Um diploma de ineficiência: a expansão do ensino superior e os gastos públicos

Gabriel Thomas
O Veterano
Published in
6 min readJun 17, 2020
Foto disponível em Canva

O Artigo 205º da Constituição Federal estabelece que a educação é um direito de todos e um dever do Estado, destacando três dos importantes papéis que essa desempenha: o desenvolvimento do indivíduo, a formação da cidadania e a qualificação de recursos humanos. Essas funções desempenhadas pela educação justificam os gastos públicos verificados nesse setor, notadamente na esfera do ensino superior.

Nesse sentido, um dos resultados esperados diante de uma expansão desses investimentos direcionados ao nível superior seria um aumento de produtividade da economia, em razão da capacitação de capital humano. No entanto, o que se observa na prática é a estagnação dessa produtividade, mesmo em face do aumento significativo do direcionamento de recursos públicos para o ensino superior brasileiro. Desse modo, cabe questionar como esses gastos públicos estão sendo direcionados, bem como analisar o que poderia estar causando uma ineficiência nesse setor.

O ensino superior em expansão

Dentre as modalidades de graduação do ensino superior brasileiro, aquelas que se destacam são o bacharelado e a licenciatura, que são oferecidas por instituições de ensino públicas e privadas. Vale notar que, em termos relativos, o ensino superior privado brasileiro é aquele que mais absorve matrículas no mundo; dados do Censo da Educação Superior (INEP) indicam que 76% dos alunos ingressantes no ensino superior em 2015 se matricularam em uma instituição privada.

Nessas faculdades particulares, o ensino é pago. No entanto, há dois programas federais direcionados a facilitar o acesso a esses cursos por parte de quem não pode pagá-los: o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Universidade para Todos (Prouni). O primeiro funciona como um sistema federal de crédito, enquanto o segundo confere isenções fiscais a essas instituições privadas.

A atuação da esfera governamental nas últimas décadas foi voltada para a ampliação do acesso ao ensino superior. Essa expansão é evidenciada pelos dados do Censo da Educação Superior, que indicam que, de 2005 a 2015, o número de matrículas em cursos de graduação aumentou em 73,6%.

Diante desse cenário, surge a questão do que de fato está motivando mais pessoas a ingressarem em uma faculdade. A diferença entre a renda média do trabalhador com ensino médio completo e a do trabalhador com ensino superior completo, a qual chamamos de diferencial de renda, pode ser uma das respostas a essa indagação.

Em 2018, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, revelou que a renda de quem conclui o ensino superior é 3 vezes maior que a de quem possui apenas a formação do ensino médio. Esse diferencial de renda é muito mais elevado do que a média nos países europeus, por exemplo, nos quais é de cerca de 50%. Desse modo, o aumento da demanda por ingresso ao ensino superior pode ser explicado por esse benefício em termos de renda e de posição no mercado de trabalho.

O diferencial de renda e o “culto ao bacharelado”

Em uma análise de expectativas, seria razoável supor que os rendimentos mais elevados por parte dos graduados no ensino superior se explicariam por uma maior complexidade/produtividade dos seus ofícios, que exigiriam competências adquiridas por meio da educação universitária. No entanto, os dados da PNAD de 2018 referentes à ocupação profissional sugerem um cenário distinto. Apenas 60% das pessoas formadas no ensino superior trabalham em atividades que podem ser classificadas como de nível superior, enquanto as demais exercem profissões que também poderiam ser ocupadas por indivíduos com formação de ensino fundamental ou médio [1].

Dessa forma, os maiores rendimentos de trabalhadores diplomados que exercem função idêntica àqueles que não ingressaram no ensino superior sugerem que o diferencial de renda seria resultado de uma valorização adicional que o mercado de trabalho dá pelo fato de se ter um diploma — embora esse não seja necessário para o exercício das tarefas que competem nesse emprego.

A teoria econômica indica que essa diferença poderia resultar de uma sinalização que o trabalhador faz ao mercado, em demonstração prévia de sua suposta maior produtividade. No entanto, essa percepção de ‘produtividade’ tem sido gradativamente levada a um extremo por vários setores da sociedade brasileira, de tal modo a revelar um contexto cultural segundo o qual ser bacharel é necessário a fim de que se possa ser um bom profissional.

Nesse sentido, em “Perspectivas para a educação superior no Brasil”, o sociólogo Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE, revela sua visão de que o aumento da demanda por ingressar em cursos de graduação seria explicada em parte pela crescente expectativa de que jovens se matriculem no ensino superior assim que terminam o médio. Esse fator seria então responsável por gerar um verdadeiro “culto ao bacharelado”, que pressiona o número de matrículas e motiva investimentos públicos voltados para a ampliação do acesso a cursos de graduação. Em “Aspectos Fiscais da Educação no Brasil”, a Secretaria do Tesouro Nacional indica que as despesas do Governo Federal com educação superior em 2008 foram de 31,8 bilhões de reais, e, em 2017, foram de 75,4 bilhões — representando assim uma taxa de crescimento real de 10,1%.

Foto de Vasily Koloda, disponível em Unsplash

A ineficiência econômica

O fato de 40% dos graduados em cursos de ensino superior não necessitarem das competências adquiridas em suas graduações a fim de exercerem as suas profissões [1] — haja vista que essas também são exercidas por indivíduos sem graduação — indica um cenário de má alocação de recursos públicos. Qual seria a motivação do Governo Federal em expandir continuamente seus investimentos para a ampliação do acesso ao ensino superior se, depois de formados, tantos desempenham funções que também poderiam ser exercidas por profissionais menos qualificados?

Esse cenário sugere que os investimentos públicos para o aumento do número de vagas no ensino superior não tem sido eficiente na geração do tipo de recursos humanos que o mercado de trabalho demanda. Assim, o papel da educação superior enquanto fomentadora de aumento da produtividade por meio de acumulação de um capital humano cada vez mais especializado se perde, de modo a evidenciar um subaproveitamento de recursos. Além disso, a necessidade de rever a destinação de verbas públicas se vê reforçada diante do contexto de crise fiscal no qual o governo federal se encontra.

Um possível caminho que poderia ser trabalhado pela pasta de educação visando ao aumento da eficiência alocativa dos recursos voltados ao ensino superior poderia ser a sua diversificação, através da consolidação dos cursos superiores tecnológicos, por exemplo. Esses cursos funcionam como alternativas às formações mais tradicionais de bacharelado e licenciatura, podendo ser mais adequados às demandas do mercado de trabalho e às aspirações dos concluintes do ensino médio que desejam entrar em contato mais direto com o ambiente profissional.

Dessa forma, os investimentos públicos na educação superior devem se tornar cada vez mais eficientes na geração de indivíduos qualificados e preparados para enfrentar as adversidades inerentes ao mercado de trabalho.

Nota de Rodapé:

[1] — Essa é uma conclusão à qual o sociólogo Simon Schwartzman chega em “A educação superior brasileira como bem público” (2019), baseado nos dados de ocupação profissional da PNAD contínua de 2018.

Referências:

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Art. 2015. Disponível em: https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_205_.asp

SCHWARTZMAN, Simon, “A educação superior brasileira como bem público”, 2019. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/336370241_A_educacao_superior_brasileira_como_bem_publico

SCHWARTZMAN, Simon, “Perspectivas para a educação superior no Brasil”, Desafios da nação: artigos de apoio, Volume 2, capítulo 25. Disponível em: https://archive.org/details/2018perspectivasedsup/mode/1up

INEP, Censo da Educação Superior, Ministério da Educação, 2015. Disponível em https://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/apresentacao/2015/Apresentacao_Censo_Superior_2015.pdf

COSTAS, Ruth. “‘Geração do diploma’ lota faculdades, mas decepciona empresários”. BBC Brasil, 2013. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/10/131004_mercado_trabalho_diplomas_ru

“Aspectos Fiscais da Educação no Brasil”, Secretaria do Tesouro Nacional, 2018. Disponível em: https://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/318974/EducacaoCesef2/eb3e416c-be6c-4325-af75-53982b85dbb4

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