Yanomami: Como Ficam as Vidas Indígenas na Pandemia?

Luisa Curcio
O Veterano
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5 min readJul 1, 2020
Na imagem, três Yanomami em caça coletiva, 1974. Por: Claudia Andujar, disponível em El País.

“Acho que não há nessa nação nada de bárbaro e de selvagem, pelo que me contaram, a não ser porque cada qual chama de barbárie aquilo que não é de seu costume” — Montaigne sobre os Tupinambás do Rio de Janeiro, século XVI.

Quem são os Yanomami?

“Yanomami” vem da expressão em yanõmami thëpë que significa “seres humanos”.

Os Yanomami são uma sociedade de caçadores-agricultores localizada no Norte da Amazônia, na fronteira entre Brasil e Venezuela. Esse, porém, é um povo que não entende como legítima a ideia de fronteira e, portanto, as duas jurisdições são uma só terra em sua concepção. O território ocupado pelo grupo de 35.000 indígenas, segundo dados de 2011, possui cerca de 9,6 milhões de hectares.

A sociedade Yanomami é composta de, no mínimo, quatro subgrupos que falam línguas de mesma família, são os Yanomae, Yanõmami, Sanima e Ninam. Sua cultura é rica em tradições e rituais dado que os Yanomami possuem uma forte conexão com a natureza e com o seu plano espiritual. Quando um membro da comunidade morre, por exemplo, o funeral envolve a prática de expor o cadáver para lamentação da comunidade pelo período de dois a três meses, sendo este protegido por um lençol fabricado de folhas de palmeira. O objetivo é cultivar a memória do morto para que este possa retornar à comunidade e protegê-la. Após a exposição, o corpo é cremado e as cinzas são consumidas durante o reahu — festa fúnebre que celebra a morte do indivíduo e a última etapa do ritual funerário.

Festividade Yanomami capturada por Claudia Andujar que "tenta interpretar em imagens a magia desses momentos para os indígenas." Disponível em El País.

Há, ainda, o costume da casa plurifamiliar — chamada de yono ou xapono — que pode chegar a acomodar até 400 pessoas, ou da habitação em aldeias de casas retangulares. Além do compartilhamento de moradias, é muito comum que as famílias compartilhem utensílios. Dessa maneira, a vida privada Yanomami é também pública — atenta-se para a dificuldade em aplicar medidas de distanciamento social nessas comunidades, em especial no contexto da pandemia do coronavírus. Soma-se a isso o seu precário acesso a serviços médicos básicos e a itens de prevenção da doença, como álcool em gel e sabão. É nesse sentido que um estudo promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto Socioambiental (ISA) classifica os Yanomami como “o povo mais vulnerável à pandemia de toda a Amazônia brasileira”.

A atividade garimpeira ameaça as terras e a saúde Yanomamis

A campanha global #ForaGarimpoForaCovid traz à tona um problema que preocupa a sociedade Yanomami desde muitos anos: a atividade ilegal de mineração em suas terras é algo que historicamente trouxe malefícios a essa população. Nos anos 80, foi responsável pela introdução da malária que, na época, matou cerca de 20% da população Yanomami. Hoje, a atividade dos estimados 20.000 garimpeiros ilegais (segundo o cacique Davi Kopenawa) que atuam na área facilita a propagação do novo coronavírus, da mesma forma que anteriormente com a malária.

“Os mineiros estão entrando na terra indígena Yanomami contaminados com a COVID-19. É uma situação muito séria para os Yanomami, e é por isso que estamos fazendo campanha para que os não-indígenas se preocupem com a nossa situação. O coronavírus pode matar muitos Yanomami”, fala Dario Kopenawa, líder da Associação Hutukara Yanomami.

Em especial, a demarcação de terras indígenas e consequente proteção do território Yanomami da atividade garimpeira vem sendo ameaçada pelo contexto político do país. Segundo reportagem do jornal francês Le Monde, em Julho de 2019, essa atividade ilegal seria financiada por “empresas obscuras e mesmo por políticos”. Além disso, a reportagem conclui que o discurso do presidente Jair Bolsonaro de armamento de fazendeiros, de “acabar com a transformação de terras indígenas em santuários e integrar os índios à sociedade, através da exploração de suas terras” é um fator de impulsão das invasões.

"O jovem Wakatha u thëri, vítima de sarampo, é tratado por xamãs e paramédicos da missão católica do Catrimani, em 1976. As obras da construção da estrada na região durante a ditadura militar levou uma série de doenças aos índios, que até então viviam isolados. Várias comunidades foram dizimadas." Por: Claudia Andujar. Disponível em El País.

O caso dos bebês desaparecidos

Segundo o El País, em reportagem do dia 24 de Junho, já haviam sido confirmadas quatro mortes de pessoas da população Yanomami por Covid-19. Recentemente, três bebês indígenas foram enterrados em Boa Vista (RR), sem a autorização das famílias e sem que fosse mesmo notificado às mães o seu paradeiro. Segundo o presidente do Conselho Distrital de Saúde Yanomami e Ye’kuana (Condisi-Y), Júnior Hekuari Yanomami, os bebês teriam sido vítimas do vírus.

"Sepulturas de dois bebês Yanomami sem identificação: oito casos e três óbitos de crianças indígenas por covid-19." Foto por: Emily Costa/Amazônia Real. Disponível em Projeto Colabora.

Conforme afirmado anteriormente, o ritual funerário dos Yanomami constitui parte importante de sua cultura. Desse modo, enterrar um membro de sua comunidade é, para eles, uma grave agressão e violação de seus direitos. Retirar um corpo Yanomami de sua comunidade é uma questão religiosa e enterrá-lo “é arrancá-lo do mundo dos humanos”, conforme dito por Eliane Brum, em reportagem do El País anteriormente citada.

“A gente reconhece o protocolo do Ministério da Saúde, a gente conhece o protocolo sanitário, a gente conhece o protocolo da OMS, isso a gente contou para os yanomami. Os yanomami sabem que esse corpo não vai voltar [se morrer por covid-19], então é difícil o yanomami sair em remoção [para tratar] coronavírus”, disse Dario Kopenawa.

O objetivo dos Yanomami não é, portanto, violar os protocolos de manejo de corpos publicados pelo Ministério da Saúde, mas adaptá-los à realidade cultural desses povos indígenas. Por isso, reconhecem a importância das normas para evitar a contaminação; contudo, da maneira como estão sendo executadas, tornam essa população ainda mais vulnerável.

Outro reflexo de tais protocolos é que indivíduos que estão sendo infectados pelo Covid-19 não querem ser retirados de suas comunidades para tratamentos médicos nos polos base — equivalente a postos de saúde — ou hospitais pois temem que seus corpos não retornem em caso de morte. Com isso, o efeito do protocolo, que antes tinha o objetivo de evitar o contágio, acaba por agravá-lo quando os indivíduos que contraem a doença não são isolados do restante de sua comunidade.

Nestas circunstâncias, as lideranças da população Yanomami reivindicam um protocolo indígena de óbitos por coronavírus, podendo haver higienização e cremação destes para que sejam posteriormente levados de volta a suas aldeias. O desejo das mães indígenas é regressar as cinzas de seus bebês à comunidade para que o ritual seja cumprido.

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Luisa Curcio
O Veterano

Estudante de economia na FGV EPGE e cofundadora do jornal estudantil da FGV Rio O Veterano.