Bruxa boa não existe. E a História explica porquê.

Inês Barreto
O Voo da Bruxa
Published in
3 min readJul 20, 2016

Sabe a bruxa boazinha? Aquela que ama a natureza e não faz mal aos outros, porque tudo o que você faz volta 3 vezes? Na verdade, ela não existe. Mas calma, existem argumentos para dizer isso.

Desde os anos 60, quando a Wicca caiu no mundo e encontrou a contra-cultura nos Estados Unidos, começou a ser formada essa ideia da “bruxa boazinha”. Até mesmo antes disso, os primeiros divulgadores da Wicca já afirmavam esse papel benéfico da bruxaria — Maxine Sander, Alex Sanders, Doreen Valiente

A Wicca era tida por esses primeiros percursores e pelos que vieram logo depois como um caminho de ligação com a natureza e de transformação e poder pessoal. Ao mesmo tempo que a bruxa se tornava consciente de si mesma e do mundo à sua volta, ela acordava para a necessidade de não ferir o próximo. Isso está explícito em uma das máximas wiccanas, atribuídas a Doreen: “faça o que quiser, sem nenhum mal causar”.

Mas vamos aos fatos: isso é uma visão do século XX. De uns 50, 60 anos para cá. A bruxa nunca foi boazinha — e nem queria ser.

Desde Medeia e Circe na Grécia Antiga, as feiticeiras sempre fizeram algum tipo de maldade, e podemos traduzir isso como ações que subvertiam a ordem social e moral da sua época. Medeia mata os próprios filhos para punir o marido, Jasão. Circe transforma todos os homens em porcos e os mantém em uma ilha. Do ponto de vista de uma sociedade focada no masculino, elas são malvadas. Muito malvadas.

Mas o período em que a bruxa virou alguém ruim de verdade foi naquela transição entre as idades Média e Moderna, quando a Igreja estava combatendo heresias e outras formas de subversão do Cristianismo com tudo, e quando a mulher começou a ser ainda mais controlada e tratada como um perigo.

A bruxaria é super ligada à mulher. Não apenas de um jeito mais simbólico, mas no sentido prático, mesmo. Ela era quem guardava o conhecimento sobre ervas, curas e partos; era associada à queda do Paraíso, comparada à Eva; ela era ligada às superstições da menstruação; ela conhecia os sortilégios de amor e de fertilidade, que sobraram das ancestrais feiticeiras do Mundo Antigo. E ainda existiam as mulheres (e homens também, especialmente os do campo) que eram pagãs mesmo, já que o Cristianismo demorou um tempão para incorporar ou apagar todas as práticas e religiões anteriores a eles. E uma das coisas que gerou esse “apagamento” foram as perseguições.

Toda essa propaganda negativa da bruxa chegou até nós. Ela está presente nos contos de fada, nas histórias em quadrinhos, nos livros de História, na cabeça das crianças e no discurso de religiosos. Mesmo escritores como Jules Michelet, que usaram a bruxa como uma alegoria de revolução e revolta contra o Estado e o Clero, não melhoraram a sua imagem: ela era oprimida e humilhada, mas revidava com truculência, poder e, claro, uma bela ajuda do seu amigo, o Demônio.

Por isso, não adianta… a bruxa má está incrustada na cabeça das pessoas. Mesmo que a Disney crie uma Malévola fofa e defensora da natureza, ela continua sendo a Malévola. Não se quebra, em 40 anos, um estereótipo alimentado durante 3 ou 4 milênios.

Como pesquisadora, eu não deveria das conselhos… mas, se permitem, eu diria para não lutar contra a bruxa má, mas recortar o que há de melhor na representação dela: poder, independência, transgressão. Eram os pontos que Michelet destacou da bruxa, e lições que podemos tirar também de Circe, Medeia, Malévola e tantas outras.

A bruxa boa talvez só exista como a Glinda do Mágico de Oz, mas isso não quer dizer que não exista nada de bom na bruxa má.

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Inês Barreto
O Voo da Bruxa

Redatora e historiadora. Pesquisadora de feitiçarias e macumbas. Mestre e doutoranda em História pela @puc_sp