Historiografia da Bruxaria: uma introdução

Inês Barreto
O Voo da Bruxa
Published in
9 min readSep 15, 2020

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Antes de começarmos, algumas explicações

Historiografia significa, literalmente, escrita da história. É como chamamos o que os historiadores escrevem a partir de análises de fontes históricas. Essas fontes podem ser qualquer coisa: livros, documentos oficias de estado, músicas, quadros… as pesquisas que nós produzimos analisando essas fontes são a historiografia de um tema.

Neste texto eu quero fazer uma introdução pela historiografia da bruxaria, passando por alguns trabalhos importantes. A maioria usou como fontes processos da Inquisição. Hoje temos historiadores que pesquisam outros tipos de documentos (como eu), mas o grosso ainda é sobre o período de maior perseguição na Europa, durante a Idade Moderna, entre os séculos 15 e 17.

Não falei de todos e nem era meu objetivo, mas com esses nomes importantes vocês já podem ter referências das ideias e hipóteses que temos hoje.

Primeiros estudos

Os primeiros estudos sobre magia e bruxaria são do século XV, quando os intelectuais começaram a se preocupar de verdade com a feitiçaria e começaram a tratá-la como um problema. Antes disso, o foco eram as heresias católicas. Nessa época, a bruxaria de torna uma questão teológica séria e eles buscaram explicações sobre a natureza do que era a magia.

A princípio, a magia foi dividida em dois tipos: a natural, que vinha de elementos da natureza e por isso não era maléfica; e a diabólica, que vinha dos poderes do demônio. Aos poucos, toda a magia foi tomando o caráter demoníaco e o pacto ou a influência de demônios passou a ser a única explicação, denominada pela palavra em latim maleficium.

Essa explicação vai sendo questionada até que, no século XVIII, com o Iluminismo, é abandonada de vez. Aqui a bruxaria passa a ser tratada como uma superstição, um mito ou um problema psiquiátrico.

Para a historiadora Laura de Mello e Souza, a mudança mais significativa na interpretação sobre a bruxaria vem no século 19, um período importante para as pesquisas. Segundo a classificação proposta por ela no livro Feitiçaria na Idade Moderna, vamos dividir os historiadores da bruxaria em três categorias: românticos, racionalistas e antropológicos.

Os Românticos

A corrente romântica acredita na existência da feitiçaria.

O pai dessa linha de análise é Jules Michelet, com o ensaio Le Sorcière, publicado em 1862. Para ele, o Diabo é uma metáfora, um símbolo de resistência política, especialmente para as mulheres camponesas, e o culto aos espíritos da natureza se torna um demoníaco quando a Igreja e os nobres passam a oprimir os camponeses.

Michelet vai na linha de outros autores da época, que entenderam a bruxaria como uma série de práticas de culto a natureza pré-cristãos, que seriam a religião original dos povos europeus. Esses autores são nacionalistas e vão defender a ideia de que todos os povos que tinham uma mesma cultura deveriam se unir em um mesmo estado.

Em 1890, as teses da sobrevivência da bruxaria ganham força total com o livro O Ramo de Ouro, do etnólogo britânico James Frazer. Ele influenciou muito os antropólogos e historiadores do começo do século 20 e é fundamental para os movimentos neopagãos. Frazer examina um suposto culto à deusa Diana na Itália, e vai fazer uma série de comparações com outras práticas mágicas e religiosas que pedem a fertilidade da terra pelo mundo. Hoje esse livro é visto como sendo problemático e não adotamos mais as hipóteses e métodos de comparação dele, mas ainda é uma obra que precisamos conhecer.

Muito influenciada por Frazer está Margaret Murray, que escreveu O Culto das Bruxas na Europa Ocidental (1922) e O Deus das Bruxas (1931), dois livros muito importantes para a formação da Wicca e do neopaganismo do século 20 e 21. Partindo da ideia de que a bruxaria era um culto de fertilidade, Murray entende que ela sobrevive como uma resistência cultural e religiosa e que o diabo era uma divindade pagã deturpada pelo Cristianismo. O problema de Murray é que ela achou que a bruxaria fosse uma religião organizada, com cultos, ritos e crenças iguais que sobrevivem por séculos em toda a Europa. Hoje, essa ideia também não é mais aceita.

Os herdeiros da corrente Romântica hoje em dia são Carlo Ginzburg e Jeffrey Russel. Ambos entendem que a feitiçaria possui traços de cultos pagãos que sobreviveram à cristianização da Europa. Ginzburg encontra esses traços em Os Andarilhos do Bem (1966), sua pesquisa sobre um culto rural de fertilidade no Friuli, na Itália. Depois, complementa sua hipótese em História Noturna (1989), onde ele fala que o mito do sabá é uma reminiscência de cultos de êxtase xamânicos. Já Jeffrey Russel, em Bruxaria na Idade Média, defende a origem da feitiçaria em uma heresia medieval anticristã e que acabou sendo impulsionada pela perseguição da Inquisição. Russel ficou famoso aqui no Brasil com o livro História da Bruxaria, um compilado das principais ideias, mas que não é um livro tão importante na historiografia.

O que todos eles têm em comum? A defesa da existência concreta da bruxaria e um trabalho para encontrar vestígios dela nas fontes históricas. Eles formaram as suas interpretações sustentando que a bruxaria tem raízes nas religiões pré-cristãs da Europa, especialmente anglo-saxãs, germânicas e celtas.

Os Racionalistas

Os racionalistas procuram explicações concretas sobre os fenômenos registrados como bruxaria pela Inquisição. Eles pensam a temática da bruxaria especialmente a partir da psicologia histórica, influenciada por Marc Bloch e Lucien Fébvre, dois historiadores muito importantes por terem fundado a Escola dos Analles, uma corrente da historiografia que revolucionou a produção de todos os historiadores a partir dos anos 1940.

O principal nome aqui é Robert Mandrou. Ele estudou as mentalidades na Europa Moderna em Magistrados e Feiticeiros na França do Século XVII. Seu foco principal é pensar em uma ruptura nas crenças dos franceses, onde a bruxaria passou de uma prática rural e popular para urbana e elitista. Ele identificou também uma mudança do foco no pacto demoníaco para casos de possessão e concluiu que esse período foi fundamental para criar uma visão racional da bruxaria e acabar com o mito no pacto.

Outro francês importante é Jean Delumeau, autor de História do Medo no Ocidente, que estuda o medo em uma série de temas do imaginário europeu. Para ele, a crença e o medo das bruxas foi uma forma da Igreja e das elites se protegerem e se fortalecerem diante das práticas coletivas e ainda cheias de paganismo dos camponeses.

O alemão Norman Cohn defende que as bruxas foram uma produção da imaginação dos europeus. Em Os Demônios Internos da Europa (1975), ele explica que a crença em malefícios era uma projeção dos próprios medos e frustrações dos cristãos, que precisavam de um bode expiatório. Assim, heresias e práticas de magia foram se transformando na crença em bruxaria, tendo interpretações diferentes para padres e intelectuais do que tinha para as pessoas mais simples.

Podemos colocar entre os racionalistas os positivistas que, mesmo sendo contemporâneos aos românticos do século 19, chegaram a conclusões diferentes deles. Como o norte-americano Henry Charles Lea, autor de History of Inquisition on Middle Ages (1888), para quem as mulheres se julgavam bruxas pela própria influência da Inquisição.

O que eles têm em comum? A feitiçaria é entendida como uma elaboração mental. Pode ser uma crença sem base na realidade, uma superstição, uma ideia que surge a partir de influências de fora ou de um problema psiquiátrico. Mas que não existiu na realidade.

Os Antropológicos

Os pesquisadores com viés antropológico acreditam que não é possível definir uma única verdade sobre a bruxaria. Eles propõe uma interdisciplinariedade entre a História e Antropologia e usam dos trabalhos de antropólogos como Evans-Pritchard, Claude Levi-Strauss e Bronislaw Malinowsky.

Dois dos principais nomes aqui são os ingleses Keith Thomas e Alan MacFarlane. Estudando a feitiçaria na Inglaterra, eles mostram diferenças com relação às crenças da Europa continental. MacFarlane, em Feitiçaria na Inglaterra dos Tudor (1970), coloca que a bruxa era parte importante das sociedades rurais e que não era temida inicialmente, mas era um fator importante da ordem social. Já Thomas, em A Religião e o Declínio da Magia (1971), defende que a Reforma Protestante da Inglaterra tirou a sensação de proteção que a ritualística e as práticas católicas davam às pessoas, e que isso criou medo e gerou a perseguição às figuras que antes eram toleradas pelas suas comunidades — as curandeiras, benzedeiras e bruxas.

A mesma tendência para uma interpretação antropológica está no espanhol Caro Baroja, autor de Las Brujas Y Su Mundo (1961), um estudo sobre a bruxaria no país Vasco. Para ele, a realidade é um conceito subjetivo e que varia em casa sociedade — portanto, a bruxaria pode ser uma realidade em uma comunidade, mas não em outra. Em Portugal, temos Francisco Bethencourt que segue uma linha parecida em O Imaginário da Magia (1987), onde ele extrai dos depoimentos das bruxas processadas pela Inquisição os vestígios das suas práticas e das suas ideias sobre magia.

Já que falamos dos ibéricos, precisamos citar a importância de de José Pedro Paiva, que fez pesquisas sobre a Inquisição portuguesa. Paiva e Bethencourt sempre lembram que, em Portugal, a bruxaria não foi a principal causa dos processos na Inquisição e que a grande questão eram as comunidades não-cristãs. E isso é importante para entendermos que a bruxaria tem características regionais, como defendiam Thomas e MacFarlane.

O que todos têm em comum? Eles entendem que a bruxaria faz parte de estruturas de mitos e crenças e que elas mudam em cada comunidade, influenciadas pelos contextos culturais e sociais de cada lugar.

Mais uma corrente: a feminista

A partir da década de 1960 surgem interpretações sobre a bruxaria e a Inquisição a partir do ponto de vista da produção acadêmica feminista.

Essas autoras defendem que a feitiçaria foi um conhecimento tradicional das mulheres, ligado à medicina, e que aos poucos foi tolhido por normas científicas e interesses econômicos que tornaram uma prática comum em algo perseguido e demoníaco. Também é colocado que a Inquisição foi uma forma de controlar o corpo feminino e um dos instrumentos que fez as mulheres pararem de trabalhar como pedreiras, agricultoras e parteiras para que ficassem com o trabalho doméstico e a maternidade. Uma autora que está em alta nessa corrente é Silvia Frederici, mas antes dela tivemos Barbara Ehrenreich, Deirdre English e a brasileira Rose Marie Muraro.

Histografia brasileira

Os historiadores brasileiros começam a olhar para a feiticeira nos anos 1980, com os livros Trópico dos Pecados, de Ronaldo Vainfas, e O Diabo e a Terra de Santa Cruz, de Laura de Mello e Souza. Eles vão estudar os documentos das missões que a Inquisição mandava para o Brasil. No caso de Laura, ela ainda vai explorar a ideia de que o Brasil, primeiro entendido pelos portugueses como um paraíso na terra, passa a ser tratado como uma terra do inferno.

Outro importante autor brasileiro é Carlos Roberto Nogueira, que publica O Imaginário da Magia, uma espécie de manual. Nogueira começa estudando a formação da ideia de demônio na Idade Média, mas depois abre um pouco o leque e vai explicar diversos pontos sobre a bruxaria até chegar no século 20.

Uma análise diferente sobre a Inquisição que não foca nas bruxas é de Anita Nowinsky. Com A Inquisição e Cristãos novos na Bahia, ela vai na mesma linha de José Pedro Paiva em Portugal: os tribunais portugueses tiveram foco na perseguição aos judeus, não nas feiticeiras. Por causa disso, muitos judeus vinham para o Brasil, ou por opção ou por punição legal, e isso fez deles uma das principais etnias durante o período colonial.

Ainda falando de Inquisição, temos também o antropólogo e historiador Luiz Mott, que pesquisou a Inquisição especialmente na Bahia e levantou outros aspectos das perseguições que ninguém tinha estudado antes, como processos contra homossexuais.

Tem ainda dois historiadores brasileiros que estão produzindo e que para mim merecem muito serem lidos. Danielle Wobetto, com a tese Um Cartório de Feiticeiras: Direito e Feitiçaria na Vila de Curitiba (2015), que estuda a bruxaria a partir de documentos da justiça comum da Vila de Curitiba no século XVIII, que na sua maioria processavam mulheres indígenas. E Marco Antônio Lopes Veiga, autor da tese Sob a Capa Negra: Necromancia e Feitiçaria, Curandeirismo e Práticas Mágicas de Homens de Aragão (2011), sobre práticas mágicas masculinas na península Ibérica e que trata de magia escrita, necromancia e curandeirismo.

Eu pesquiso bruxaria há quase 10 anos e hoje vejo que a produção brasileira sobre o tema cresceu bastante e tem muitos pesquisadores excelentes desenvolvendo seus trabalhos. Recentemente eu também comecei a estudar pesquisas sobre a feiticeira brasileira e as encantarias — Cabula, Catimbó, Jurema, Umbanda, Candomblé, Quimbanda. Mas como ainda estou chegando nesse tema, vai ficar para um outro texto.

Photo by Natalia Y on Unsplash

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Inês Barreto
O Voo da Bruxa

Redatora e historiadora. Pesquisadora de feitiçarias e macumbas. Mestre e doutoranda em História pela @puc_sp