O Museu Da Magia Negra

Inês Barreto
O Voo da Bruxa
Published in
4 min readApr 2, 2022

O Brasil é um país que tem medo do feitiço. Não só as pessoas tem esse medo, mas também (e principalmente) as instituições do governo. E foi essa crença que desaguou na criação da infame Coleção da Magia Negra do Museu da Polícia do Rio de Janeiro.

A origem da Coleção de Magia Negra

Entre 1890 e 2020, vários objetos de culto ligados às religiosidades de matrizes africanas do Rio de Janeiro ficaram sob a guarda da Polícia Civil. Elas foram todas apreendidas na época em que curandeirismo, magia, cartomancia e espiritismo foram consideradas crimes, entre 1890 até 1937. Depois disso, ainda durante o governo Vargas, essas práticas deixaram de ser criminalizadas, mas ainda eram uma contravenção e estavam sob a tutela da Delegacia de Tóxicos e Mistificações, responsável por perseguir quem supostava praticava essas contravenções.

Ou seja: a polícia e o Estado brasileiro colocavam práticas fora da “normalidade” cristã como mistificações, no mesmo status de um vício. Mas na prática, as investidas da polícia tinham um alvo certeiro: as macumbas, os candomblés e os terreiros cariocas. Especialmente aqueles mais distantes do cristianismo e do espiritismo kardecista — uma linguagem que foi absorvida por muitas macumbas e umbandas por vários motivos bons e ruins, mas também como uma estratégia de sobrevivência.

O acervo

Os objetos confiscados dessas pessoas foram parar no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, criado em 1912 para auxiliar na formação de novos policiais. A coleção em si foi se formando ao longo do tempo em várias delegacias, até que foi toda unificada no museu em 1945.

Um documento de 1938, escrito durante o processo de tombamento das peças, traz uma lista bem longa de tudo o que foi preso pela polícia. Tinham instrumentos de Orixás (como abebê de Oxum, capacete e capa de Ogun, instrumentos rituais de Exu), ferros usados em assentamentos, imagens de santos, guias e Orixás, cachimbos, ervas, fios de conta… enfim, um pouco de cada coisa.

Durante um bom tempo, as peças ficaram desorganizadas, junto com outros objetos de apreensões diferentes, como bandeiras nazistas, objetos pessoais de comunistas, instrumentos de trabalho de parteiras que também faziam abortos, fotos de criminosos famosos da cidade e outras coisas do tipo.

Nos anos 1960, o acervo foi reorganizado na intenção de respeitar um pouco mais o caráter sagrado dos objetos. A equipe da época se baseou na obra de alguns africanistas, como Artur Ramos, Edison Carneiro e Roger Bastide, que na época eram as principais referências no tema. A antropóloga Yvonne Maggie (que é uma referência importante para os estudos de religiosidade de matriz africana e uma das primeiras a se dedicar a esse acervo) notou a tentativa de replicar a organização de um terreiro. Por exemplo: as imagens e os objetos atribuídos a Exu foram separados das imagens de outros Orixás, como nos terreiros em que os assentamentos e tronqueiras de Exu ficam em áreas separadas das outras divindades.

Mas mesmo assim, não havia uma classificação, ordem ou documentação sobre a origem dos objetos. Não se sabia de onde vieram, quem eram os donos originais e mesmo as explicações sobre as peças não eram 100% confiáveis.

O movimento de libertação

Por muitos anos a comunidade de axé do Rio de Janeiro tentou retomar as peças, sem sucesso, que ficaram meio esquecidas pela própria polícia. Até que, em 2018, a yalorixá Mãe Meninazinha de Oxum organizou o movimento Liberte Nosso Sagrado, que conseguiu tratar e ressignificar essa coleção. Em 2020, ela foi transferida para o Museu da República e renomeada para Coleção Nosso Sagrado. As peças estão sendo pesquisadas e restauradas, mas uma parte delas já está disponível no Google Arts & Culture.

A forma como essa coleção foi nomeada e tratada por 140 anos mostra a visão que as instituições brasileiras fazem das religiosidades de matriz africana e ameríndias: magia negra, uso do sobrenatural para o mal, algo que tem que ser combatido. Além do componente de limpeza étnica, ao tentar punir e tirar de circulação elementos religiosos que são estranhos e incômodos às religiões cristãs tradicionais. Conhecer essa história é uma boa forma de entender o lugar institucional das religiosidades não-cristãs e entender porque é preciso quebrar esses estereótipos.

Para saber mais

Coleção Nosso Sagrado do Museu da República

Artigo de Yvonne Maggie e Ulisses Rafael sobre a Coleção Magia Negra, com fotos do acervo feitas nos anos 1970 (algumas delas usei aqui). O artigo está em inglês, mas vale pelas imagens.

O livro “Medo do Feitiço”, da Yvonne Maggie, é uma ótima leitura sobre a perseguição às religiosidades africanas.

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Inês Barreto
O Voo da Bruxa

Redatora e historiadora. Pesquisadora de feitiçarias e macumbas. Mestre e doutoranda em História pela @puc_sp