Veep: realidade satirizada ou sátira realizada?

O Veterano
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4 min readMay 5, 2022

Texto por Lucas Vidal

Quando Veep estreou dez anos atrás, era conhecido como uma comédia divertida e leve. Narrando o dia-a-dia da então vice-presidente dos Estados Unidos Selina Meyer, o programa tinha uma abordagem hilária sobre a elite política de Washington D.C., marcada por seus personagens irreverentes e os insultos mais elaborados e gratuitamente cruéis que você já ouviu. Desde o seu início, a série, vencedora do Emmy de Melhor Série de Comédia por quatro anos seguidos, já era um grande sucesso, devido a seus humor irresistível, diálogos inesquecíveis e atuações brilhantes. Sua última temporada, no entanto, revolucionou completamente o propósito da série, elevando-a ao patamar das mais brilhantes sátiras políticas modernas e consolidando decisivamente seu lugar na história da televisão.

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No centro de Veep está Selina Meyer. Recentemente eleita vice-presidente, ela é uma política frustrada, que é consistentemente apresentada como uma oportunista inconsequente, trabalhando com uma equipe notavelmente tóxica, disfuncional e cercada de conselheiros ineficientes. Essa combinação absurda rende boas risadas ao longo das primeiras temporadas, na medida em que eles, em sua posição de muito poder, navegam os assuntos mais importantes de política nacional e internacional da maneira mais amadora e antiética possível, frequentemente levando o espectador a se perguntar “como essas pessoas chegaram onde estão?”

Curiosamente, o espectador nunca descobre a que partido — Democrata ou Republicano — Selina pertence. Isto porque, no final, não importa: Selina é uma narcisista sem princípios, que, no fundo, não apoia nada. Ela fará o que for preciso para alcançar suas ambições e não está nem um pouco preocupada com as consequências. Por isso, inclusive, suas posições mudam constantemente ao longo da série, adaptando-se ao que lhe é mais adequado no momento. Em uma temporada, por exemplo, ela se aproveita do casamento da filha com outra mulher para evidenciar seu apoio à comunidade LGBTQ+; já algumas temporadas mais tarde, ela é de repente uma conservadora ferrenha, que proíbe o casamento gay nacionalmente, em troca de favores políticos.

Assim, durante a maior parte da série, construímos a percepção de que Selina é a pior política possível, cheia de características terríveis que a tornariam uma candidata completamente imprópria para assumir a presidência. Logo, parece, claramente contra intuitivo quando, na última temporada, ela começa a reforçar justamente aquelas características que, em nossa visão, a tornam menos elegível. Depois de escolher um candidato extremamente infantil, antivacinas e racista, como seu companheiro de chapa e, após destruir a vida do único funcionário que realmente se importava com ela, ela finalmente garante a indicação de seu partido e vence as eleições gerais para presidente dos EUA.

Nesse momento, Veep toma um rumo ironicamente sombrio. A sua temporada mais absurda e insana, é justamente quando o programa se torna mais real. A eleição de Selena reflete nitidamente a eleição de Trump, que também trouxe um candidato antes impensável ao cargo mais poderoso do mundo. Como o showrunner explica: “Comecei a me perguntar, em um mundo onde Trump e muitas outras pessoas chegaram ao poder sem pagar o preço por seus erros e equívocos, por que Selina Meyer é a única a pagar o preço? Seria o fato de ela pagar o preço uma noção ultrapassada?”

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O que é mais impressionante nessa mudança de tom é o fato de que a série, na verdade, não mudou em nada. A Selina continua a mesma, a política continua a mesma… a única

mudança foi o ângulo pelo qual víamos tudo isso, a forma como interpretamos. O que anteriormente víamos como uma perspectiva cínica e exagerada sobre nossa sociedade tornou-se um retrato inegavelmente realista de um governo sistemicamente falho, algo que mostra o quão fácil é para os piores dos demagogos terem sucesso. Embora um retrato preciso dos tempos atuais, Veep não deixa de ser um alerta atemporal a qualquer sociedade sobre a relação tênue entre moral e ambição, e as consequências assustadoras de um possível desequilíbrio desses fatores no contexto político.

As setes temporadas de Veep estão disponíveis por streaming no HBO Max.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.