Você já ouviu falar da “Rede Cegonha”?

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6 min readAug 10, 2022

Texto por Alan Gayger

Imagem disponível em: https://unsplash.com/photos/SCteCA0Mf1A

Dia 10 de julho de 2022. Essa foi a data em que o médico anestesista Giovanni Bezerra foi preso por estuprar uma mulher grávida, sedada e totalmente incapaz de reagir. Apesar de horrível, esse caso reflete perfeitamente a violência obstétrica a qual inúmeras mulheres submetem-se todos os anos. Portanto, decorrentes das experiências de abuso e sofrimento advindas desse cenário, os altos níveis de mortalidade materna e infantil não surpreendem.

Nesse contexto, a taxa de mortalidade materna em 2021 alcançou o patamar de 107 mortes por 100 mil nascimentos e a infantil o de 11,5 mortes por mil nascidos vivos. No primeiro caso, o valor está muito longe do estabelecido pelas metas da ONU para 2030 — somente 70 mortes — e resulta de diversos fatores. Dentre eles, os principais são a violência obstétrica, as altas taxas de cesáreas e o aborto realizado de maneira ilegal. No segundo, a taxa também passa muito longe da sua meta — de 3,2 por mil nascidos vivos — demonstrando a incapacidade do país em lidar com o problema. Assim, urge a necessidade de se investir em políticas públicas que aumentem a proteção da mulher e da criança para reverter tal cenário.

Por isso, objetivando reestruturar a rede de apoio à mulher e à criança e diminuir as taxas de mortalidade materna e infantil, surge a Rede Cegonha em 2011. Tal política pública caracteriza-se como um programa que busca cumprir os objetivos expostos acima através da realização de medidas em 4 principais eixos: pré-natal; parto e nascimento; puerpério e atenção integral à saúde da criança; sistema logístico, transporte sanitário e regulação.

No primeiro caso, o programa busca realizar a captação precoce das gestantes e classificá-las de acordo com o seu risco da maneira mais adequada possível, acompanhando-as durante toda a gestação. Um exemplo de medida nesse eixo foi a ação realizada no município de Manaus, em 2019, na qual foram distribuídos pacotes de itens para recém-nascidos para mulheres que realizaram o pré-natal. Esse e outros incentivos contribuem para aumentar a quantidade de consultas pré-natais realizadas pelas mulheres, melhorando o seu bem-estar.

Imagem disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2019/12/31/kit-cegonha-e-lancado-em-manaus-para-estimular-adesao-de-gravidas-ao-pre-natal.ghtml

No segundo, destacam-se as medidas relacionadas ao incentivo aos partos normais, como a criação de Centros de Parto Normal (CPN) e quartos PPP (em que a mulher pode realizar pré-natal, parto e puerpério) por todo o Brasil. Dentre os CPN, o primeiro foi o da cidade de Salvador, criado em 2011 através do investimento de 1,095 milhão de reais, com a expectativa de atendimento de 120 a 150 partos por mês. Tal aspecto busca colocar o Brasil em dia com as evidências científicas da área — as quais sugerem que o parto normal é muito mais seguro e benéfico para a mãe — e diminuir as altíssimas taxas de cesáreas brasileiras. Logo, a política auxilia na diminuição da mortalidade materna e infantil de maneira direta.

No terceiro, o programa incentiva as consultas da mãe no pós-parto e da criança nos dois primeiros anos de vida. Pelo lado da mulher, o cuidado no período pós-gestação é essencial para se garantir a manutenção de sua saúde mental e o seu planejamento reprodutivo, evitando-se que ela tenha outra gestação logo em seguida. Pelo lado da criança, é necessário o acompanhamento de todo o processo de vacinação e de atenção para o surgimento de sinais que possam indicar doenças ou deficiências. Portanto, a política age no sentido de possibilitar tanto à mulher quanto à criança a atenção médica necessária para garantir a manutenção da saúde e do bem-estar.

Por fim, no quarto caso, preza-se pelo Princípio da Não Peregrinação, que estabelece o direito da mulher a um local confortável para que ela possa dar à luz, sem precisar vagar sem rumo para procurar por uma sala. Nessa direção, uma das ações realizadas, ainda em 2012, foi a concessão de um auxílio transporte para as mulheres que realizassem pelo menos duas consultas de pré-natal. O benefício veio em forma de duas parcelas de R$50,00 para aquelas que entraram com o pedido até a 13ª semana de gestação e duas de R$25,00 para as que o realizaram até a 16ª semana. Assim, a política auxilia a garantir o conforto e o acesso seguro ao acompanhamento e a um local de parto.

Todavia, apesar do quadro crítico em que se encontra a saúde materna e infantil brasileira e dos benefícios por trás de políticas públicas como a Rede Cegonha, o Ministério da Saúde decidiu pela criação da Rede de Atenção Materna e Infantil (RAMI) em 4 de abril de 2022. Tal política surgiu com o intuito de substituir a Rede Cegonha e foi promulgada sem a aprovação da CIT (Comissão Intergestores Tripartite). Isso fez com que o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) e o Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde) emitissem uma nota pedindo a revogação da lei e as mudanças que ela trouxe. Dentre as principais, destacam-se a exclusão de ações e serviços direcionados às crianças, da presença do profissional enfermeiro obstetriz e de referências ao aborto e ao enfoque de gênero. Isso faz com que o novo programa jogue novamente os holofotes sobre o médico obstetra e os desvie da mulher e da criança, que deveriam ser protagonistas no momento do nascimento. Por isso, a RAMI descarta o legado criado por sua predecessora, a qual não foi sequer avaliada de maneira adequada nesses últimos dez anos.

Além disso, a criação do novo programa também jogou os gestores da área da saúde em um limbo administrativo. Isso ocorreu pois houve um prazo de 45 dias após a sua publicação para a promulgação de um documento detalhando o funcionamento da RAMI, a qual não aconteceu. Tal cenário estendeu-se até o presente momento, em que são diversos os exemplos de notícias tanto de instituições operando no âmbito da Rede Cegonha como no da RAMI. Vale mencionar que isso tudo vem acontecendo em um contexto no qual faltam estudos e análises avaliando o impacto da política inicial para prover uma base para criação de um novo programa. Dessa forma, fazem-se necessários mais trabalhos buscando entender quais foram as contribuições da Rede Cegonha para enfrentar a mortalidade materna e infantil. Além disso, a análise das possíveis consequências advindas da substituição da Rede Cegonha pelo RAMI também é imprescindível. Só assim será possível ao Estado e à sociedade tomar uma decisão informada quanto ao futuro da saúde e que venha a melhorar a vida de mulheres e crianças por todo o país.

REFERÊNCIAS

Anestesista flagrado em estupro de mulher durante o parto vira réu

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/07/15/anestesista-flagrado-em-estupro-de-mulher-durante-o-parto-vira-reu.ghtml

Brasil teve, em 2021, 107 mortes de mães a cada 100 mil nascimentos

https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2022-05/brasil-teve-em-2021-media-de-107-mortes-cada-100-mil-nascimentos

Fundação Abrinq lança a edição 2022 do Cenário da Infância e Adolescência no Brasil

https://www.fadc.org.br/noticias/cenario-da-infancia-e-adolescencia-no-brasil-2022

Inaugurado no Brasil primeiro Centro de Parto Normal da rede Cegonha

https://veja.abril.com.br/saude/inaugurado-no-brasil-primeiro-centro-de-parto-normal-da-rede-cegonha/

‘Kit Cegonha’ é lançado em Manaus para estimular adesão de grávidas ao pré-natal

https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2019/12/31/kit-cegonha-e-lancado-em-manaus-para-estimular-adesao-de-gravidas-ao-pre-natal.ghtml

Ministério da Saúde assina auxílio ao transporte de gestantes para pré-natal

https://g1.globo.com/politica/noticia/2012/03/ministerio-da-saude-assina-auxilio-ao-transporte-de-gestantes-para-pre-natal.html

Ministério da Saúde extingue Rede Cegonha e cria impasse na política de atenção à gestante

https://sul21.com.br/noticias/saude/2022/06/ministerio-da-saude-extingue-rede-cegonha-e-cria-impasse-na-politica-de-atencao-a-gestante/

PJF realiza reunião com maternidades para fortalecer Rede Cegonha

https://www.pjf.mg.gov.br/noticias/view.php?modo=link2&idnoticia2=76229

Prefeitura de Manaus participa de oficina do Ministério da Saúde para implementação da Rede de Atenção Materna e Infantil

https://g1.globo.com/politica/noticia/2012/03/ministerio-da-saude-assina-auxilio-ao-transporte-de-gestantes-para-pre-natal.html

REDES DE ATENÇÃO À SAÚDE: A REDE CEGONHA

https://ares.unasus.gov.br/acervo/html/ARES/2445/1/UNIDADE_2.pdf

Originally published at https://medium.com on August 10, 2022.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.