O que faz um necromante

Inês Barreto
O Voo da Bruxa
Published in
5 min readFeb 19, 2019

Lá pelos idos de 1630 um grupo de quatro homens e uma mulher em Aragão, no que hoje é parte da Espanha, se juntou para descobrir tesouros. Cada um levou uma parte das coisas necessárias para o feitiço, incluindo livros vindos da França que nós conhecemos como Salomão e São Cipriano. O que esses homens e essa única mulher queriam era o que todo mundo quer desde que a primeira moeda de ouro foi cunhada: riqueza.

Aragão no século XVII não era um reino dos mais flexíveis. Não existia nada que permitisse a mudança de classe social e nenhuma forma de ganhar dinheiro. Casamentos eram feitos por pessoas das mesmas classes sociais, universidades só eram acessíveis ao clero e até a Igreja era coisa de rico, já que era comum pagar um dote para entrar na vida eclesiástica. Por isso, última e única esperança de um camponês pobre para não passar mais fome e talvez comprar roupas melhores era caçar manuscritos de magia, encontrar um grupo que topasse o risco e praticar um ato que poderia dar em pena de morte: evocar espíritos que o ajudariam a achar um tesouro escondido. Ou seja: praticar Necromancia.

O oráculo dos mortos

A Bruxa de Endor e Saul no fronstispício de Sadducismus Triumphatus (1681) por Joseph Ganvill.

A Necromancia, ou Nigromancia, é o ramo da magia que estabelece o contato com os mortos. Mas não só eles. Os livros de magia com escritos necromânticos também ensinam a evocar demônios e até santos e anjos.

Essa prática surge bem antes dos escritos de Salomão e Cipriano entrarem em cena, lá pelo final da Idade Média. Ulisses já havia conseguido conversar com Aquiles na Odisseia e Ísis já havia engravidado de Osíris morto. A bruxa de Endor já chamava por Samuel a pedido do rei Saul. Esses são alguns mitos que apontam para restos de práticas necromânticas, mostrando que os mitos guardam memórias de povos que tentavam se comunicar com os mortos.

A origem dos primeiros livros com ritos necromânticos é meio obscura e até duvidosa. Até hoje ninguém conseguiu documentos concretos que eles foram escritos quando dizem terem sido, e pelas pessoas que os assinam. Nesse rol de autores encontramos o mítico Rei Salomão, o mago Abramerlin, o Papa Honório e São Cipriano.

Eles provavelmente são remanescências de manuscritos, ou até mesmo de outros livros, e de tradições orais. O que sabemos é que eles ficaram famosos primeiro entre padres e pessoas do clero, depois se espalhando por outras bibliotecas de pessoas leigas, e assim a necromancia começou a ser mais popular — na medida que algo poderia ser popular em um mundo onde se levava dias ou meses para caminhar ou cavalgar de uma cidade à outra, com grandes chances de morrer no caminho.

Homens necromantes

Por isso, eram os homens do clero que tinham mais acesso a essas obras de magia, e também os que tinham mais tempo e condição de vida para seguirem as complexas indicações de horas rituais, jejuns, ficar 7 dias sem tocar em mulheres, usar branco por um mês, não sair da casa por uma semana e coisas do tipo. Além disso, os padres tinham mais uma coisas a seu favor quando o assunto era magia: estudo.

O fato deles saberem ler, muitas vezes em mais de uma língua, dava uma condição privilegiada de conhecer trabalhos gregos, árabes e hebraicos, provavelmente de onde esses livros de magia surgiram. E não se engane que os cristãos não leram essas obras. Mesmo durante a Inquisição, elas circularam pelos espaços religiosos.

Mas como os nossos camponeses necromantes tiveram acesso a esses livros, que eram aparentemente tão restritos? Bem, nós nunca saberemos com certeza. A História tem dessas coisas, já que a gente não consegue recriar o passado. Mas podemos pensar em várias possibilidades.

Vamos supor que um dos religiosos de um monastério tenha acesso à Clavícula de Salomão. Ele copia um trecho de madrugada e passa sorrateiramente para um dos servos que trabalham nas terras da Igreja. Talvez essa pessoa saiba ler, pode ter aprendido com outro padre na infância. Para os analfabetos, ele conta a história durante o trabalho, ou na hora da ceia. Os que leem fazem uma cópia do texto de próprio punho. E assim, em alguns meses, um pequeno grupo de interessados na Necromancia se forma e resolve tentar a sorte.

“John Dee e Edward Kelly evocando um espirito” — Ebenezer Sibley (1825)

Existem, ainda, os astrólogos e magos que não faziam parte do clero e que tinham nesse tipo de prática a sua profissão. Alguns ficaram famosos, como os ingleses William Lilly, John Dee e Edward Kelly, mas a maioria era de anônimos que faziam às vezes de sábios da aldeia. Esses homens tinham acesso aos livros de magia e aos cálculos astronômicos, o que inspirava um certo respeito, por serem homens de letras.

A astrologia não era considerada um ramo do ocultismo e foi muito bem quista por um tempo. Nobres e famílias ricas tinham os seus astrólogos de confiança, que acabavam vez ou outra sendo seus magos de confiança também. Vários padres, médicos e literatos eram astrólogos e isso não era suficiente para levar ninguém para a roda de tortura, mesmo que eles fossem pegos com um livro de magia na estante e círculos riscados no chão dos seus quartos. Poucos homens foram processados pela Inquisição, um sintoma de que essas práticas mágicas masculinas eram até toleradas. Em parte, porque normalmente as pessoas com dinheiro e estudo têm trânsito melhor, são vistas diferentes e conseguem um jeito de atenuar a pena. Em parte, porque o real foco da inquisição não era coibir práticas de magia, mas sim aterrorizar e controlar mulheres.

Quanto ao nosso grupo, será que sobreviveram à Inquisição?

Vamos imaginar que sim. Segundo alguns documentos de processos da Sé de Aragão, muitos eram presos e investigados, mas soltos com uma advertência de que isso não se repetisse, tinham seus livros confiscados e eram exilados do reino. Alguns mudavam de cidade e começavam tudo de novo, outros voltavam para a vida normal. Alguns morriam na prisão.

Talvez o maior problema tenha sido para a mulher. Para os juízes leigos e religiosos, ela não era só uma necromante, mas uma feiticeira, e era na magia feminina onde morava o perigo. Ela não aprendeu com livros, mas no boca a boca das bruxas e curandeiras da aldeia. Um astrólogo ou mago que evoca um morto não fazia muito estrago, mas só o diabo sabe o que uma feiticeira era capaz de fazer…

Este texto é baseado na pesquisa de Marco Antônio Lopes Veiga, doutor em História da Universidade de São Paulo, com informações de outros autores como Keith Harris e Silvia Frederici. Você pode acessar a tese de Veiga aqui.

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Inês Barreto
O Voo da Bruxa

Redatora e historiadora. Pesquisadora de feitiçarias e macumbas. Mestre e doutoranda em História pela @puc_sp