Feitiçaria no Brasil #1 — O que você precisa saber

Inês Barreto
O Voo da Bruxa
Published in
3 min readJul 22, 2021

Quando aparecem as palavras feitiçaria, magia ou bruxaria no contexto brasileiro, muita gente fica confusa… Dizem que bruxaria é só na Europa, que feitiçaria é só coisa ruim e várias outras coisas que… bem… não são necessariamente de verdade.

Então vamos responder algumas dúvidas bem básicas para começar a pensar a feitiçaria aqui deste lado do Atlântico?

- Teve feitiçaria no Brasil?
Sim, teve. Se a gente entender como feitiçaria práticas de magia, fora da norma da Igreja e que ainda tem um pé (ou os dois pés) em religiosidades não-cristãs, com certeza teve.

Existe uma discussão mais conceitual sobre o termo “feitiçaria”. De que, na verdade, as pessoas chamam de feitiço ou de bruxaria aquilo que é a religião do outro — e normalmente, o outro que não é cristão. Então tudo que não é católico/cristão é feitiço. Dentro dessa ideia, a gente teve muita feitiçaria, especialmente porque aqui as práticas não-cristã sobreviveram nas frestas, apesar de todas as perseguições.

- Mas era igual na Europa?
Mais ou menos. Apesar de muitas coisas europeias serem praticadas aqui também, temos uma peculiaridade: o Brasil absorveu dentro da sua feitiçaria elementos de vários povos africanos e ameríndios. Por isso a gente tem a nossa própria forma de magia. O Luiz Mott, um historiador da Bahia pioneiro em estudar a Inquisição no Brasil, fala que a gente tem uma feitiçaria “afro-luso-brasileira”.

- Tinha sabá, voo de vassoura e pacto com o diabo?
Não. O que tinha aqui, e que alguns viajantes do século 18 relacionaram com o sabá, foram os calundus. Eram as reuniões das pessoas escravizadas para cultuar seus deuses, com dança e música, seguindo os ritos trazidos da África. O calundu é o avô de ritos e religiões dos séculos 19 e 20, como a Cabula, o Catimbó, a Umbanda e o Candomblé.

Lundu — Johan Rugendas

Não ter um sabá é uma herança que trazemos dos portugueses. Na Península Ibérica o sabá nunca vingou e a crença de que bruxas voavam na vassoura para encontrar o diabo aparece muito pouco nos documentos históricos. É mais popular na região do País Basco, onde se chama Akelarre, mas em Portugal quase não existiu.

Sobre o pacto, no Brasil e em Portugal ele aparece em alguns momentos. Alguns depoimentos da Inquisição, livros de magia, em um ou outro relato oral. Ele existe, mas nunca foi o foco da feitiçaria de origem portuguesa. Os santos são mais invocados entre os supostos feiticeiros do que o diabo.

- E a Inquisição? Como foi por aqui?
A gente acha que não teve Inquisição no Brasil, mas é um engano. Não tivemos um tribunal, porque Portugal não costumava fazer isso nas colônias — só em Goa, na Índia. Mas a metrópole enviava as Devassas Inquisitoriais, que eram um grupos de pessoas que vinham analisar a vida de alguma região da colônia. Se a devassa processasse alguém, esse processo ia ser julgado em Lisboa ou Coimbra.

O que tivemos aqui foram processos contra feiticeiros dentro da justiça comum mesmo. Temos casos de processos contra homens e mulheres negros, indígenas e até de brancos também. Assim como na Europa, a justiça comum também podia processar alguém por desvio da fé, que não incluía só magia ou heresia, mas também crimes morais, como relações homossexuais ou relações fora do casamento.

Um ponto importante da Inquisição é que, graças a ela, o Brasil recebeu muitos judeus. Na verdade, cristãos-novos, que é o grupo de judeus convertidos ao catolicismo. Eles vieram como degredados (condenados ao exílio nas colônias) ou por vontade própria, justamente para fugir da perseguição.

Para saber mais

  • Este artigo do Luiz Mott que fala da feitiçaria afro-católica brasileira
  • O perfil das incríveis pesquisadoras do grupo Mulheres na América Portuguesa da USP, que entre outros temas pesquisam a Inquisição
  • Um dos meus livros favoritos, o clássico O Diabo e a Terra de Santa Cruz, da Laura de Mello e Souza
  • Palestra da professora Anita Novinsky, que pesquisou os cristãos-novos no Brasil. Ela faleceu recentemente, então fica aqui também a nossa homenagem para essa grande historiadora.

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Inês Barreto
O Voo da Bruxa

Redatora e historiadora. Pesquisadora de feitiçarias e macumbas. Mestre em História pela @puc_sp