O mito de Aradia

Inês Barreto
O Voo da Bruxa
Published in
6 min readNov 21, 2016

entendendo um dos textos mais influentes da Wicca e do neopaganismo

Se você, em algum momento da sua vida, estudou Wicca, você leu Aradia, ou o Evangelho das Bruxas, de Charles Leland.

Aqui vai um pequeno dossiê sobre o livro, para você que leu entender um pouco mais de onde todas aquelas ideias surgiram e porque é tão importante compreendê-las.

O livro

Aradia, ou O Evangelho das Bruxas foi escrito por Charles G. Leland e publicado em 1889. Leland era o que se costuma chamar de folclorista, um pesquisador de povos, costumes e culturas que eram considerados quase perdidos e que precisavam ser preservados, segundo a visão dos intelectuais daquela época. Esse tipo de pesquisa foi bem comum entre os séculos 18 e 19 e influenciou os estudos de antropologia e sociologia que vieram depois.

Capa da primeira edição do livro "Aradia — O Evangelho das Bruxas", de 1899

O livro é um conjunto de histórias que o autor supostamente recebeu de uma bruxa italiana, uma "strega", chamada Madalena, integrante de um grupo de feiticeiras que cultuavam uma bruxa ancestral, Aradia. O que a mulher teria entregue era uma coletânea de mitos que sintetizam as suas crenças e contam como a deusa da lua, Diana, teve uma filha com o seu irmão, o deus Sol Lúcifer. Essa divindade foi enviada à terra para ensinar a feitiçaria aos pobres, para que eles usassem esses poderes contra os senhores. Portanto, o livrinho é um manual para cultuar Diana e aprender o que Aradia ensina como bruxaria — por isso o nome de evangelho.

Tudo muito romântico, mas um pouco suspeito, segundo algumas pessoas. Pesquisadores do século 20 acreditam que a tal bruxa nunca existiu e que o Leland compilou contos que achava que faziam sentido entre si. Ele mesmo admite que algumas histórias do livro não estão no evangelho original, mas que ele as considerava parte de uma mesma visão de mundo, então resolveu incluir. Ele já havia publicado outras coletâneas de mitos e costumes, como “Roman Etruscan Remains in Popular Culture” e “Gipsy Sorcery and Fortune Telling” (“Permanências Etruscas e Romanas na Cultura Popular” e “Feitiçaria e Adivinhação dos Ciganos”).

Ou, então, que ele teria sido enganado pela Madalena. Leland era um cara que começou estudando ciganos, aí ficou fascinado pela cultura etrusca, acreditando que as pessoas ainda mantinham os costumes e crenças dos etruscos (é isso o que ele defende no “Roman Etruscan Remains”). Então, quando alguém apareceu dizendo que ele tinha razão e que alguns cultos ainda estavam vivos, ele teria acreditado e visto nisso a comprovação da sua tese.

Apesar de não sabermos bem de onde saíram essas histórias, todas as obras do autor nos mostram que a sua ideia de bruxaria tem um pé no que Jules Michelet desenvolveu em A Feiticeira, um ensaio político de 1862. Michelet é considerado um dos grandes historiadores franceses e já havia publicado um livro importante sobre a história da França.

Em A Feiticeira, ele disserta sobre a bruxa como a emissária do demônio, e o demônio como o espírito de revolta contra o Estado, a nobreza e a Igreja. Alguns autores seguiram a mesma linha de Michelet e mantiveram essa alegoria da bruxa anticlerical e revolucionária. Outros, como Leland, levaram tudo bem ao pé da letra.

Origens Históricas

Aradia, como divindade, ficou naquele limbo dos deuses que não foram premiados com muitos escritos, desenhos animados e adaptações renascentistas, então ninguém sabe muito bem de onde veio, nem para onde foi o seu culto. O que se imagina é que ela faz parte de um grupo de divindades femininas comandantes da Caçada Noturna, um mito que teve variações em toda a região central da Europa.

Aradia era uma das deusas que percorria a noite com seu cortejo de fadas, espíritos, animais e bruxas. Em cada local, a divindade tinha um nome e alguns atributos, dependendo da cultura: Diana, Herodias, Aradia, Holda e Vênus, entre outras.

Cartão postal alemão de 1899 (imagem: http://migre.me/vydUq)

O mito da caçada nasce a partir das crenças europeias nos seres da natureza, nas fadas e nos espíritos dos mortos. Ele se junta com as divindades lunares e com o mito das bruxas e vampiros que andavam na noite em busca de vítimas. Ou seja: ele é um mexidinho de várias ideias — e demorou um certo tempo para se formar, englobando crenças romanas, germânicas, celtas e até teutônicas. Com o tempo, a caçada virou a migração das bruxas para o sabá e foi relacionada com o demônio, conceito que ainda não estava bem formado na cabeça da população até a Idade Moderna.

Resumindo, podemos dizer que Aradia era, originalmente, uma deusa lunar que presidia a caçada, provavelmente oriunda do que hoje é o norte da Itália, uma região com forte influência dos povos germânicos.

Aradia x Jesus Cristo

Além de trazer as ideias políticas de Michelet e as reminiscências míticas da Caçada Noturna, O Evangelho das Bruxas traz uma outra ligação ancestral: a ideia de inversão. Todos os elementos católicos são subvertidos e se tornam uma heresia pagã.

Essa ideia vai ser bastante comum a partir da Era Moderna (que vai do século 16 até a Revolução Francesa), o período em que a Inquisição foi mais ferrenha e que desenhou boa parte das concepções de mal, demônio e bruxaria que vão durar por muito tempo na Europa.

A gente vê esse mesmo princípio em alguns documentos da Inquisição, na ideia de missas negras e do pacto com demônio. Aqui, a tregenda (a versão "lelandiana" do sabá) inverte a missa, assim como o culto a uma deusa lunar inverte o culto ao Deus do Cristianismo. E, principalmente, Aradia é uma inversão do próprio Jesus Cristo: uma messias, que vem à terra nascida de Lúcifer em vez de Deus, que é mulher em vez de homem, que morrerá na fogueira em vez da cruz.

Interpretações contemporâneas

O livro de Leland é extremamente popular no movimento neopagão, especialmente na Wicca. Foi uma das obras usadas por Gerald Gardner e Doreen Valiente para formular ideias e textos básicos da Wicca e outros autores posteriores, como Raven Grimassi, o usaram para dar corpo a reformulações contemporâneas do que seria uma bruxaria de origem italiana, a Stregheria.

Hoje, você encontra todo o tipo de interpretação sobre Aradia entre os praticantes da bruxaria. Alguns a colocam como uma deusa da vingança de origem italiana, o que na verdade é um erro. A Itália nunca teve um panteão unificado, exceto quando os romanos impuseram a sua religião oficial — e naquela época a Itália como país era uma realidade muito distante.

Mesmo entre os romanos, as deusas da vingança eram as Furiae, herdeiras das Erínias gregas, divindades muito específicas, cuidando da vingança ao mandar a loucura para aqueles que cometiam assassinatos contra os seus ancestrais. Em Roma, elas se tornaram divindades mais alegóricas.

Alguns colocam Aradia como uma divindade protetora das bruxas, assim como Hécate, por exemplo. Muitas deusas eram relacionadas com magia, seja em Roma ou entre os povos germânicos, então isso faria um pouco mais de sentido. E também há a possibilidade de Hécate também ter sido uma das deusas da Caçada Noturna.

Mas por que a gente tem que entender tudo isso?

Porque mitos são importantes. Eles mostram a construção do imaginário, da cultura e das crenças das pessoas. Eles explicam processos históricos, como a dominação germânica entre os romanos, e depois a dominação cristã. E, nesse caso, o estudo do mito chega até ao contemporâneo.

Referências Bibliográficas

História da Bruxaria
Jeffrey B. Russel e Brooks Alexander

História Noturna: Decifrando o Sabá
Carlo Ginzburg

Pensando com Demônios
Stuart Clark

The Development of a Legend
Sabina Maglioco

Texto publicado em novembro/2016
Revisado e editado em agosto/2021

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Inês Barreto
O Voo da Bruxa

Redatora e historiadora. Pesquisadora de feitiçarias e macumbas. Mestre e doutoranda em História pela @puc_sp