Coluna | Violência sexual contra a mulher

Um ensaio sobre as dificuldades encontradas antes, durante e após a denúncia e um caminho para a solução do problema

O Veterano
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7 min readSep 22, 2021

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Nunca foi sobre o tamanho da saia ou do decote, ou sobre a maneira de sentar ou de agir. Cerca de 58% das vítimas de estupro no país no ano de 2019 não possuíam seus treze anos de idade completos à época da violência. Além disso, 18,5% estavam na faixa etária entre cinco e nove anos de idade. Ainda mais aterrorizante é o dado de que 11,2% das vítimas sequer aprenderam a andar ou falar, possuindo entre zero e quatro anos.

A fonte desses dados é a 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2020 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, referente ao estudo de casos do ano anterior. De acordo com o anuário, o Brasil registra 1 estupro a cada 8 minutos, contabilizando 181 casos de abusos sexuais diariamente. Em oito minutos, enquanto alguém escuta uma música, lê cinco páginas de um livro ou anda 750 metros até a padaria, uma mulher denuncia um caso de estupro no país. Destaca-se que 85,7% das vítimas que prestam queixa de estupro e de estupro de vulnerável têm algo em comum: nasceram mulheres. Adicionalmente, a maioria dos casos foi cometida por pessoas próximas da vítima. Mas, afinal, se a ocorrência é tão comum assim, por que é tão difícil denunciar tais casos? São muitas as respostas para esse questionamento.

Em primeiro lugar, é necessário abordar a insensibilidade policial no momento da realização das denúncias nas delegacias, que acaba por desestimular a ida da vítima a tais espaços, contribuindo ainda mais para a impunidade. Perguntas de teor desmoralizante não são incomuns na abordagem institucional feita às vítimas, aprofundando a culpabilização imprópria dessas que muitas vezes já vivem com um sentimento de auto responsabilização. No lugar de se ater aos fatos do crime, muitos policiais questionam o porquê da vítima estar vestida de determinada forma ou de estar no local do crime na data e hora do ocorrido. Um exemplo prático disso nos foi relatado anonimamente por uma vítima que, ao prestar queixa sobre um estupro ocorrido quando era menor de idade, foi questionada quanto à razão de não ter feito a denúncia anteriormente. A vítima tinha apenas sete anos de idade quando o crime ocorreu, tratando-se, portanto, de uma criança recém-alfabetizada, sem capacidade cognitiva de compreender atos sexuais e plenamente incapaz de reconhecer a violência na prática de um ente próximo, que deveria protegê-la. Uma abordagem como a realizada na delegacia parte da absurda premissa, portanto, de que uma criança de sete anos de idade poderia ter discernimento para compreender que foi vítima de uma violência sexual e que deveria contar aos pais para que esses realizassem a denúncia.

Para além, é também importante ter em mente, quando se fala sobre e quando se lida com mulheres vitimas de estupro ou de abusos, que o rótulo de “vítima” não define ou não deve definir toda a vida da mulher após o incidente. Muitas pessoas que sofreram agressões, principalmente sexuais, não se sentem confortáveis para compartilhar o acontecido com pessoas próximas, muito menos para denunciar e expor o agressor. Um dos principais motivos para isso ocorrer, além do temor em não ser levada a sério ou o medo das repercussões por parte do ofensor, é a vontade de não ser definida pelo acontecimento.

É essencial garantir que a pessoa violentada saiba que um dia específico, um acontecimento, um período de tempo ou uma pessoa não retratam a completude de sua identidade. As mulheres vítimas de agressões certamente encontram dificuldades em seguir as suas vidas, de modo que ser constantemente lembrada do abuso sofrido contribui para o agravamento do problema. Isso não implica, contudo, que o comportamento ideal seria fingir que nada ocorreu. É preciso que a pessoa violentada possa contar com um espaço seguro para desabafar e discorrer sobre seus traumas, contando com o devido acompanhamento. As marcas da violência não deixam facilmente o inconsciente e a vida de uma pessoa, mas é preciso que haja o reconhecimento de que essas mulheres são mais do que marcas de um crime.

Elas possuem ambições profissionais e pessoais, têm histórias diversas, gostam de diferentes tipos de música, leem diferentes tipos de livros, ou talvez nem gostem de ler. Mulheres que sofreram abusos podem passar a ver o mundo de outra cor, mas o mundo não para de girar, e elas ainda vivem nele. Levantam todos os dias para ir trabalhar, para estudar ou para cuidar de alguém próximo. Estão viajando, dançando, ou apenas deitadas. Mulheres que sofreram abusos estão em todos os lugares, falam todas as línguas e vivem depois da violência. Todas têm o direito à sua identidade, que vai muito além de seu estupro ou agressão. Mulheres que foram violentadas não são vitimas de estupro, elas foram vítimas de estupro. A diferença é gritante e vai além do campo semântico. Descrever uma mulher como sendo uma vítima de uma violência e não tendo sido vítima é uma micro agressão que reduz toda a sua existência e relevância no fato cometido contra si.

Em outro aspecto, ao pensarmos em violência contra a mulher, não pode fugir à reflexão possíveis soluções para esse problema. Discute-se comumente qual é o peso de uma denúncia no processo judicial, qual é o nível de eficiência da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) ou mesmo como as pessoas ao redor da vítima podem ajudar.

No entanto, o que raramente se encontra dentro dos holofotes do debate é o protagonismo feminino. Pouco se discute quanto a importância de haver mulheres na linha de frente desse problema. Dentre as dificuldades apresentadas, abordamos o problema das delegacias policiais, primeiro órgão jurídico a ter contato com a vítima. Ao pensarmos em soluções, precisamos entender o quão importante é o contato da vítima com outras mulheres durante o processo de realização da denúncia e do julgamento. É nessa perspectiva que surge a necessidade de uma instituição como a Delegacia da Mulher.

Criadas no contexto político-histórico de redemocratização em 1985, a primeira delegacia da mulher foi instituída no estado de São Paulo após uma série de manifestações em que mulheres denunciaram o descaso de policiais homens nas delegacias comuns diante de casos de violência contra a mulher. Ao ter certeza de que sua denúncia será recebida por outra mulher, cria-se um lugar de segurança que, por sua vez, gera um incentivo às vítimas para recorrerem à justiça. Nesse sentido, esse mecanismo surge como uma das primeiras propostas de fomento ao protagonismo feminino diante de tal tipo de violência. Entretanto, cabe ressaltar que, sozinha, essa instituição não é suficiente para resolver o problema. Atualmente, o Brasil conta com 368 delegacias da mulher concentradas em menos de 10% dos municípios do país, com destaque para em São Paulo, estado que conta com a presença de 124 delegacias especializadas para crimes de violência contra a mulher e estupro. Isso porque, além de apresentarem algumas falhas,tais como a má distribuição de delegacias pelo território brasileiro, o não funcionamento de algumas unidades e a falta de funcionários capacitados, as delegacias são responsáveis especialmente pelo recolhimento da denúncia, cabendo aos demais órgãos do judiciário o julgamento de cada caso.

Além disso, é preciso pensar a vítima também nos aspectos não jurídicos. Isso porque, após a realização de uma denúncia, as vítimas necessitam de acolhimento físico e psicológico. É importante que essas mulheres encontrem, para além de uma resposta judicial, colo e apoio psicológico. É a partir disso que surgem as casas de acolhimento de mulheres, o SOS Mulher, entre outras instituições que têm como público alvo mulheres que buscam ajuda — seja com moradia, com terapia, ou qualquer outro suporte necessário após a denúncia.

Nesse sentido, fica clara a importância de se destacar o protagonismo feminino quando pensamos em possíveis soluções para a violência contra a mulher. A criação do sentimento de segurança para que a vítima denuncie está diretamente ligada a uma maior presença de mulheres dentro e fora do processo da denúncia.

Finalmente, o que podemos concluir com esse breve ensaio é que são muitas as dificuldades enfrentadas pelas vítimas durante o processo de denúncia de casos de violência contra a mulher. Diversas opiniões, sugestões e julgamentos são projetados diariamente sobre o tema, e muitos juízos de valor são feitos. O que se pode afirmar, sem dúvidas, é que a culpa jamais é da vítima; que a não denúncia pode ser explicada por diversas razões; que uma violência sofrida não define uma pessoa; e, por fim, que mulheres devem ser protagonistas em espaços decisórios e de poder no momento de solução do problema. Em dúvida, sempre escute a pessoa que foi vítima. Cada caso de estupro é um caso e você pode não ser capaz de reverter a situação, mas é sempre possível se tornar lugar de acolhimento na vida de uma pessoa que passa por qualquer tipo de violência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BBC. Violência doméstica: 5 obstáculos que mulheres enfrentam para denunciar. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151209_obstaculos_violencia_mulher_rm.. Acesso em: 15 Set 2021

FÓRUM DE SEGURANÇA Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020) https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf. Acesso em: 15 Set 2021

OBSERVATÓRIO DO TERCEIRO SETOR, Mulheres em perigo: Brasil registra 181 estupros por dia, Disponível em:https://observatorio3setor.org.br/noticias

/mulheres-em-perigo-brasil-registra-181-estupros-por-dia/ Acesso em: 15 Set 2021

REDE SOCIAL Delegacias da Mulher em São Paulo: Percursos e Percalços

https://www.social.org.br/relatorio2001/relatorio023.htm Acesso em: 17 Set 2021

UNIVERSA UOL. País tem um estupro a cada 8 minutos, diz Anuário de Segurança Pública. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/10/18/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica-2020.htm. Acesso em: 16 Set 2021

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.