Secretário de Defesa Leon Panetta ao lado de Xi Jinping durante uma recepção no Pentágono em 2012. Departamento de Defesa dos EUA.

Série Pacífico | Situação Militar — P. S. F. Neves e F. P. Borba

O Veterano
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8 min readJul 29, 2020

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Primeiramente, para se compreender as movimentações militares no Mar do Sul da China, suas motivações e consequências, é de essencial importância um entendimento da relevância da região tanto para o Partido Comunista Chinês (PCC) como para os Estados Unidos (EUA) e os inúmeros Estados com reivindicações territoriais sobre essas águas. Afinal, como sabiamente coloca o teórico militar von Clausewitz, a guerra é a continuação da política por outros meios.

A importância do Mar do Sul da China para a economia mundial e, em especial, a economia chinesa, não pode ser hiperbolizada, com 3,37 trilhões de dólares sendo transportados por essas águas em 2016, dos quais 874 bilhões de dólares correspondendo exclusivamente às exportações da China continental. Ademais, a região é essencial para o fluxos das importações chinesas, em especial de petróleo, originado do Sudão, Angola e Oriente Médio.

Assim, tal região se mostra vital para os fluxos comerciais chineses. O que ganha ainda mais importância por ser parte integrante da Iniciativa Cinturão e Rota, que visa expandir a influência geopolítica chinesa a partir do desenvolvimento de uma infraestrutura que possibilite a expansão e fortalecimento de sua rede comercial pelo Oceano Índico e pela Eurásia. Tal empreendimento marítimo implica um controle chinês — mesmo que indireto — sobre o Mar do Sul da China, em virtude de sua ligação direta com o Estreito de Malaca e, por consequência, com o Oceano Índico.

Mapa da projetada Iniciativa Cinturão e Rota — George C. Marshall European Center for Security Studies

A importância geoestratégica dessas águas, associada à histórica política chinesa de re-anexação dos territórios anteriormente pertencentes à extinta dinastia imperial Qing, levaram a República da China — atualmente baseada na ilha de Taipei — a reivindicar a área abrangida pela Linha dos Nove Traços no pós Segunda Guerra Mundial, área esta conflitante com a reivindicações de outros países da região, como Brunei, Vietnã, Filipinas, Malásia e Indonésia. Com a vitória da Revolução Comunista em 1949, o governo maoísta manteve a posição anterior do Guomindang, agora exilado.

Tal política de Pequim propiciou um choque com os Estados Unidos pelo controle da região, que busca impedir um controle chinês dessas águas por temer um impedimento da liberdade de navegação, assim levando-o a conduzir diversas operações navais no Mar do Sul da China, todas condenadas pelo governo chinês como uma violação de sua integridade territorial. Em resposta, o governo de Xi Jinping aumentou o número e o tamanho das ilhas artificiais chinesas na região, contendo pistas de pouso e equipamento militar, para garantir seu controle regional.

Ademais, para compreender a situação geopolítica, bem como as demandas chinesas na região do Mar do Sul da China, é mister a devida apreciação das capacidades militares das forças armadas chinesas — PLA (People ́s Liberation Army), tanto em âmbito tático como, em uma maior escala, estratégico.

É com essa finalidade que presente artigo se executa, esperamos apresentar de maneira clara e sintética o tema, é a análise:

Capacidades navais chinesas (1949–1980)

Mapa das reivindicações navais chinesas no Mar do Sul da China. Domínio Público.

A evolução militar chinesa, seja nas armas aéreas, terrestres ou navais é de fato impressionante; não há nenhum exemplo recente de uma nação soberana que tenha se aproximado de tamanho crescimento, tanto em termos quantitativos como qualitativos. Com o enfoque do trabalho sendo primariamente nos vetores de combate navais, reservaremos a análise dos demais braços das forças armadas para um estudo futuro.

Nesse sentido, convém mencionar que, até meados dos anos 80, a PLAN (People ́s Liberation Army Navy), nomenclatura pela qual se nomeia oficialmente a ‘’marinha chinesa’’, se limitava a operações costeiras e ribeirinhas, em um conceito conhecido como ‘brown water navy’. Marinhas com essa característica não apresentam capacidade de projeção de força em distâncias mais longas do seu litoral, sendo típicas as operações em aguais interiores (fluviais ou lacustres) ou, nas melhores hipóteses, patrulhas costeiras (navegação de cabotagem, onde a belonave nunca se afasta da linha costeira). Exemplos de marinhas desta categoria incluem as marinhas da maior parte das nações africanas, dos países centro-americanos e algumas nações sul americanas, bem como, por óbvio, forças navais de países sem acesso ao litoral (Bolívia, Paraguai, …).

Isso se dava pelo fato de que, ao tempo, a capacidade industrial chinesa ainda encontrava-se em sua infância, o que gerava grandes gargalos logísticos e técnicos que impediam o desenvolvimento de projetos por parte dos estaleiros nacionais. Da mesma maneira, havia grandes dificuldades para a aquisição de produtos militares dos estoques internacionais, em parte pela rivalidade crescente da nação asiática com as potências ocidentais, mas também devido à desconfiança soviética para com seus “ex- aliados”, o que impedia o país de adquirir produtos tanto da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) quanto do Pacto de Varsóvia. Dessa forma, a China se encontrava em uma situação bastante precária no que tange a possibilidade de desenvolvimento de suas forças navais.

A mudança de paradigma (1980-presente)

O cenário, entretanto, começaria a se alterar na década de 80: nesse período, o governo chinês iniciou uma grande campanha de abertura política e econômica da nação, o que ocasionou na entrada tanto de capital, como de conhecimento técnico estrangeiro. Este fenômeno sociopolítico pode ser interpretado como o ponto de inflexão da China, suas capacidades industriais foram ampliadas de maneira considerável, permitindo que a nação pudesse, pela primeira vez em quase 300 anos, projetar e construir equipamentos e armamentos navais que pudessem fazer frente a quase todas as grandes potências globais da época.

Navio patrulha costeiro chinês, vetor naval típico do período em que a marinha daquele pais atuava como uma marinha de combate exclusivamente costeira. Creative Commons.

A nova doutrina de combate da PLAN

Com suas capacidades industriais em potência máxima, o governo de Pequim deu luz verde para a elaboração de dezenas de projetos navais, de forma que o país pudesse, finamente, garantir os seus interesses geopolíticos na região, de maneira que estes se alinhassem com a então nova política chinesa de expansão e elevação ao posto de superpotência.

Nesse sentido, surge uma nova doutrina militar elaborada pelos almirantes chineses, em que se passou a defender uma projeção de força naval maciça em longas distâncias, em detrimento da arcaica, porém tradicional, visão de que a marinha deveria atuar como uma ‘’força de defesa costeira’’. É nesse contexto que surge uma série de novos vetores de combate, cujos equipamentos e armamentos embarcados permitem uma atuação concisa em locais distantes das suas bases logísticas — algo impensável para aquela marinha até então.

Para um maior embasamento legal de suas reivindicações sobre zonas do Mar da China Meridional, Pequim passou a criar um intricado sistema de ilhas e atóis artificiais, sobre os quais, além de construir centenas de habitações e verdadeiras “cidades”, também posicionou grandes bases aeronavais, cuja imponência e tamanho renderam de especialistas o termo “porta aviões fixos”.

Atol Mischief, pequena cadeia de arrecifes artificialmente prolongada sobre os quais o governo chinês construiu uma importante base aeronaval. Fonte desconhecida.

As reformas da estrutura orgânica e os novos vetores de combate da PLAN

De maneira a cumprir o estabelecido pela nova doutrina de atuação, as forças navais chinesas passaram por uma profunda reestruturação organizacional, por meio da qual se buscou delinear uma maior distinção entre as “OM ́s” (organizações militares) 100% voltadas para o setor operativo daquelas que estavam vocacionadas para atividades logístico-administrativas.

Dessa forma, a organização institucional da PLAN se dá da seguinte forma:

Força de submarinos: responsáveis pela operação dos vetores submarinos (tanto os nucleares como os diesel-elétricos de ataque convencional) da marinha. São considerados uma divisão estratégica da marinha, uma vez que possuem os lançadores dos temíveis ICBM ́s (misseis balísticos intercontinentais) chineses.

Força de superfície: responsáveis por operar toda a frota de superfície, desde os poderosos porta aviões e destroieres, até os mais modestos navios-patrulha costeiros.

Força de defesa costeira: responsáveis pela defesa costeira da China continental,
bem como de suas ilhas artificiais e territórios ultramarinos. Operam diversos sistemas missilísticos antinavio e antissubmarino.

Força de fuzileiros da esquadra: tal qual os fuzileiros navais de qualquer marinha que possua tal força, tem como função primordial a projeção da força naval sob a terra e, para tal, contam com diversos tipos de veículos anfíbios, blindados, lançadores múltiplos de foguetes, sistemas de saturação de artilharia, defesa antiaérea, … Além disso, são suas tropas as diretamente responsáveis pela proteção e segurança das bases e instalações navais da PLAN.

Força aeronaval: responsáveis pela operação de todos os meios aéreos embarcados. Com a nova doutrina naval chinesa ditando uma projeção de poder em locais longínquos, os porta aviões e sua frota de caça bombardeiros navais se tornaram um dos ramos de serviço mais estratégicos da marinha. Historicamente, sempre foram mais “relegados” do que a força aérea chinesa (PLA air force), operando aeronaves um pouco mais antigas do que seus respectivos pares de arma aérea, porém isto não significa que sejam incapazes de cumprir suas missões de maneira letal e eficaz. Possuem em seus inventários uma ampla variedade de aeronaves, que variam desde caças e bombardeiros de longo alcance, até helicópteros e aviões tanque.

Fuzileiros navais chineses realizando um exercício de abordagem e inspeção. Departamento de Defesa dos EUA.

Estes ramos, por sua vez, encontram-se subdivididos em três grandes frotas, que se responsabilizam pela atuação em distintas regiões geográficas de interesse chinês, são estas:

a. Frota do mar do norte: Inclui as bases navais de Dalian, Qingdao, Jinxi, Jiyuan, Laiyang, Jiaoxian, Xingtai, Laishan, Anyang, Changzhi, Liangxiang e Shan Hai Guan.

b. Frota do mar do leste: Inclui as bases navais de Danyang, Daishan, Shanghai (Dachang), Ningbo, Luqiao, Feidong e Shitangqiao.

c. Frota do mar do sul: Inclui as bases navais de Foluo, Haikou, Lingshui, Sanya, Guiping, Jialaishi e Lingling.

Para além disso, passou-se a dar grande valor às escolas de instrução e formação de oficiais e guardas-marinha, bem como se promoveu um grande corte de pessoal “desnecessário”. Com isso, foi possível obter altíssimo grau de operacionalidade dos meios navais, bem como o elevado profissionalismo pelo qual a PLAN hoje é reconhecida.

Assim, fica evidente o aumento na capacidade da projeção de poder da República Popular da China sobre as águas do Mar do Sul da China, com sua reformulação doutrinária aero-naval sendo mais um passo no plano de expansão de influência de Pequim sobre, não apenas os mares imediatamente a vizinhos, mas por todo o Oceano Índico. Tal fortalecimento dessa capacidade representará, caso bem sucedido, um essencial passo para a ambição chinesa de garantir seu pleno desenvolvimento pelas próximas décadas e, futuramente, de assumir a posição de superpotência oriental, assegurando seus interesses sobre sua área de influência imediata e além.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.