The birds: uma alegoria à opressão

Wendell_Oliveira
O Veterano
Published in
8 min readAug 31, 2022

“Os pássaros”, filme dirigido por Alfred Hitchcock, mostra um fim de semana na vida de Melanie Daniels. Ao visitar a cidade Bodega Bay, a jovem vivencia uma situação curiosa: milhares de pássaros se instalaram no local e começaram a atacar os moradores.

A sinopse do filme pode não parecer muito promissora, mas o que torna a obra interessante é justamente a falta de informação quanto à razão por trás dos ataques desses animais. A ausência de explicações permite que o espectador desenvolva sua própria interpretação dos eventos retratados na história, e o próprio filme brinca com isso de forma cômica. Há uma cena, por exemplo, em que os moradores discutem os ataques dos animais: a conversa se inicia com declarações advindas de uma ornitóloga — que diz que esse tipo de comportamento por parte dos pássaros é impossível — e desanda com as adesões de um bêbado que cita a bíblia e anuncia o apocalipse.

De fato, ponderar a respeito dos motivos por trás dos ataques dos pássaros pode até render uma discussão interessante, como observado através dos próprios diálogos presentes no filme. Porém, o ponto de maior relevância se apresenta ao questionarmos o que esses ataques representam. Uma técnica interessante para analisarmos um filme de terror é considerar como a obra seria sem os elementos horripilantes. No caso de “Os pássaros”, a ausência do fator amedrontador tornaria o filme em um romance bem peculiar com grande enfoque na relação de Mitch Brenner (par romântico da protagonista) com sua mãe, Lydia. Trata-se do típico caso de uma mãe possessiva que não quer nenhuma mulher na vida do seu filho.

Considerando o foco nessa relação materna e a ordenação das cenas do filme, podemos teorizar que os ataques estão ligados de maneira representativa ao desenvolvimento da relação do casal principal. O primeiro ataque, por exemplo, ocorre quando Melanie e Mitch estão a ponto de ter a primeira interação na cidade. Uma gaivota voa na direção da moça e bica sua cabeça. Depois disso, quando ela decide ir à festa de aniversário da irmã de Mitch, uma ave bate na sua porta. O primeiro atentado mais sério acontece durante a festa: o casal está conversando e, após uma olhada de reprovação da mãe de Mitch, uma revoada de gaivotas ataca a celebração e interrompe a conversa. A agressividade passiva que Lydia direciona a Melanie parece sempre ser acompanhada desses ataques físicos e bestiais por parte dos animais. Outro exemplo é deflagrado quando, quase imediatamente após Mitch convencer Melanie a ficar até o outro dia, os pássaros invadem a sala em que os personagens se encontram através da chaminé. Nessa cena, a irmã de Mitch procura segurança no braços da protagonista ao invés dos da própria mãe. Verdadeiramente, tudo indica que há uma forte relação entre os ataques e a hostilidade de Lydia para com Melanie.

Apesar de essa interpretação ser bem coerente para com os acontecimentos do filme, ainda existe espaço para uma análise mais aprofundada sobre o que os ataques dos pássaros representam. Para isso, necessita-se de uma análise mais extensa das duas principais personagens femininas da história, sendo necessário olhar com mais atenção para a forma como Melanie e Lydia são construídas.

De um lado, temos Melanie: uma típica loira hitchcockiana, que de típica não tem nada: ela é a filha do dono de um jornal, e é muito divertida. A jovem gosta de pregar pegadinhas nas pessoas, inclusive, sua primeira interação com Mitch gira em torno de uma. Eles se conhecem em um pet-shop onde ela finge ser funcionária da loja; a princípio, Mitch finge acreditar nela, mas eventualmente o rapaz admite que a conhecia e que só aparentou cair na pegadinha pois queria ver como Melanie reagiria ao se tornar o alvo da piada. Essa reviravolta só desperta o interesse da garota, que pretende se “vingar” da brincadeira, dando início à uma série de interações que levam ao desenvolvimento da relação do casal.

O relacionamento entre Mitch e Melanie não se inicia de forma “clichê”. É a garota que decide conquistar o rapaz ao invés de ser conquistada. Na verdade, a própria visita a Bodega Bay ocorreu por iniciativa de Melanie para que ela surpreendesse Mitch. Ela não tenta se adequar ao padrão comportamental das mulheres da época. Muito pelo contrário, em todos os momentos, Melanie demonstra ser alguém que encontra-se desconexa do clássico exemplo de uma mulher “certinha” e formal. Tanto é que sua ida ao pet-shop ocorreu para ensinar um mainá (um pássaro que fala) a xingar e então presenteá-lo a sua tia, que dispõem-se como uma mulher “tradicionalista”. Essas brincadeiras e comportamentos expressam a individualidade e o espírito livre que caracterizam a personagem.

Do outro lado, temos Lydia, que é o completo oposto de Melanie. Ela dedicou sua vida a ser uma esposa perfeita e, consequentemente, sentiu que perdeu seu propósito após o falecimento de seu marido. A prova da dedicação de Lydia ao seu papel de servitude aos homens que a rodeiam se apresenta em diversos momentos do filme, com um destaque em particular a um diálogo que ocorre entre as duas mulheres. Lydia demonstra se sentir perdida desde que se tornou viúva ao dizer que ”Às vezes, acordo de manhã e penso: ‘Preciso preparar café para o Frank’. Eu me levanto, já que é um bom motivo para eu sair da cama… e então, eu me lembro.”

Lydia se sente vazia sem poder cumprir seu papel como esposa. Nesse sentido, torna-se claro que sua relação com Mitch se desenvolve de modo que ela possa suprir essa necessidade. O rapaz viaja todos os fins de semana de São Francisco até Bodega Bay para poder passar tempo com a mãe, que deseja ter a quem servir. Lydia realmente acredita que é esse tipo de relação dependente que dá sentido a sua vida, e é daí que surge sua possessividade: a mãe teme que, com outra mulher em sua vida, Mitch não vai mais precisar dela. O fato de Melanie ter valores tão diferentes dos seus só aumenta o temor de Lydia. Ao conversarem, a mais velha chega a admitir que nem sabe se gosta ou não de Melanie, e nesse contexto, o “gostar” pouco importa. O que realmente interfere na relação de ambas é o medo que Lydia tem de ficar sozinha, e a ameaça que Melanie representa por ocupar espaço na vida de Mitch sendo do jeito que ela é.

Agora, o conflito entre Melanie e Lydia toma uma nova proporção. Não se trata apenas de uma mãe super-protetora para com o filho, mas de um choque entre duas noções diferentes de feminilidade. Essas, por sua vez, seriam de uma visão moderna e mais independente contra uma noção “clássica” do que é ser uma mulher, onde o laço materno e matrimonial tomam precedência acima de tudo. A chegada de Melanie, que não compartilha desse pensamento, é uma afronta a norma estabelecida, por isso ela é recebida com agressividade. Nesse sentido, os pássaros são uma metáfora para essa força coletiva, esse comportamento social que se opõe a mudanças e a novos comportamentos e ideias.

Uma das cenas que explicita bem esse embate ocorre durante um dos ataques das aves. Várias mulheres da cidade se escondem no canto de um estabelecimento, enquanto Melanie é a única a tentar ajudar as pessoas que estavam em perigo. Após o ataque, Melanie encontra as mulheres — todas mais velhas que ela — que se esconderam, e é recebida com olhares de reprovação, mesmo tendo se arriscado para tentar ajudar as senhoras. Todas não só reprovam as atitudes de Melanie como também culpam-na pelos ataques, afirmando que estes só começaram após a chegada da jovem na cidade.

Mesmo Melanie tendo boas intenções, tanto ao tentar ajudar nos ataques quanto ao se aproximar de Mitch, ela não é aceita. A garota é constantemente vista de forma negativa pelas mulheres de Bodega Bay, sendo a hostilidade por parte de Lydia a que mais se destaca. Dessa forma, as duas noções de feminilidade apresentam-se como inconciliáveis, e Melanie se vê na obrigação de escolher entre ser somente aquilo que se espera dela ou ter sua própria personalidade e sua liberdade. O filme até mesmo representa isso visualmente, ao que um dos ataques força Melanie a se esconder dentro de uma cabine telefônica, que se assemelha a uma gaiola.

Em suma, os pássaros seriam a encarnação de um comportamento coletivo repressor. A hostilidade que a mãe direciona à protagonista é uma referência direta à tensão entre modernidade e tradição, demonstrando como os valores antigos hesitam em dar lugar aos novos. O exemplo mais em linha com os temas discutidos no filme é o dos movimentos anti-feministas: qualquer movimento que visava buscar mais direitos para as mulheres não contava com uma aceitação unânime por parte do público feminino. Mesmo sendo algo que daria mais liberdade a todas, uma parcela considerável de mulheres era contra os protestos, preferindo o mantimento do status quo.

O último ato do filme começa com Melanie e a família de Mitch se preparando para lidar com os ataques que estão por vir. Eles cobrem portas, janelas e buracos, o que os salva do ataque subsequente. Todavia, enquanto todos dormem, Melanie ouve barulhos e decide ir ver o que pode estar acontecendo. Ao vasculhar os cômodos da casa, a jovem chega ao sótão e se depara com um enorme buraco no teto. Centenas de pássaros a atacam, tornando esta a cena mais brutal do filme. No fim, ela é salva por Mitch e consegue sobreviver, mas fica muito ferida. É nesse momento do filme que a mensagem mais macabra é passada, porque é aqui que, pela primeira vez, Lydia aceita Melanie.

Somente quando ela está fraca, ferida e necessitada, Melanie é aceita. Assim, o preço desse acolhimento se caracteriza como a perda de sua independência. Os pássaros atingiram seu objetivo, ao que as características que diferenciavam Melanie do resto das mulheres da cidade foram arrancadas dela. Isso é comprovado quando a jovem não é atacada novamente ao ser retirada da casa — já que Melanie precisa de atendimento médico, Mitch decide levá-la a outra cidade — carregada por Mitch e Lydia. Mesmo com milhares de pássaros agrupados do lado de fora da residência, a violência de outrora não se repete, por não ser mais necessária. Assim como Lydia não tinha mais motivos para ser hostil com Melanie, os pássaros também não tinham mais porque atacá-la: ela deixou de ser uma ameaça.

Apesar de o final parecer “agridoce” (já que Melanie sobreviveu, mas à um custo imenso), vale destacar que não sabemos o que pode ter acontecido após os créditos finais do filme. Ela pode ter se recuperado e se rendido ao papel que a sociedade espera dela, ou ela pode ter continuado a zombar desse papel, optando por continuar a viver da maneira que bem entende. A conclusão da história de Melanie é tão misteriosa quanto a motivação do ataque dos pássaros pode ter sido para alguns que assistiram ao filme. Sem certezas, tudo que sobra ao telespectador é a reflexão, sendo este espaço para interpretação um dos pontos mais valiosos do filme.

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