Série SIM | Masculinidade e virtude

O que esperam?

Aron Giovanni Oliveira
O Veterano
7 min readMay 19, 2021

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Criação do autor via Canva.

O que há de virtuoso em ser um homem? Quais características são consideradas definidoras de um “homem de verdade”? Ou, ainda, o que define e distingue um “bom homem”? Essas questões estão frequentemente em minha mente. Pensar criticamente sobre si é um exercício de fato interessante e complexo. Desde que entendi minha identidade de gênero, venho pensando incessantemente sobre isso. Afinal, qual masculinidade eu quero para mim? Que tipo de homem desejo me tornar? E o que estou fazendo para construir as bases da minha masculinidade?

Pensar no que torna e define um homem virtuoso é, primeiramente, pensar no que consideramos símbolo de virtude e de virilidade. Com isso, é necessário entender qual é a masculinidade normativa a que somos apresentados, e se ela é virtuosa.

Compreendendo a masculinidade normativa, universal e hegemônica.

Por muito tempo, o homem, bem como o seu papel definidor, foi enquadrado em um conjunto de características pautadas na dualidade dominante entre sexo e gênero que, além de atribuir expectativas de papéis sociais, exige a prática de ações simbólicas que validem-no.

Um conceito crucial para essa reflexão é o da “masculinidade hegemônica”, popularizado no fim dos anos de 1980 (KESSLER et al., 1982.), no qual, além de tornar possível a dominação masculina — por meio de práticas tidas como culturais -, se diferencia das outras, sobretudo das que são inferiorizadas, e é normativa por conceituação. Esta, englobando o que é tido como “a forma mais honrada de ser homem”, exige um posicionamento de todos os atores e sujeitos sociais em relação a ela e traz legitimidade, no imaginário social, à subordinação geral aos homens por parte de mulheres e de outros homens que não a adotem.

A masculinidade é entendida como um conjunto de performances que secretamente produzem distinções de gênero com base em relações assimétricas de poder representativo, as quais culminam em um consenso ou aceitação em relação à ordem estabelecida e às práticas hegemônicas (MURGIA; POGGIO, 2009).

Os homens podem adotar a masculinidade hegemônica quando é desejável, mas os mesmos homens podem se distanciar estrategicamente da masculinidade hegemônica em outros momentos. Consequentemente, a “masculinidade” representa não um tipo determinado de homem, mas, em vez disso, uma forma como os homens se posicionam através de práticas discursivas. (Robert W. ConnellI; James W. MesserschmidtII , 2013)

Vivemos em um modelo de estrutura social que coloca a masculinidade no âmbito da virtude do ser masculino, exigindo uma série de características que ousam agrupar e definir o que é “másculo”. Estes estão enraizados no imaginário social dominante, que compreende a existência de características desenvolvidas na construção do ‘eu’ do indivíduo masculino e de sua personalidade. Um dos pressupostos existentes é de que a sexualidade, que é heterossexual e monogâmica, seja intrínseca à masculinidade. Para Connell (2013), a hegemonia somente é estabelecida uma vez que esteja promovida pelo padrão cultural e o poder institucional, sendo este coletivo e/ou individual. Mas quais são essas características, quais são os pressupostos existentes na masculinidade normativa?

Quando as condições para a defesa do patriarcado mudam, as bases para a dominação ou hegemonia de uma masculinidade particular são gradualmente destruídas. A hegemonia é vista como historicamente mutável (Garcia, 1998, p. 46). Dito de outro modo, o conceito de masculinidade hegemônica está calcado nos modelos tradicionais e dos predicativos da personalidade do homem, qual seja, machista, viril e heterossexual, do mesmo modo em que este deve apresentar distanciamento emocional, agressividade e comportamento de risco no seu dia a dia, ou seja, um homem bem mais próximo dos modelos do cavaleiro medieval, do guerreiro oitocentista e dos grandes soldados, ao passo que os novos modelos de masculinidade têm colocado em evidência uma preocupação quanto à redefinição do papel de pai, marido, amante, trabalhador e cidadão. (SILVA, Sergio Gomes da. A crise da masculinidade: uma crítica à identidade de gênero e à literatura masculinista. 2006)

Deste modo, aquele que não corresponder às características e as expectativas inerentes da masculinidade hegemônica tem sua identidade questionada e, muitas vezes, até invalidada. Pensem em homens que possuem traços diferentes dos tidos como viris ou melhor, pensem homens não cisgêneros e heterossexuais. A masculinidade é múltipla, pois se a mesma pode ser definida como uma ação e gesto performativo (BUTLER, 1990) e se considerarmos a complexidade humana, esperar que todos os homens tenham a mesmíssima masculinidade, expressão de gênero e performance, me parece um tanto irreal e utópico.

Seres humanos são diversos, constroem sua personalidade de modo personalizado, de acordo com uma bagagem cultural e familiar específica, mesmo que mantenham alguns princípios gerais de acordo com sua regionalidade, cultura, classe social e raça. A masculinidade então, não pode ser entendida como sinônimo de virtude, afinal, ela não é universal nem única. Um outro pressuposto é de que a masculinidade hegemônica concentre características como força, intelectualidade, coragem, asserção e destreza. A grande questão não está na definição dessas características, mas em como elas são exercidas, produzidas e reproduzidas nas relações.

Bourdieu (2014) evidencia que há uma relação entre as vantagens atribuídas ao homem, por meio das relações de gênero, que estão enraizadas nas questões vinculadas à força física e as forças simbólicas. As características expostas por Bourdieu (2014), se assemelham as da masculinidade tóxica, uma vez que essa se constitui das normas, crenças e comportamentos que incluem: hipercompetitividade, autossuficiência individualista (em um sentido patriarcal e paroquial do papel do homem como chefe de família e autocrata da família), tendência ou glorificação da violência (real ou digital, dirigida a pessoas ou quaisquer vivos ou não vivos), chauvinismo masculino (paternalismo para com as mulheres), sexismo (superioridade masculina), a misoginia (ódio contra as mulheres), concepções rígidas de identidade sexual e de sexo e de papéis, , heteronormatividade (crença na naturalidade e superioridade da heterossexualidade dos cisgêneros), o direito à atenção (sexual) de mulheres, (sexual) objetificação das mulheres, a infantilização das mulheres (tratamento de mulheres como a consciência ou agência imaturo e desprovido e desejando mansidão e aparência “jovem”) (SCULOS, 2017).

Entendendo o conceito de masculinidade, é importante salientar que o padrão pressupõe também a racialização dos corpos. A masculinidade hegemônica tida como virtuosa é branca e burguesa; homens negros e marginalizados são apresentados a um modelo diferente de exigência das ações que compõem a masculinidade hegemônica. Existe uma linha tênue entre as expectativas e os riscos, bem como seus estereótipos. O que se espera de um homem negro não é o mesmo que se espera de um homem branco: acredita-se que virilidade e força sejam mais acentuadas e ríspidas para um homem negro, o mesmo que sofre da hipersexualização e do pressuposto de que haja uma alta resistência física e à dor. As exigências da virtude masculina mudam de figura quando amplia-se a lente de análise para a interseccionalidade, sobretudo quando se pensa nos riscos de ser um homem negro em uma sociedade racista. Além da masculinidade hegemônica, há o racismo, o qual vai operar no adereço da raiva, da hipersexualização e da animalização dos homens negros.

Nos anos 1950, o filósofo e psiquiatra martinicano-francês Franz Fanon realizou uma reflexão, em seu livro “Peles negras, Máscaras brancas”, na qual explica que o homem negro possui uma expectativa de se encaixar em uma ética de sujeito que não o pertence. Stuart Hall analisa a presença do negro na mídia em sua obra “Cultura e representação”, na qual expõe grande diferença entre homens negros e brancos no que tange aos estereótipos: o homem branco é centrado, civilizado e trabalhador, por outro lado o homem negro é agressivo, primitivo e preguiçoso. Enquanto o homem negro corre risco no espaço público, o homem branco experiencia o mesmo com ampla liberdade. Deste modo, vivendo em uma sociedade altamente racializada e racista, não há como pensar em masculinidade, virtude masculina e homem sem pensar na interseccionalidade entre raça, classe e gênero. A masculinidade hegemônica não abarca os indivíduos não-brancos e marginalizados. Na dinâmica social normativa, outras formas de masculinidade são subordinadas e negadas, sobretudo se pensarmos nas masculinidades não heteronormativas, por exemplo.

O que esperar de uma masculinidade virtuosa?

A palavra “virtude”, filosoficamente, passou a definir e orientar a força da alma ou do caráter. No sentido moral, orienta-se para o bem comum, de acordo com Kant. Mas, o que é considerado correto, desejável, forte e motor de orientação do bem para a masculinidade dominante? Uma pesquisa rápida no Google pode revelar resultados interessantes a partir do indexador “virtudes de um homem”. Dentre as qualidades comuns consideradas virtudes de um homem, podemos encontrar: força, proteção, coragem, destreza, decisividade, controle da vontade, autossuficiência, independência, etc.

No entanto, essas características devem ser excluídas da definição de gênero. São características de virtude humana e não masculina, mulheres podem-nas exercer. A grande questão é: como essas qualidades são exercidas, e como a masculinidade hegemônica exige que sejam? A força está além do campo físico, também se apresenta no emocional. Não demonstrar sentimentos seria um sinal de força, e o não sentir o ideal dessa força. As virtudes da proteção, da coragem e do controle da vontade, por exemplo, devem ser exercidas com agressividade. Essa base de masculinidade é patológica e acaba por aprisionar e excluir uma experiência mais livre do homem no mundo. As qualidades virtuosas, isoladamente do modelo hegemônico machista, são louváveis e devem ser valorizadas, desde que retirem a exigência agressiva, tóxica e ruim de como operá-las.

Um homem de verdade, virtuoso, exemplar e bom, seja aquele que reconhece, valoriza e respeita a sua complexidade e a dos outros indivíduos. Que seja corajoso para sentir, para errar, para verdadeiramente ser livre. Seja forte para compartilhar seus medos, proteger seus desejos e controlar sua vontade com respeito. Que reconheça seus limites e valorize sua imperfeição. Um homem virtuoso precisa ser um homem livre, orientado pelo respeito e guiado pela igualdade, no seu sentido mais amplo.

Referências:

ALTMAN, D. Homosexual: Oppression and Liberation. Sydney, Australia: Angus and Robertson, 1972.

BOURDIEU, P. Masculine Domination. Stanford, CA: Stanford University Press, 2001.

ConnellI, Robert W. & MesserschmidtII, James W. Hegemonic masculinity: rethinking the concept. 2013

CONNELL, R. W. Ruling Class, Ruling Culture. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1977.

DAVIS, A. Women, Race, and Class. New York: Vintage, 1983.

FANON, Frantz. Pele Negra. Máscaras Brancas. Rio de Janeiro: Ed. Fator, 1983.

HOOKS, B. Feminist Theory: From Margin to Center. Boston: South End, 1984.

HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.

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Aron Giovanni Oliveira
O Veterano

Estudante de Ciências Sociais pela FGV CPDOC. Amante de cinema, antropologia e sociologia política. Poeta e Slammer.