Feitiçaria no Brasil #2 — Feitiçaria, religiões africanas e perseguição

Inês Barreto
O Voo da Bruxa
Published in
4 min readAug 2, 2021

Mandinga, feitiço e fetiche

Quando os portugueses chegaram na África, lá pelo século 15 (antes de virem para o Brasil), eles encontraram religiões que não tinham ideia do que eram. Naquele momento, a associação que fizeram foi com a feitiçaria, usando referências da sua própria cultura.

Na cabeça deles, cultuar ídolos e forças da natureza era uma forma de bruxaria. Não ter um deus único, ou ver deuses em pedras, árvores e montanhas era crença de feiticeiros, uma fé errada. Muito diferente do catolicismo.

Os portugueses também passaram a usar a palavra mandinga como sinônimo de feitiço. Os mandinga eram islâmicos e usavam trechos do Corão em bolsinhas penduradas no pescoço. Os europeus passaram a também usá-las, e aos poucos elas foram ganhando outros elementos — pedras de altar, ossos, orações cristãs. Começaram a ser chamadas de “bolsas de mandinga”, e aos poucos mandinga passou a definir magia.

Quando chegaram os europeus protestantes, lá pelo século 17, a coisa toda só piorou. Franceses e ingleses entenderam a palavra “feitiço” do português como “fetiche” (fetish). Eles achavam que o fetiche era o ídolo em si, um falso deus criado para ser adorado por pessoas menos civilizadas do que eles. E aí criaram o termo, que foi usado até o começo do século 20 com esse significado.

Reparou nos colares da moça? São as bolsas de mandinga, que hoje também chamamos de patuá

O feitiço no Brasil

Isso tudo veio para o Brasil. Ou os africanos já chegavam aqui cristianizados, ou viram suas religiosidades serem tratadas como feitiço e combatidas. E isso não foi uma exclusividade de quem cultuava orixás e nkisis, mas os islâmicos também sofreram o mesmo.

Tirar a fé de uma pessoa é uma forma de quebrá-la, de deixá-la vulnerável e de poder escravizá-la com mais facilidade. Também é uma quebra das comunidades, dos laços, o que tira a força coletiva.

As práticas tradicionais como o corte ritual de animais, os ritos coletivos, a oferta de alimentos e, claro, o culto a Exu, são sempre associados ao feitiço de forma pejorativa. Exu, então, que desde o primeiro momento foi associado ao Diabo católico, já que nada que os europeus tinham nas suas religiões cristãs era parecido com ele — só o diabo mesmo.

No Brasil, quem cultua Exu é feiticeiro. E isso é tão intricado que os próprios exus na Umbanda se identificam muitas vezes como feiticeiros, magos e bruxos.

As festividades negras sobrevivem no Candomblé e na Umbanda

Feiticeiro é macumbeiro

Aqui também nós nos apropriamos da palavra macumba, originada do quimbundo e que significa “reunião de cumbas”. O cumba é o sacerdote, o velho sábio. A princípio a macumba era o termo usado para falar dos cultos dos povos de origem bantu, mas aos poucos ela virou um sinônimo para qualquer culto negro. E, claro, para a feitiçaria.

Sempre que alguém levanta o dedo no Brasil para acusar outra pessoas de bruxa, de feiticeira ou de macumbeira, ela está pensando nisso. Na mãe de santo, no feiticeiro negro. Ela não tá pensando em Inquisição e fogueira, e muito menos nas tradições contemporâneas de feitiçaria.

Por isso, quando a gente fala de perseguição à feitiçaria no Brasil, a gente está falando de perseguição a religiões africanas. Desde sempre os brancos chamaram a religião dos outros de feitiço — ou seja, algo relacionado ao demônio, a coisas ruins, ao que é prejudicial.

Esse é um dos aspectos do racismo religioso do nosso país. E se antes ele foi institucionalizado na lei, hoje ele tem o respaldo de juízes, militares, policiais, e das muitas camadas de poder cristão que ainda perseguem as religiosidades negras e indígenas.

Para se aprofundar

- Artigo Feitiçaria: Terminologia e Apropriações, da antropóloga Suzana Pepê, sobre os conceitos de feitiçaria e fetiche. Da revista Sankofa, publicada pela USP. Leia aqui.

- O verbete M de Macumba da Revista Serrote, escrita pelo historiador carioca Luiz Antonio Simas, um divulgador da história do samba e da macumba no Brasil. Leia aqui.

- O livro Sorcery in Black Atlantic, organizado por Nicolau Parés e Roger Sansi, com artigos de historiadores e antropólogos discutindo a feitiçaria nas Américas e na África. Em inglês e dá para encontrar em “meios alternativos”

- As imagens que ilustram este texto são de Carlos Julião, pinto italiano que retratou o Brasil dos 1700. Leia aqui sobre ele.

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Inês Barreto
O Voo da Bruxa

Redatora e historiadora. Pesquisadora de feitiçarias e macumbas. Mestre em História pela @puc_sp