De Oshorongá à Pombagira

Inês Barreto
O Voo da Bruxa
Published in
5 min readNov 18, 2019

Pomba-gira é encruzilhada, saia vermelha, champanhe e vela preta. Nos terreiros, ela vem para resolver problemas amorosos, trazer ou afastar amor, quebrar feitiços ou amarrar e desamarrar pessoas. Mas na história dessa entidade tão famosa nos terreiros do Brasil existem muitas camadas, em que se misturam as divindades de origem africana e uma boa dose das crenças dos brancos.

O nascimento de exu-mulher

Considerada a versão feminina de exu, pomba-gira é cultuada na Umbanda e na Quimbanda, e até em algumas casas de Candomblé. Assim como sua contraparte masculina, ela é daquelas entidades consideradas mais próximas dos humanos, cuidando principalmente de realizar os desejos e as questões amorosas. Exu-mulher é feiticeira e pode fazer e desfazer feitiços para ajudar em tudo que envolve a vida na terra.

Não é possível ter certeza de como o seu culto surge, mas sabemos de vestígios no Rio de Janeiro pelos anos 1930, e com certeza em 1960 ela já estava difundida em São Paulo. Diferentemente de entidades como Zé Pilintra, que migrou das tradições de Jurema e Catimbó, a pomba-gira é provavelmente uma entidade nascida e criada nas macumbas cariocas, que depois seriam assimiladas e organizadas na Umbanda. Daí ela parte para outras tradições de matriz africana, o que mostra a profunda circularidade que existem nesses espaços religiosos.

Vale lembrar que existe uma diferença entre o exu na Umbanda e na Quimbanda para o exu no Candomblé e no Ifá. Se nas primeiras ele é uma entidade, um ser humano que já viveu na terra e hoje trabalha do outro lado, para as outra duas ele é um orixá. Exu é o nome dado pelos povos de origem nago-yorubá, mas como divindade ele se apresenta em outras culturas africanas, com diferentes nomes, como Elegbara, Aluvaiá ou Bongbogira — que é uma das possibilidades da palavra Pombagira. Em todas, seu arquétipo é o do trisckster.

No Brasil, exu se torna também uma categoria de espíritos, pessoas que viveram e morreram e que, pelos mais variados motivos, foram andar no caminho das trevas para encontrar a sua evolução espiritual. Aqui já vemos uma influência da ideia de progresso e evolução que a Umbanda carrega do espiritismo kardecista.

A Cristianização do pensamento

Quando os orixás nagos-yorubás chegaram com os escravizados nos navios, tiveram seu culto cristianizado. Não só no sentido de se cultuar um santo como orixá, mas também na forma como a religião foi sendo construída na cabeça dos devotos. O cristianismo é uma boca que vai devorando outras formas de ver o mundo e foi isso que ele fez com as matrizes indígenas e africanas: colocou todos dentro dos seus padrões de vida, de moral e de gênero, apagando outras formas de se pensar as divindades em um longo processo de assimilação.

Assim, o Exu e a Pombagira se tornaram aqueles que se desviaram, que fizeram algum mal em vida e agora precisam trabalhar no mundo espiritual para compensar seus descaminhos. Ainda hoje, o arquétipo mais trabalhado da pombagira na Umbanda é o da prostituta. A mulher da vida, da rua, que teve que conquistar o seu lugar em um mundo masculino. Essa é a primeira camada do papel que ela assume no imaginário mágico e religioso brasileiro: a nossa representante da feminilidade transgressora, fora da norma cristã, que não encontra lugar em outros espaços religiosos.

Em oposição a isso, as orixás femininas assumiram cada vez mais as duas características básicas da feminilidade cristã: maternidade e bondade. Yemanjá como a grande mãe, Nanã como avó dos deuses, Iansã como guerreira protetora, Oxum como mãe amorosa. Os outros aspectos considerados indesejáveis nas mulheres foram sendo perdido ao longo do processo de colonização, conseguindo discretamente se manter em alguns espaços. Eles são representados pelo culto o das grandes mães feiticeiras, as yá-mi Oshorongá.

As mães ancestrais

As Oshorongá são as entidades mais antigas que as deusas, mães ancestrais que simbolizam a origem do poder de concepção do útero. Seu culto sobreviveu em alguns candomblés, mas nunca foi de grande popularidade no Brasil. Todas as orixás são Oshorongá, e todas as pessoas que nascem com útero tem uma ligação com elas, que representam o poder da terra, um domínio feminino nessa concepção de mundo.

Porém, elas não são entidades maternais. São feiticeiras, que tem rixas com Oxalá e vigiam os humanos. Em sinal de respeito e como uma forma de agradá-las, são sempre chamadas de yá-mi, “nossas mães”. Como em diversas mitologias, as deusas podem criar e matar, replicando a mesma ideia de dualidade que existem em divindades da terra de várias mitologias, inclusive da própria Nanã — ao mesmo tempo que ela é a dona do barro que Oxalá usou para criar a humanidade, é também aquela que controla Iku, o orixá da morte.

Mas conforme as orixás femininas foram sendo cristianizadas, elas foram assumindo elementos cada vez mais maternais, absorvendo o lugar das santas e perdendo suas características de feiticeiras. A vaidosa Oxum se torna Nossa Senhora da Conceição, e seu mito de uma deusa ardilosa e inteligente vai se perdendo para manter apenas os traços vaidosos e maternais. O mesmo fenômeno acontece com Iemanjá, deusa do rio Ogun, fértil, sensual e com traços de guerreira, assume um papel de mãe casta conforme vai se ligando à Virgem Maria.

Assim, todos os aspectos das deusas considerados negativos, inclusive a feitiçaria de Oshorongá, foram eliminados. Ou, pelo menos, jogados para um canto onde não poderiam ser vistos. Mas como uma religiosidade que se adapta e se recria, essas tradições deram conta de criar uma nova figura, que acabou ficando com o papel da feiticeira na mitologia da Umbanda — as pombagiras. Tudo o que as mães ancestrais representavam, estão, hoje, nessa visão contemporânea de poder feminino e transgressor.

Feitiçarias de África e de Europa

Mas ainda falta um ingrediente brasileiro neste feitiço: o das brancas que trouxeram a feitiçaria europeia até nós. No Brasil, com todos os elementos que nos formaram como colônia, a pombagira também ganhou seu quinhão. Sua identificação com ciganas, suas roupas e seus feitiços trazem muito do que já era praticado em Portugal e que aqui aparece desde o século XVIII.

Não é à toa que nossa mais famosa comadre é Maria Padilha, que chegou aqui como uma das padroeiras das feiticeiras espanholas e portuguesas. Sua fórmula mágica, na qual se chama por “Maria Padilha e toda a sua quadrilha” já foi registrada nos processos de Inquisição brasileiros levados para Lisboa no século XVIII, e na Terra de Santa Cruz a amante do rei de Castela, que supostamente matou sua rival com magia, virou a rainha dos terreiros.

Ela traz para a nossa realidade o que os europeus já haviam construído sobre as mulheres que não eram boas cristãs: feiticeira, prostituta, mulher da vida, alcoviteira, escrachada, falastrona… em algum momento, essas tradições e práticas, africanas e portuguesas, se juntaram e criaram o barro primordial dessas filhas diretas das Oshorongá.

Fontes deste ensaio:

Reginaldo Prandi: “Pombagira e as Faces Inconfessas do Brasil”
Cristiane A. De Barros:Iemanjá e Pombagira: o feminino na Umbanda
Marlyse Meyer: “Feitiços de Amor”
Lísias Negrão: “Entre a Cruz e a Encruzilhada: a formação do campo umbandista em São Paulo”

Foto de Daniel Apodaca para o Unsplash

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Inês Barreto
O Voo da Bruxa

Redatora e historiadora. Pesquisadora de feitiçarias e macumbas. Mestre e doutoranda em História pela @puc_sp