homossexualidade

Ainda que a antiguidade clássica seja vista como progressista em questões específicas de gênero e sexualidade, como as apontadas anteriormente, entre os filósofos clássicos os posicionamentos eram de certo modo destoantes. Aristóteles, por exemplo, não era um dos adeptos ao relacionamento entre dois homens: “Aristóteles não era favorável à relação homossexual, a não ser em duas circunstâncias: superpopulação e hábito adquirido na adolescência.” (MATIAS et al, 2016). O progressismo em questões de sexualidade não era uma pauta a ser defendida por esse filósofo.

Em uma vertente de certo modo mais ampla e subjetiva, para Platão,

O amor entre jovens homens é reputado vergonhosamente pelos bárbaros e por aqueles que vivem sob um governo despótico, como a filosofia é também vergonhosa para eles; pois os interesses dos tiranos requerem que seus súditos sejam pobres de espírito e que não haja amizade e amor apaixonado — os quais esta relação é particularmente apta em produzir. [1]

Por sua vez, fontes históricas concluem que Sócrates era um filósofo que via com bons olhos relacionamentos homossexuais, tanto que protagonizou com o jovem ateniense Alcibíades um dos romances gays mais comentados do Mundo Antigo. Para ele, o sexo entre dois homens era, até mesmo, fonte de inspiração. Em contrapartida, “quanto ao sexo heterossexual”, a premissa de Sócrates “era a de que servia apenas para procriar.” (ANDRADE, 2017, p. 59). Logo, se vê que o entendimento quanto a questão da homossexualidade é divergente até mesmo para os clássicos da Filosofia.

Cristianismo: o comum é o certo; o diferente é o errado.

Como se sabe, o mundo contemporâneo não saiu como da mão da Dama do Lago — em alusão às lendas arturianas. Sua estruturação em termos sociais e de valores encontra respaldo, além do greco-romano, no cristianismo. O certo e o errado surgem a partir de normas supostamente divinas. Nesse sentido, o que é comum a todos é prudente, enquanto o que se restringe a poucos é pecado.

Durante muitos séculos, o Cristianismo desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento e aprimoramento ético e moral dos indivíduos, orientando assim, suas relações e comportamentos estabelecidos na sociedade tendo como suporte principal a Bíblia, documento essencial para aqueles que desejam compreender o contexto histórico das origens da fé cristã. (ROCHA, 2019).

Por certo, em termos de gênero e sexualidade, a figura do homossexual, sob o nome sodomita, passa a ser vista, no cristianismo, como uma parte da humanidade que se afastou da graça divina. Nessa ótica, a homossexualidade é o diferente, é o errado. Assim, “O advento do cristianismo provocou a censura da homossexualidade […]” [2]. Mesmo não encontrando total respaldo no Mundo Antigo, as relações homossexuais não eram tidas categoricamente como vivências deploráveis pelas civilizações anteriores ao estabelecimento do cristianismo. Existe intrinsecamente uma associação entre homofobia e a expansão das pautas moralistas cristãs de cunho radical.

O fanatismo religioso, a desinformação em massa e as crenças negacionistas sem fundamento científico que assolam o mundo cristão são uma afronta à liberdade do ser humano enquanto indivíduo independente. Na religiosidade invasiva, a ânsia em interferir na vida alheia parece ser mais urgente do que o empenho em modificar problemas reais e iminentes ao corpo social: fome, guerra, ditadura, miséria e desigualdades. A “cura gay”, por exemplo, é uma exemplificação lastimável de até onde pode chegar a escala de absurdos na inquietação causada pelo desejo de obrigar moralmente a ciência a produzir resultados dissonantes com os fatos, na busca pela intervenção nas questões sexuais do outro.

Notas de rodapé:

[1] PLATÃO. Symposium. Trad. (para inglês) Benjamin Jowett. p. 12. Tradução nossa.

[2] https://revistaladoa.com.br/2007/08/para-pensar/homossexualidade-em-platao/.

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Tiago Souza Monteiro de. O relacionamento homoerótico na Grécia Antiga: uma prática pedagógica. In: Faces da História, Assis-SP, v.4, nº2, p. 58–72, Jun.-Dez., 2017.

FEITOSA, Lourdes Conde. Gênero e sexualidade no mundo romano: a antiguidade em nossos dias. In: História: Questões & Debates. Ano 25, nº 48/49. Curitiba-PR: Editora UFPR, 2008. p. 119–135.

MATIAS, Antonio Augusto Nogueira et al. A aphrodisia e o erótico na Grécia Antiga. In: Revista de Trabalhos Acadêmicos — Universo Belo Horizonte. Vol. 1, Nº 1. 2016.

ROCHA, Arlindo Nascimento. A homossexualidade e o cristianismo conservador: a face cristã da intolerância religiosa espelhada na Bíblia. In: Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04, Ed. 07, Vol. 06, p. 68–92. Julho de 2019. ISSN: 2448–0959.

TONELI, MJF. Sexualidade, gênero e gerações: continuando o debate. In: JACÓ-VILELA, AM., and SATO, L., orgs. Diálogos em psicologia social [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2012. p. 147–167. ISBN: 978–85–7982–060–1. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org/>.

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Paulo Henrique da Silva
O Veterano

Graduando em Ciências Sociais na FGV. Fascinado por educação, cultura e direitos humanos.