Bruxaria é falar com os mortos

Uma bruxa pode ser definida de uma maneira muito simples: ela é a mulher que fala com os mortos.

Inês Barreto
O Voo da Bruxa
3 min readSep 26, 2017

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A bruxa de Endor evoca o espírito de Samuel. Obra de William Blake.

O mundo dos mortos é o maior mistério dos humanos: o que existe do outro lado? O que acontece quando morrermos? Como podemos contatar os espíritos, os deuses, e o que eles têm a nos dizer?

A crença no mundo dos mortos é uma comum em todas as mitologias. Todos os povos europeus possuíam seus mundos invisíveis, assim como os ameríndios e os africanos. Para entender esse outro mundo e, principalmente, para contatá-lo, tivemos que criar figuras que fossem a base, o contato entre nós e eles, e é aí que entram as figuras da bruxa, da feiticeira e do xamã.

Por meio de dons sobrenaturais, técnicas, treinamentos e contato com divindades, eles possuem o poder de acessar o mundo dos mortos e criar essa relação entre o que está vivo e o que está do outro lado.

É essa a conclusão central do historiador Carlo Ginzburg no seu clássico "História Noturna: Decifrando o Sabá", um longo estudo sobre o papel simbólico do sabá que leva à conclusão de que a função essencial desse encontro e, por consequência, da bruxaria em si, é o contato com os mortos.

Parece simples, mas para chegar a essa conclusão ele analisou não só as práticas e as crenças das bruxas, mas uma série de elementos da mitologia e do folclore europeus que mostram como, desde a Antiguidade, existe uma classe de seres humanos responsável por fazer a ponte entre o nosso mundo e uma outra dimensão.

Quando olhamos a bruxaria de um ponto de vista histórico, lendo os depoimentos da Inquisição, por exemplo, ou analisando documentos das idades Média e Antiga, vemos que a questão da bruxa como uma ponte entre dois mundos é muito presente e conseguimos ouvir ecos parecidos com o que Ginzburg tentou sistematizar. Esses registros do passado nos mostram que todas as funções tradicionalmente associadas às bruxas têm relação de ser a intermediária entre os mundos: a comunicação com os espíritos, a divinação do futuro, a cura, o parto e o pacto com o demônio.

Das cinco funções, talvez o pacto seja a principal, já que é uma das características mais fortes no imaginário europeu após a Era Moderna. Ele começa a se desenhar na Idade Média e assume quase por completo o domínio da imagem da bruxa graças à Inquisição.

O contato com o demônio é frequentemente ligado aos espíritos malignos ou dos mortos e todos trabalham em favor da bruxa, que é uma espécie de executora e mensageira do mal na terra. O que também a coloca em oposição à Igreja. Enquanto os padres são os contatos entre os santos e os intermediários com Deus, a bruxa é a intermediária do demônio.

Mas isso não se limita apenas à bruxaria da Europa Ocidental, que é fortemente determinada pelo Cristianismo. Outras crenças, como as africanas e as siberianas, têm figuras similares que atuam como a ponte entre os mundos. Os feiticeiros são tão presentes que, ainda hoje, existem perseguições a eles em locais como Congo, Tanzânia, África do Sul e outros países da região Subsaariana.

Já nas regiões do Leste Europeu, apesar dos relatos de bruxaria, o personagem normalmente associado a esse ofício é o xamã, que entrou na mente ocidental de uma forma exótica e até benéfica. Mas, no fundo, existe um certo componente sexista nessas qualidades, já que o trabalho da bruxa e do xamã é essencialmente o mesmo, mas um contexto misógino, cercado de perseguição e de culpa feminina fixou mais a ideia da bruxa como maléfica do que como uma mensageira neutra.

Em comum, ambos guardam o status que suas habilidades trazem dentro das suas comunidades. Mesmo sendo escorraçada, a bruxa é útil dentro do seu contexto como a mulher que consegue executar todos os ofícios que já falamos, ao mesmo tempo em que isso tudo faz dela o bode expiatório e a válvula de escape de tensões sociais, mantendo o equilíbrio da sua comunidade.

Essa função básica, quase quintessencial, nem sempre é explorada por pesquisadores e por bruxos atuais. Ela fica submersa entre tantos outros temas que o estudo da bruxaria desperta, mas é uma guia essencial, uma forma de entender o papel social e cultural dessa figura de uma nova maneira e que abre mil possibilidades de leitura.

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Inês Barreto
O Voo da Bruxa

Redatora e historiadora. Pesquisadora de feitiçarias e macumbas. Mestre e doutoranda em História pela @puc_sp