A Oração da Cabra Preta

Inês Barreto
O Voo da Bruxa
Published in
3 min readApr 3, 2022

O famoso Livro de São Cipriano tem uma boa parte que é importada de Portugal e que se mantém mais ou menos igual há 100 anos, quando ele começou a circular no Brasil. Mas tem um item que é produto 100% nacional e que você já deve ter ouvido falar: a Oração da Cabra Preta.

A mais famosa, que aparece encontra com mais frequência nos Livros de São Cipriano, é esta aqui:

“Cabra Preta milagrosa, que pelo monte subiu, trazei-me Fulano, que de minha mão sumiu. Fulano, assim como o galo canta, o burro rincha, o sino toca e a cabra berra, assim tu hás de andar atrás de mim.
Assim como Caifás, Satanás, Ferrabrás e o Maioral do Inferno, que fazem todos dominar, fazei Fulano se dominar, para me trazer cordeiro, preso debaixo do meu pé esquerdo.
Fulano, dinheiro na tina e na minha mão não há de faltar; com sede, tu, nem eu, não haveremos de acabar; de tiro e faca, nem tu, nem eu, não há de nos pegar; meus inimigos não hão de me enxergar.
A luta vencerei, com os poderes da Cabra Preta milagrosa. Fulano, com dois eu te vejo, com três eu te prendo, com Caifás, Satanás, Ferrabrás.
(Reze-se esta oração com uma vela acesa e uma faca de ponta)”

Existem algumas versões diferentes dessa prece considerada maldita. Câmara Cascudo e Artur Ramos, dois importantes folcloristas brasileiros, relacionam a oração com o “credo às avessas”. É a oração católica do Credo, bastante importante na ritualística da Igreja, rezada ao contrário, o que faz dela uma oração demoníaca:

“O credo azaveça (sic) quero rezar, eu creio em Deus padre todo poderoso creador do ceu nem creador da terra, em creio em Jesus Christo, não em Jesus Christo em um só filho e elle o seu filho o qual foi concebido por obra e graça do Espírito Santo elle não foi concebido nem por obra nem por graça nasceu de Maria Virgem nem nasceu de Maria Virgem padeceu no poder Poncio Pilatos foi crucificado morto e sepultado e nem padeceu sobre o que puder nem foi crucificado morto sepultado (…)”

E ainda tem uma versão que nunca saberemos qual é. Foi ouvida por Mário de Andrade nos catimbós do Rio Grande do Norte. Ele tentou até comprar a oração — uma prática comum na região no começo do século XX — mas não rolou. Os catimbozeiros com quem Mário conversou diziam que ela foi criada por Pai Joaquim, um dos mestres espirituais do Catimbó, “negro velho da Índia”. Mas hoje não conseguimos ter absoluta certeza de quem realmente inventou a oração.

O que sabemos é que ela nasce no contexto do Catimbó, na prática das orações fortes e do catolicismo popular nordestino. Em algumas regiões, especialmente mais afastada das zonas litorânea (onde a influência africana é mais forte), o catolicismo se encontrou com as crenças e com a religiosidade dos povos indígenas, e assim nasceram manifestações culturais como a Jurema e o Catimbó.

A Oração da Cabra Preta é uma manifestação disso, que foi depois sendo popularizada até chegar nos livros. Uma prece com base em vários elementos da bruxaria portuguesa — a cabra, a amarração, a fórmula “por Caifás, Satanás, Ferrabrás”, tudo bastante presente em Portugal desde o século XVI. Mas criada e popularizada dentro de um contexto que tem uma influência muito forte dos saberes dos povos originários, e que depois vai se adaptar para um problema bem contemporâneo: ganhar uma grana no jogo do bicho.

Algumas referências

- “Meleagro”, de Câmara Cascudo
- “O Turista Aprendiz”, de Mário de Andrade
- “Aculturação Negra no Brasil”, de Artur Ramos
- “O Livro de São Cipriano: Uma Legenda de Massas”, de Jerusa Pires Ferreira

Quer saber mais sobre o Livro de São Cipriano?

Ouça o podcast Foco de Pestilência, onde falei mais do livro no Brasil. Também tem a participação do Humberto Maggi.

Ouça aqui

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Inês Barreto
O Voo da Bruxa

Redatora e historiadora. Pesquisadora de feitiçarias e macumbas. Mestre e doutoranda em História pela @puc_sp