Histórias da fundação de Roma (Peter Paul Rubens)

Um Império de Cabanas

Do Reino de Roma

Pedro Gaya
O Veterano
Published in
5 min readApr 21, 2021

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Essa foi a única observância sagrada, de todos de origem estrangeira, que Rômulo então adotou, honrando mesmo então a imortalidade conquistada pelo valor à qual seu próprio destino o conduzia.
Quando Rômulo devidamente adorou os deuses, ele reuniu o povo e deu-lhes as regras da lei, uma vez que nada mais que a lei poderia uni-los em um único corpo político.

— Tito Lívio (Ab Urbe Condita).

Você já ouviu falar do Reino de Roma? Ou do Estupro de Lucrécia? Ou do rei Tarquínio? E de Rômulo e Remo? E de Eneias — não o político? É provável que não tenha ouvido falar de muitos dessa lista, mas provavelmente dos bebês da loba. Alteremos as perguntas um pouco.

Já ouviste falar de César? Do Império Romano? De Nero? Calígula? E Marco Aurélio? É provável que você tenha mais referência dessa última lista. No entanto, essa é a lista do império. Roma nem sempre foi um império. Roma foi um reino, uma república e um império. Já houve dúvida sobre a veracidade da existência do Reino de Roma, mas isso está hoje resolvido por evidências arqueológicas. A questão que colocava em dúvida a veracidade do reino é explicada pela professora Mary Beard:

Esse período real se insere nessa intrigante fronteira entre mito e história.

A questão sendo, portanto, que a narrativa registrada nos historiadores romanos, em especial Tito Lívio, não seria propriamente historiográfica, o que produz o posicionamento da citação acima. Em termos históricos, Roma era um aglomerado de estrangeiros fugitivos de todos os tipos, por isso Lívio coloca a nossa epígrafe naquela forma. Sendo desde o início, de modesta forma, cosmopolita, e abraçando a theokrasia (inclusão de deuses novos), Roma já apresenta algo de seu futuro. Havendo inicialmente muitos homens, precisavam conquistar para conseguir mulheres. Talvez seja por isso que a narrativa mítica da loba e Rômulo e Remo seja assim, os filhos da loba. Para contextualizar os desavisados, loba em latim é sinônimo de prostituta, em uma forma menos educada do termo. Tornando os primeiros romanos literalmente os filhos da…

Vale notar que hoje (21 de Abril) é o dia da suposta fundação de Roma. Dito isso, os romanos não foram sempre um império de estradas, legiões e mármore. As origens do império universal são humildes, como explica o professor Oliveira Martins:

Eram rudes os costumes primitivos dos romanos. Viviam em cabanas colmadas. Comiam fóra, em publico, uns bolos de farinha, a mola que ulteriormente ficou sendo usada só nos sacrifícios.

Seis reis os romanos tiveram, para nunca mais, pois que nem mesmo os imperadores permitiriam o uso desse termo, que exalava uma maldição de dias passados. E ser acusado de desejo pelo título de rex anunciava a morte política de qualquer grande nome durante a república. O Estupro de Lucrécia, eis a maldição. O rei Tarquínio o Soberbo foi removido pela aristocracia de Roma em decorrência do estupro da nobre Lucrécia pelo seu filho. Mesmo assim, enquanto cobertos por esse miasma criminoso, os reis eram devidamente creditados pela criação de Roma.

Coloquemos assim: o reino é o prefácio, a república o corpo e o império o epílogo. Eis a nomologia que ordena Roma, contrariamente ao posicionamento do imaginário presente. Novamente nos termos de Oliveira Martins:

a História da republica romana é o paradigma de todas as historias conhecidas.

Muitas vezes esquecem disso, mas os três pilares da civilização Ocidental (filosofia grega, direito romano e moral judaico-cristã) são Roma. A filosofia grega poderia bem ter sido extinta não fosse o seu filtro e continuação romanos. O direito romano já mostra no nome, não há o que explicar. Já a moral judaico-cristã é inserida em Roma. Observe, o Antigo Testamento não é vinculado à Roma, mas o Novo o é. E é no império que transcorre não uma mera mudança religiosa, mas uma revolução de paradigma psicológico na direção do cristianismo. Por isso nos diz Oliveira Martins que os homens da República, por exemplo, não entenderiam a composição temperamental do homem após essa mudança. Assim, é estranho como Roma parece divagar na mente das pessoas como uma memória da infância, vaga e etérea.

Mantendo-se o passado apenas como uma reminiscência longínqua, não deve surpreender que haja tal fenômeno como o presentismo. Imaginariamente, o passado não existe, então tudo acaba sendo tratado como um eterno estado de agora — ou de um passado muito próximo. E, perdida a memória, os problemas já resolvidos precisam constantemente ser processados novamente. Talvez seja por isso que alguns veem ciclos na História, havendo de fato algo que possa assim ser quase nomeado.

Há, por exemplo, as diversas formatações políticas de Roma, que não se limitam aos seus grandes períodos. E há algo evidente nelas, salvo quando da transição cesarista para o império: todas as forças democráticas não eram autorregidas. O arché vinha antes do kratos. Leia-se: havia o que hoje chamamos de Estado de Direito, mas em um sentido um tanto específico. Roma muito se orgulhava, na república, pela sua fundição de princípios de governo, e foi justamente quando esses princípios não se equilibraram que surgiu o império. Quer dizer, quando o sistema de patronato houve de dominar o tecido social romano, cada fração da aristocracia se transformou em um pequeno movimento de poder de massa e do seu líder, ao mesmo tempo. Assim ocorrendo, como explica Voegelin, quando um dos grupos ganhar, formar-se-á o governo de um, mas pelo seu projeto populista — sem princípio — particular. Dito isso, pela própria demanda de conservação do Estado, o império não pôde executar essa doutrina continuamente.

Na República Romana executa-se algo que dificilmente se espera hoje. A elite romana formava praticamente vários Estados, mas não no sentido de domínio, no sentido financeiro. Quer dizer, a aristocracia senatorial era rica de tal forma que desonerava o governo. Muitos políticos tomavam valores próprios para fazer um determinado evento, trazer pessoas para Roma (normalmente para alguma votação) ou para caridade pública, entre outras coisas. Havia muitas funções nas quais os grandes patrimônios, que poderiam ser comparados ao Tesouro de Roma, arcavam voluntariamente com gastos de caráter público. Essa situação se altera no império, quando o imperador passa a ter de concentrar em si toda a obrigação da munificência, parcialmente em decorrência do patronato. Quando o interesse de Roma deixou de ser vinculado a toda a sua elite, tornando o jugo de um pesado demais e, tendo esse todo o aparato de poder, o efeito pôde levar à ruína. Donde se observa o quão relevante é a vinculação da aristocracia com os interesses do Estado, sendo essa uma importante questão de incentivos.

Visto isso, parece evidente que devemos concordar com Oliveira Martins. No aprofundamento do entendimento das estruturas políticas romanas achamos muitas respostas sobre o que hoje nos questionamos, sendo a resposta evidente no estudo nomológico de Roma. Algo que Roma bem demonstra fracassar — e que muito propõem hoje — é a ideia de que tudo pode ser resolvido por compromisso e um processo de consenso. Recentemente a Inglaterra sofreu com essa chaga, corrigida por lady Thatcher. Fato é que a essa proposta falta convicção, até mesmo no pragmatismo — e também autoridade.

Assim sendo, Roma é um tema que extrapola em muito a sua limitação historiográfica. É sobre a própria ordem do mundo. É sobre economia. É sobre ciência política. E é sobre perguntas tão caras, repetidas por 2 mil anos — parece que gostam muito delas. Assim sendo, esse texto é antes de mais nada uma proposta para estudar Roma, e tantas questões milenares.

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