SOPHIE e o Hiperpop: Quando a Música Supera o Humano

LUCAS SALLES PITHON MACEDO
O Veterano
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10 min readJul 28, 2021
Imagem escura, com a cantora Sophie e o produtor A G Cook fazendo remix de som. Sophie mexe na mesa e Cook tem a mão esquerda no fone de ouvido.
SOPHIE e A. G. Cook apresentando “Hey QT” em San Francisco, Califórnia, 2015. Fonte: Wikimedia Commons

Na modernidade ultradigital, o absurdo não é mais do que um ponto de vista. Ele se manifesta de diversas formas: com um tuíte, com um vídeo, com uma roupa. Inclusive, por causa do encilhamento algorítmico resultante da descomplicada formação de nichos de conteúdo na era digital, o absurdo beira, e às vezes alcança, o status de gênero. A forma que me parece mais vívida, dinâmica, líquida e eternizável da absurdidade da era digital como consequência do super fluxo de conteúdos e ritmos ocorrido na internet se apresenta de forma surpreendentemente palatável: por meio da música.

Trata-se de um fenômeno que exala transgressão. Um ritmo-fênix que, assim como inúmeros outros gêneros de subcultura da história musical, nasceu das cinzas da poeira da música popular, a partir do indesejável que se escondia nela. Um movimento ao qual deu-se a luz em cima do asfalto pixelizado da internet, no canto da esquina da cultura de massas, na periferia do mainstream: o hiperpop.

Definição (se é que algo do tipo é possível)

Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada. (LISPECTOR, 1973)

É difícil falar de limites quando o assunto é música. Onde começa integralmente um gênero, e onde termina? Talvez nunca saibamos. Contudo, é possível fazer uma frouxa caracterização do hiperpop. De acordo com o site Urban Dictionary, o hiperpop pode ser descrito como “música pop com andamento mais rápido e batidas eletrônicas, misturados com uma atmosfera club futurista”. Não é uma definição exatamente ampla, mas é o bastante para começarmos.

Falarei sobre a história do gênero mais à frente, mas por agora digo que ele é nascido dos sons e sensações que a internet trouxe, seja literal ou metaforicamente. As presentes gerações de jovens tiveram a internet como membro da família, como refúgio, como proteção. Uma geração inteira teve sua personalidade, sua moda, seu senso de humor e, entre outros, sua música, influenciados — parcial ou integralmente — pelo digital. Elementos como sons computadorizados, cores vibrantes e dinamismo de informação faziam parte da vivência juvenil, e a juventude começava a crescer consumindo cada vez mais o numérico, o intocável, o que habita no domínio das ideias advindas das ideias.

Os sons sintetizados de notificação, e-mail, toque de celular e videogames, ruídos indescritíveis mas altamente reconhecíveis, ocupavam — e ainda ocupam — lugares especiais no inconsciente coletivo, sempre lá para fazer um alerta, um anúncio, uma presença. Para remeter a algo bom, algo importante ou algo simplesmente lá. Da mesma maneira, a imagem se tornou furtiva, mundos diferentes interligados pelo clique, avalanche de cultura desencadeada com o corriqueiro salto de uma rede social para outra: assim como uma nova língua, a internet permitiu que o mundo pensasse de forma diferente.

Apresentam-se assim alguns dos principais aspectos palpáveis do hiperpop, que às vezes chegam a se misturar: a utilização de sons criados inteiramente pelo meio digital, com a ajuda do sintetizador, aliados a ritmo geralmente acelerado. Quando não atingem o êxtase por meio da repetição constante de efeitos sonoros, as canções o fazem por meio de interrupções rápidas, ruídos abruptos e vozes abertamente artificiais. É comum ouvir um clique bem-humorado inspirado em videogames, um ruído metálico-eletrônico indiscernível de qualquer som do mundo real, ou uma voz abafada e bruta, como um computador com defeito — são os sons da memória popular transformados em arte.

A partir de uma perspectiva mais ampla, o hiperpop é uma consequência previsível do caminho da indústria. Afinal, no início da década de 2010, chega o colapso do referencial do pop. A música era cada vez mais dominada pelo EDM (Electronic Dance Music, música eletrônica), e o pop, cada vez com temas mais supérfluos e direcionados ao consumismo e à festa, há tempos havia deixado de ser orgânico.

Logo, após um período de experimentação e obscurantismo do gênero, entra em cena o gênio criativo digital, colorido e maleável de uma geração de cantores e produtores revolucionários, como SOPHIE, Charli XCX, A. G. Cook, 100 Gecs e Arca. Por que não fazer a música pop se elevar e ter a si mesma como objeto de inspiração? Por que não aumentar ao máximo a saturação de temas e sons que criaram e educaram a cultura como ela é hoje? Por que não dobrar o sintetizado sobre si mesmo, retroalimentação invisível, fagocitose numérica? Nasce o hiperpop.

Abrasão, absurdidade, apogeu. Quando a cantora Slayyyter usa o meio musical e visual para transmitir feminilidade excessiva, bruta e transbordante ao ponto da catarse rosa, como na canção Mine, ela joga o hiper contra o pop para produzir uma mistura ácida, o suco ultra adocicado de uma música que se desconecta do real em tema e em produção. Quando Charli XCX e SOPHIE produzem a eterna Vroom Vroom, uma música sobre carros que apresenta sons de metal, borracha e cliques falando sobre dirigir sem parar, realiza-se uma crítica espanholada da cultura do sucesso constante e competição no dinamismo da internet. Quando a venezuelana Arca utiliza-se de sons violentos e futurísticos acompanhados de distorção de voz para contar a história de uma mulher imperturbável em Mequetrefe, ela não apenas desafia o conceito do que é música, mas faz da distorção do próprio meio uma ilustração da conturbada experiência da mulher transexual na América Latina. O meio e a mensagem são derretidos antes de serem confundidos.

O hiperpop, apesar de já consolidado, ainda está em processo de formação. Afinal, sendo o fruto atômico da internet, é maleável tanto quanto ela. Cada vez mais a música atinge extremos elásticos, revisões e revisitas que a fazem obsoleta e clássica ao mesmo tempo. Um gênero que tem em seu DNA a transgressão não nasceu para se limitar. Artistas de todas as cores, gêneros, locais e ritmos agregam e são agregados ao hiperpop: ele dá e recebe, uma corrente de ar que não se vê, mas se sente. E como se sente.

Cantora Arca usando acessórios robóticos e segurando uma bandeira da Venezuela contra um fundo preto enquanto olha para a câmera.
Arca na capa do single KLK, parceria com a espanhola ROSALÍA. Fonte: Wikipedia

Concepção, infância e adolescência

Apesar de eu estar falando apenas sobre sensibilidade — e sobre uma sensibilidade que, entre outras coisas, converte o sério em frívolo — o assunto é sério. (SONTAG, 1964)

O gênero, a ver pelo próprio nome, é uma quimera baseada em e atada ao pop. Sobre ele não se sabe a data ou local de nascimento. Como todo bom emaranhado de resíduos dos sons de popularidade, as origens do hiperpop fazem-se confundir em meio à amplitude de inspirações e experimentações dentro do mar de informação que crescia exponencialmente — e cresce até hoje — durante as primeiras duas décadas do século XXI.

Versões consistentes do que pode começar a ser chamado de hiperpop podem ser datadas de 2012, tendo como representantes os álbuns Visions, da canadense Grimes, e Ghost, da estadunidense Sky Ferreira. Ainda assim, tratava-se de música predominantemente experimental. O álbum de Grimes, por exemplo, foi produzido em três semanas, sob abstinência auto imposta de comida e luz solar e construído do zero usando o próprio computador da artista (o que não o impediu de tornar-se um dos melhores, mais influentes e mais memoráveis álbuns da última década).

O hiperpop tinha pouco (mas já visível) pop, e quase nenhum aparente hiper. As canções eram, até certo ponto, comportadas, desafiando a noção do usual sem necessariamente chamar a atenção pelo bizarro. Era algo não obrigatoriamente feito para baladas, mas que já começava a mostrar aos seletos ouvintes a transcendência e quase-saturação dos efeitos sonoros, traços que viriam a ganhar seu próprio brilho, incandescente e plástico, com o decorrer do tempo.

Nos anos seguintes, o crescimento do hiperpop como movimento era palpável. Pouco ouço sobre as relações do hiperpop com a música popular, mas me vejo compelido a destacar três principais acontecimentos no ano de 2013 que contribuíram para uma maior familiarização do público em geral com o som do hiperpop: por um lado, tem-se os lançamentos Yeezus, de Kanye West, álbum que é uma superprodução magistral de hip-hop industrial com sons brutos e agressivos, e ARTPOP, álbum de Lady Gaga que foi por anos infame dentro do pop por sua influência imponente da música dance experimental. Por outro lado, nos Grammys desse ano a dupla francesa Daft Punk leva pra casa o prêmio de álbum do ano por Random Access Memories, álbum folk eletrônico que se destacou por ser comportado e harmonioso, mas que também leva consigo — inclusive com um monólogo em uma das faixas — a importância de sons sintetizados e da inovação na música.

Enquanto o cenário mainstream começava a sentir o gosto do experimentalismo envolvendo a mistura entre a música eletrônica e ritmos populares, o hiperpop como o conhecemos hoje começou a ganhar forma (se é que podemos chamá-lo como tal, visto que uma das características do movimento é exatamente a subversão de ordem, forma e gênero). Em 2015, o ritmo já ganhava alguns de seus maiores contribuidores, e o broto para o que ouvimos hoje já estava plantado e frutificando.

Cantor Kanye West usando uma regata com a bandeira dos Estados Unidos e máscara com jóias cobrindo o rosto. Ele olha para cima, para um feixe de luz, contra um fundo preto.
Kanye West apresentando-se no topo de uma montanha no Verizon Center em 21 de novembro de 2013 em Washington, D.C. durante a Yeezus Tour. Fonte: Wikimedia Commons

SOPHIE e a música como simulação do real

[…] a era da simulação inicia-se, pois, com uma liquidação de todos os referenciais — […] com a sua ressurreição artificial nos sistemas de signos. (BAUDRILLARD, 1981)

No ano de 2015, o mundo era apresentado ao primeiro álbum da escocesa Sophie Xeon, produtora e cantora popularmente conhecida como SOPHIE.

SOPHIE era, em sua persona e em seu trabalho, tudo que o hiperpop representa. A artista, que faleceu de forma trágica e prematura em um acidente no início de 2021, foi uma das vozes mais representativas e influentes do movimento hiperpop, e a primeira pessoa trans a ser indicada a um Grammy. Mas, além de cantora e produtora, era também diplomata. Sua visão singular e imaginária da música fez com que não apenas revolucionasse o gênero, mas influenciasse a relação entre o então microcosmo e a música popular, com colaborações envolvendo Madonna e Kendrick Lamar.

Destaco aqui a cantora não apenas porque sua música foi notória para fora do gênero, mas também pois sua produção representa tudo do hiperpop de forma magistral e aclamada universalmente. Primeiro, em seu álbum compilado Product, de 2015, a artista brinca com a própria noção de real do ouvinte. O álbum habita outro plano, um mundo hiper real de sons, com vozes sintetizadas, excessos em sonoridade, sentimentalismo desbordante e imitação do real. Os sons plásticos escutados em VYZEE são de fato plástico? O som líquido em LEMONADE foi de fato feito com água? A voz infantil em JUST LIKE WE NEVER SAID GOODBYE foi de fato gravada por uma criança?

O renascimento artificial dos signos de som conhecidos da vida real é o apogeu do propósito do hiperpop: a artificialidade máxima como indutora do pensamento sobre a condição presente. Já em seu primeiro trabalho, SOPHIE introduz ao mundo um som baseado na hiper saturação e na hiper imitação, que termina por gerar o hiper real.

Então, em 2018, é lançado seu primeiro álbum de estúdio, OIL OF EVERY PEARL’S UN-INSIDES, uma epopeia do hiperpop e provavelmente o álbum mais conhecido e aclamado do gênero. Uma obra-prima cuja diversidade de assuntos equivale àquela de sons: fala-se de fetichismo e desumanização em Ponyboy, e sobre a cirurgia plástica como meio de expressão da psique e de massificação de padrões em Faceshopping (literalmente “compra de rosto”), faixas ultra sintetizadas e agressivas ao ouvido. Estimula-se a catarse em Is It Cold In the Water?, canção que mergulha o ouvinte no mar do digitalizado onde a mente da cantora habita. E, em meu movimento preferido de todo o álbum, a cantora, durante a canônica, imortal e eterna Immaterial, utiliza-se de sons digitalizados, influências do EDM e uma mensagem desgastada na música pop para causar a elevação última. A música tem a simples ideia de que somos imateriais e podemos ser o que quisermos, de qualquer maneira. É a utilização daquilo que o pop motivacional cansado de cantoras como Katy Perry, Lady Gaga e MARINA sempre nos disse, mas repetido à exaustão. E, sendo repetido mil vezes, torna-se uma verdade. A faixa é transcendente.

Cantora Sophie sentada em uma sala com roupas de plástico e luvas de látex, com o cabelo solto e olhando para a câmera com a mão esquerda levantada.
SOPHIE para a capa do álbum OIL OF EVERY PEARL’S UN-INSIDES. Fonte: Wikipedia

O que será do hiperpop?

O artista é sempre um provinciano. Ele vive entre um mundo tangível e um intangível — essas são as fronteiras da sua província.

- Federico Fellini

A transgressão, o dissonante, o novo. O futurístico, o artificial, o reflexivo? Jornada truculenta de descobrimento e emancipação, rejeição refletida e convicta do padrão, alegoria odisseica sem modelo. Enfim, resta aos artistas imersos em e influenciados pelo hiperpop fazer evoluir e consolidar o legado do gênero, virar a música em si mesma e produzir o subproduto do subproduto.

O futuro do hiperpop não é singular. Por um lado, vê-se que ele chega a tocar a superfície da música popular, por outro, há a questão da contínua exploração do meio. Enquanto o terreno do hiperpop é excogitado por artistas ascendentes e conceituados no meio público, como Rina Sawayama, Madonna e Dua Lipa, o terreno do imaterial é desvendado pelas novas gerações de artistas. O gênero espalha seus tentáculos pela indústria enquanto faz seu constante autodescobrimento.

Não há barreiras físicas para a criação do novo, não há retenção para o dinâmico extrafísico. A música caminha ao célere intangível, e resta a nós, como ouvintes, sermos superados e ultrapassados por aquilo que criamos, renascer com o que nasceu de nós, e tornar-nos enfim o hiper humano.

Referência Bibliográfica:

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. 1973

SONTAG, Susan. Notes on “Camp”. 1964

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. 1981

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LUCAS SALLES PITHON MACEDO
O Veterano

Graduando em Letras — Português e Inglês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e sommelier de caldo verde.