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Série SIM | Sou homem, e agora?

Uma reflexão acerca das estruturas sexistas e das questões de gênero na masculinidade padrão.

Aron Giovanni Oliveira
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10 min readApr 21, 2021

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As sociedades humanas são organizadas por sistemas e estruturas que regulam os indivíduos em diversas esferas, seja nas relações humanas diretas, através das leis, ou até nas relações indiretas, por meio de regras comportamentais culturais, não ditas explicitamente. Esses sistemas e estruturas ditam o que é certo, bom, ético, possível e normal. Hoje, a discussão da masculinidade ganha força e é encontrada em diversos meios de comunicação. Vejamos um caminho pelas teorias mais famosas sobre gênero, sexo e sexualidade; para fazer uma reflexão sobre as estruturas sociais, sexistas e patriarcais que organizam a sociedade.

Autoras e autores desde Michel Foucault, Margaret Mead, Simone de Beauvoir até Judith Butler, Berenice Bento e Paul Beatriz Preciato vêm teorizando sobre a questão de gênero e, mais recentemente, a teoria queer. Em primeiro lugar, precisamos compreender o que é o gênero, o sexo e a sexualidade. Em seguida, como essas categorias se relacionam com as noções e ações cotidianas; e por fim, de que forma se estabelecem como estruturas sexistas reguladoras em uma esfera cultural e social.

Estruturas sociais, como são organizadas?

Para Butler (1990), a sociedade é estruturada e organizada por uma “ordem compulsória”. Através de reflexões foulcaultianas, a autora se questiona acerca do “sexo” ter — ou não — uma história, origem e causas e ser — ou não — uma categoria dada, isenta de questionamentos. Butler discorda da ideia de que só é possível que a sociedade faça uma teoria social sobre o gênero quando o sexo estivesse vinculado ao corpo e à natureza. Deste modo, a filósofa pós-estruturalista norte-americana descreve essa “ordem compulsória” como uma ação de exigência de uma coerência total entre um sexo, um gênero e um desejo/prática sexual, sendo esse cisgênero e heteronormativo.

Significa que, ao proceder à “ordem compulsória”, um indivíduo entra na vida social, sem mesmo ter consciência de si e do mundo, generificado. Sendo então colocado em categorias normativas que irão definir — por expectativa — uma série de comportamentos, atribuições, responsabilidades, deveres e direitos relacionados ao papel social correspondente.

Válido salientar que essa ordem é binária e cisgênero, ou seja, compreende a dicotomia homem cisgênero e mulher cisgênero. Para os leigos no tema, cisgênero significa uma pessoa que ao nascimento é designada ao gênero definido socialmente pelos seus fatores biológicos e de fato se identifica com ele, diferente de uma pessoa transgênero, que ou não se identifica ou se identifica com um gênero diferente do determinado no nascimento por médicos que seguem a lógica normativa binária.

Por exemplo, uma pessoa que nasce com cromossomos sexuais XY e com o sistema reprodutor com bolsa escrotal, testículos, vias espermáticas, glândulas sexuais acessórias e um pênis é, no nascimento, denominada “macho”. Esse conjunto de fatores biológicos combinados com aspectos cromossômicos, genitais e reprodutores, citados acima, são considerados definidores do sexo masculino. Portanto, um indivíduo somente seria do sexo masculino uma vez que se enquadrasse nessa definição.

Ao seguir a “ordem compulsória” que a autora expõe, esse indivíduo “macho” deverá ter gênero e sexualidade coerentes com o fator natural dado. Isto é, ser macho, ter o gênero cis masculino e a sexualidade heterossexual — atração física, desejo e prática sexual com o sexo e gênero cis oposto.

Mas o que é gênero na verdade? E como tudo isso se relaciona?

Para a autora, o gênero é um ato intencional, um gesto performativo que produz significados. O pressuposto criticado por Butler se refere ao essencialismo e construtivismo social, no qual categoriza “sexo” como “natural” e “gênero” como “cultural” ao passo de materializar o gênero, o corpo e sujeitos generificados. Para pensar o corpo como demanda, é preciso repensar o significado da construção em si. Butler busca problematizar a dicotomia sexo-gênero ao afirmar que historicamente as categorias não são distintas, uma vez que sexo sempre foi gênero.

Contudo, o conceito de gênero está preso como a legitimidade dessa “ordem compulsória”. E, na medida em que é um instrumento expresso principalmente pela cultura, que inscreve o sexo e as diferenças sexuais fora do campo social em uma natureza determinística, também é um modo de manutenção desta ordem. Desta maneira, o papel do gênero seria produzir uma pseudo-noção de estabilidade, em que a matriz heterossexual estaria assegurada por dois sexos fixos e coerentes, os quais se perpetuam com todas as oposições binárias no pensamento ocidental: macho-fêmea; homem-mulher; masculino-feminino, sem vislumbrar a possibilidade de outras identidades e vivências.

A manutenção deste sistema seria “através da repetição de atos, gestos e signos do âmbito cultural, que reforçariam a construção dos corpos masculinos e femininos tais como temos atualmente. Trata-se então de uma questão de performatividade” (BUTLER, 2003).

A autora argumenta que, na construção social com uma restrição constitutiva, levanta-se a questão crítica de como o construtivismo não só produz um domínio de corpos, mas de corpos impensáveis. Para Butler, seria necessário haver uma subversão desta “ordem compulsória”, excluir a coerência entre sexo-gênero-desejo, em que somente é possível através da compreensão da comunidade trans — que não confere a cisnormatividade.

Bom, mas por que estruturas ou modelos sexistas?

Foi na verdade a primeira pergunta que fiz ao começar a redação desse texto. O termo sexismo é definido pela inferiorização de um gênero ou sexo em relação a outro. Entendemos hoje que existem mais de dois gêneros, não apenas o gênero masculino e o gênero feminino. Existem pessoas do gênero trans, não-binário, fluído, neutro e muitos outros — um exercício interessante é ler a lista de “outros” no Facebook. Então, a leitura que faço é que o sexismo opera na inferiorização dos outros gêneros e sexos em detrimento da norma masculina.

A construção e constituição de modelos sexistas está nas mais diversas possibilidades de agência dos indivíduos no cotidiano. Está na passagem de indivíduo para sujeito, de criança para jovem, de jovem para adulto, de solteiro para membro responsável de uma família, de estudante para profissional, e assim por diante. Importante explicitar que, não é possível abordar masculinidade, como estrutura imposta socialmente, na qual opera modelos sexistas com exigências sociais relacionadas, sem pensar na interseccionalidade entre raça e classe. O modelo de masculino, tido como padrão dentro do escopo benéfico, prestigioso, não é negro e da classe operária. No entanto, esse ponto daria outro texto, muitíssimo importante, sobre masculinidades e estereótipos de homens para raça e classe.

Entendendo a construção social? Talvez…

Um estudo do psiquiatra Jean-Marie Gaspard Itard sobre Victor de Aveyron, uma criança de 12 anos que sobreviveu na selva desde os 4 anos de idade e foi socializada com animais, revelou muito sobre nossas concepções sociais civilizatórias. O caso resultou no livro “A educação de um homem selvagem” publicado em 1801, no qual demonstra que quase tudo na vida relacional de uma pessoa é construído socialmente e que o isolamento social prejudica significativamente a sociabilidade. Através do relato analítico das etapas da educação de Victor, Itard contribui para a afirmação de que o ser humano é um animal social por excelência.

Nossa concepção de si e do outro é dada no contato, como o calor é dado contra o frio. Da mesma forma é a de similaridade e diferença, de certo, normal, errado e anormal também. Os papéis sociais que são atribuídos aos indivíduos na sociedade muito se estabelecem por meio de modelos sexistas e, pelo menos agora, por uma masculinidade tóxica.

O que é “coisa de homem” e o que, não é? Como é ser um “homem de verdade”? O que faz um “homem” e o que faz uma “mulher”? Tudo está relacionado às estruturas de organização social que temos. Um homem só pode ser assim considerado desde que seja cisgênero, heterossexual, com virilidade demonstrada a todo momento e uma família consolidada. O que for divergente desse sistema será inferior, violado, desrespeitado e condenado.

Outro ponto importante é a socialização de gênero. Logo quando crianças somos apresentados a uma série de regras culturais, pressupostos comportamentais coletivos e individuais que se relacionam e introjetam o sexismo em nossas vidas. A construção de indivíduos generificados começa na categorização binária — masculino e feminino — de objetos, gestos, ações, brinquedos e vai até a projeção de vida, objetivos afetivos, profissionais, familiares e políticos.

Michel Foucault, em seu livro “História da sexualidade”, tira da sexualidade a categoria natural — fora de questionamentos — e possibilita uma história e, assim, uma possibilidade de reflexão, desconstrução e crítica. Se pensarmos nas categorias que compõem nossa autoidentificação, nosso selfie, nossa noção de indivíduo, veremos que dentro dessas categorias existe um cunho sexista desde fazer uma divisão de gênero em objetos, cores, roupas e até mesmo esportes, cargos e profissões. Foucault afirma que a sexualidade é um produto humano, o que significa que:

“a sexualidade humana não pode ser compreendida em termos puramente biológicos. O autor supõe que ela é construída na sociedade, na história e que os desejos são constituídos no curso de práticas sociais historicamente específicas.” (RUBIN, 2011)

Corpos políticos?

Simone de Beauvoir, em 1940, escreve que não se nasce mulher, torna-se mulher, tirando do sexo e gênero a obrigatoriedade biológica definidora e o colocando na esfera analítica não natural e acidental, mas política e intencional. No seu livro O Segundo Sexo, publicado em 1949, Beauvoir expõe reflexões importantes e revolucionárias para sua época, como a definição de patriarcado como um sistema de subalternação da mulher, a consolidação do que a segunda onda feminista cunha como “o pessoal é político” e o sexo e gênero como categorias sociais. Se não se nasce mulher, tampouco nasce homem. Isso abre uma gama de possibilidades de reflexão, uma vez que esse binômio homem-mulher é mediado por poder e política — mas não somente.

Os modelos sexistas violentam todos os indivíduos indistintamente, uma vez que nestes modelos somos socializados com privações que são definidas pelo sexo dado ao nascimento. Ser homem está relacionado, na nossa sociedade, com um conjunto de ações estoicas, como não se expressar e ter sentimentos, ser forte, viril, firme, decidido e decidir. Toda e qualquer forma de vivenciar o sexo e gênero diferente do padrão, dos papéis sociais esperados e reforçados por uma cultura patriarcal, é subalterna e inferiorizada — ou marginalizada. Homens cisgênero ou transgênero que não performem a masculinidade tóxica serão julgados, inferiorizados, deslegitimados ou tidos como menores, falsos homens.

O sexismo e seus modelos estão instaurados nas camadas mais profundas de nossas vidas e sociedade, estão na forma que tratamos uns aos outros, como pensamos e projetamos nossa vida e nossos possíveis companheiros, como respeitamos e nos enxergamos enquanto semelhantes, iguais, possuidores dos mesmos direitos e deveres. A cultura também se relaciona com estes modelos, o conjunto de expectativas e responsabilidades referente aos papéis dos sexos e gêneros seguem os moldes fixados como padrão, certo, bom e normal. A jurista estadunidense Catharine MacKinnon em seu texto “Difference and Dominance: on Sex Discrimination.” expõe e analisa a teoria da igualdade/diferença de sexo e mostra brevemente como esta domina a legislação e a política de discriminação sexual e fundamenta seus descontentamentos.

O gênero pode nem mesmo ser codificado como diferença, pode não significar distinção epistemologicamente, não fosse por suas consequências para o poder social. (MACKINNON, 1984)

MacKinnon mostra como nem as leis estão isentas das questões de gênero, como por definição o princípio da igualdade e da diferença nos EUA não é neutro. A declaração dos direitos do homem e a teoria liberal do estado, que muito se estabelece com bases no Iluminismo, não é uma declaração neutra, mas sim direcionada: é feita por homens, para homens.

A fisiologia dos homens define a maioria dos esportes, suas necessidades de saúde definem a cobertura do plano de saúde, suas biografias socialmente projetadas definem as expectativas do local de trabalho e padrões de carreira de sucesso, suas perspectivas e preocupações definem a qualidade na escolaridade, suas experiências e obsessões definem o mérito, seu serviço militar define a cidadania, sua presença define a família, sua incapacidade de se relacionar — suas guerras e governos — define a história, sua imagem define deus e seus órgãos genitais definem o sexo. (MACKINNON, Catharine. 1984. p. 384. Tradução do autor.)

“O pessoal é político”, mencionado anteriormente, significa também que toda e qualquer prática social está sujeita a se tornar uma questão reflexiva, criticada e discutida. A esfera pública muito foi destinada aos homens, enquanto a esfera privada às mulheres; dois mundos separados por uma linha invisível e com estruturas diferenciadas. Precisamos, toda a sociedade, nos atentar para as questões que nos cercam e reproduzem modelos sexistas. O Estado e a configuração das leis não são neutros. É preciso sair da zona de conforto e fazer uma movimentação reflexiva sobre toda estrutura que organiza a vida social, a cultura e a política.

O primeiro passo é assumir a realidade, que a estrutura patriarcal e sexista existe. Em seguida, cabe pensar no que podemos fazer a respeito. Qual é nosso lugar, enquanto homens cisgênero ou transgênero, enquanto sujeitos e cidadãos, nessa relação? A questão de gênero não é exclusiva das mulheres cisgênero ou transgênero, é uma pauta real de todos os indivíduos sociais e políticos! Vivemos em uma sociedade organizada por uma “ordem compulsória” que regula nossos corpos e vidas. Experimentamos — e muitas vezes reproduzimos — uma estrutura que produz desigualdades em diversas camadas da vida social. Como mudar essa realidade e caminhar para uma sociedade mais igualitária, equiparada e de fato justa?

Referências Bibliográficas:

BEAUVOIR, S. O segundo Sexo: Fatos e Mitos. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980.

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade. Civilização Brasileira; 21ª edição, 15 abril 2003.

CASE, Mary Anne, Trans Formations in the Vatican’s War on Gender Ideology. Journal Articles, 2019.

CORTEZ, A educação de um Selvagem; as experiências pedagógicas de Jean Itard, 2000.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, 2: O Uso dos Prazeres. 5.ed. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984a.

MACKINNON, Catharine. Difference and Dominance: On Sex Discrimination, no Feminism and Politics, ed. Anne Philips — Oxford and New York: Oxford University Press, 1998.

RUBIN, S. Gayle. Devations. Duke University Press, Durham & London, 2011.

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Aron Giovanni Oliveira
O Veterano

Estudante de Ciências Sociais pela FGV CPDOC. Amante de cinema, antropologia e sociologia política. Poeta e Slammer.