Tragédia dos Comuns

A ciência econômica e os desafios ambientais do século XXI

Pedro Cytryn
O Veterano
5 min readAug 19, 2020

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Chaminés de Fábrica Fonte Unsplash

Poderia escrever páginas e mais páginas enumerando tudo aquilo que foi percebido ao longo do lockdown global sobre o comportamento da raça humana. Poderíamos falar tanto de questões individuais, sobre lidar com novas ansiedades e medos, quanto questões gerais, como a nova formatação das interações sociais e do trabalho. Porém, algo mais específico saltou aos olhos de todos: fotos de satélite com câmeras especiais denunciando os efeitos do lockdown sobre a poluição. A paralisação de grandes cidades como Nova York, Paris, Londres e São Paulo, bem como da infraestrutura global, nos fez relembrar algo que já sabíamos muito bem: quando estamos a pleno funcionamento, poluímos demais.

Nas ciências econômicas, o problema da poluição do ar e das águas é conhecido como Tragédia dos Comuns. Vale agora compreender que caminhos o pensamento humano percorreu para que pudéssemos propor soluções eficazes para atacar essa questão de forma racional e livre de paixões.

Em meados do século XIX, surgia com força na Europa a corrente filosófica do positivismo lógico, através do Círculo de Viena, que tinha dentre seus representantes nomes ilustres como Bohr, Schrödinger e Wittgenstein. Motivados pelo desejo de definir os limites do ato científico, isto é, definir aquilo que poderia ser tido como ciência ou não, deram luz à chamada Received View. De forma sintética — algo difícil de ser feito com um tema que sucinta os mais prolixos diálogos — , essa perspectiva dizia que todo aparato teórico necessitaria de uma “contra-parte” empírica, isto é, uma observação. Karl Popper, em meio a suas críticas a esta corrente filosófica, definiu, em 1934, a ideia do falseacionismo — toda teoria é pelo menos não-falsa, mas nunca verdadeira tendo que passar por testes empíricos. [1]

À época, a teoria econômica vinha se desenvolvendo fortemente com nomes como Antoine-Augustin Cournot, , Jules Dupuit, Joseph Bertrand, Léon Walras, Vilfredo Pareto, Johann Heinrich von Thunen, Francis Edgeworth e William Stanley Jevons. Tais autores foram profundamente influenciados pela ideia de que a matematização da economia seria o único caminho possível na direção da verificação da validade de hipóteses econômicas. Ou seja, a matemática permitiria aos economistas trabalhar com a realidade — algo que pode parecer paradoxal ao leitor desavisado mas que, como veremos, fará muito sentido. Outros nomes como Kenneth Arrow, Gérard Debreu e Paul Samuelson deram grande continuidade a esse processo nos anos 1950 e 1960.

De forma paralela ao desenvolvimento intelectual que ocorria em tais épocas, a capacidade produtiva do homem também muito se expandiu através da industrialização de inúmeros países. Os motores por trás disso são princípios relacionados ao progresso material e os combustíveis utilizados até então vinham sendo os de origem fóssil — carvão mineral e vegetal e petróleo. A poluição de ‘bens’ indispensáveis aos seres humanos — como o ar que respiramos e a água de rios e oceanos — muito sofreu com esse processo. Atualmente, líderes das grandes nações têm feito, ou ao menos acordado entre si, esforços no sentido de evitar aquilo para o qual cientistas alertam: um aumento de 1,5° a 2° Celcius na temperatura global. Citam-se aqui os encontros de Kyoto, Copenhagen, Rio e Paris.

Intelectuais de séculos passados e problemas ambientais modernos — por que citar ambos em um mesmo texto? Bem, a matematização da economia permite que trabalhemos com problemas que envolvem alta complexidade e que, caso deixados a mera argumentação e a achismos, nos jogariam em labirintos retóricos de onde jamais sairíamos com alguma solução. Como dito no início do texto, a questão da produção de gases de efeito estufa pela indústria é vista na economia como um problema de externalidades e é famosamente denominada de Tragédia dos Comuns.

As tentativas de produzir acordos multilaterais entre grandes nações desenvolvidas e em desenvolvimento, por exemplo no Protocolo de Kyoto, escancarou a natureza econômica do problema: se a perspectiva econômica não for levada em conta, não se chegará a uma solução. Como exemplo disso, tem-se uma política nacional de aumentar a taxação de combustíveis fósseis em um país desenvolvido como a França. Dessa Forma, além de encarecer a vida dos mais pobres, essa política reduz a competitividade de empresas nacionais no mercado internacional. Logo, esses combustíveis ficam mais baratos e tem seu uso aumentado em países subdesenvolvidos no contexto em que cidadãos de países pobres querem desfrutar do mesmo desenvolvimento econômico de países ricos.

Note que a redução do uso em um lugar incentiva o aumento em outro e que temos que lidar com a inexistência de uma autoridade supranacional que possa exercer efeito coercitivo sobre esse desequilíbrio. Políticas unilaterais como a francesa deslocam a produção para países menos responsáveis, levando a uma simples redistribuição da riqueza sem benefícios ambientais significativos. [2]

O economista americano Ronald Coase nos elucidou que direitos de propriedade bem definidos em relação ao bem que gera externalidade — não importa quem tenha esses direitos de propriedade — geram soluções eficientes do ponto de vista do bem estar social.

Baseado nessa ideia, e tendo raízes no Clean Development Mechanism do protocolo de Kyoto, desenhou-se um mercado de emissões de carbono. Este consiste em estabelecer uma cota máxima de poluição que possa ser gerada por cada emissor e em leiloar entre as empresas poluidoras permissões de poluição — que passam a ter um direito de propriedade sobre a poluição. Dessa forma, cria-se um mercado onde empresas que produzem poluentes abaixo da sua cota podem vender suas permissões às empresas que estão acima do permitido. A cota máxima vai sendo reduzida a cada ano e as empresas vão sendo incentivadas a reduzir a sua poluição e a investir em energia renovável.

Atualmente, a União Europeia desenhou o maior mercado de emissões de carbono, conhecido como Regime Comunitário de Licenças de Emissão da União Europeia, que vem se mostrando uma efetiva política na redução de poluentes na atmosfera. Do ponto de vista do bem-estar social, o mercado de permissões de emissão produz, de maneira automática, o padrão eficiente de emissões. [3]

A Tragédia do Uso Comum se refere à tendência da propriedade comum — no caso, o ar que respiramos — de ser sobre-utilizada. Essa é uma forma particularmente predominante de externalidade econômica. O uso de ferramentas matemáticas, impulsionadas há muito tempo por teóricos da ciência, nos permite hoje desenvolver soluções de mercado eficazes para lidar com o problema da poluição e dos gases de efeito estufa. Já é hora de compreender que as soluções para os problemas do século XXI devem ser aquelas que se mostram eficazes, e não aquelas que são baseadas nas boas intenções de quem as propõe.

Será que é isso mesmo? Fonte Unsplash

Referências

[1] GILBOA, Itzhak; Theory of Decision under Uncertainty, Cambridge University Press, 2009, pp. 72–76

[2] TIROLE, Jean; Economics for the Common Good, Princeton University Press, 2017, pp. 195–228

[3] VARIAN R., Hal; Microeconomia: Uma abordagem moderna; Editora Elsevier, 2012, pp. 679–699

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