Porque a Wicca não é a Antiga Religião

Inês Barreto
O Voo da Bruxa
Published in
5 min readMar 6, 2020

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Vamos direto ao ponto: a Wicca não é a velha religião.

Nenhum tipo de bruxaria praticado hoje em dia é. Na verdade, ninguém nem pode dizer que existe ou existiu uma velha religião e nem uma religião da bruxaria.

A gente chama isso de Mito de Origem: uma ideia que não é 100% verdadeira e que foi sendo construída para alimentar um passado glorioso de alguma coisa.

Vivemos cercados de mitos de origem: a descoberta do Brasil pelo Cabral, a formação de São Paulo pelos bandeirantes, a contribuição da família real dos Bragança para a construção do Brasil… mas eles em geral são ruins, porque criam um conceito de que quem participou disso é especial e deve ser admirado, além de tratar o passado como se fosse perfeito. E raramente os acontecimentos e as pessoas participaram deles eram essa Coca-Cola toda.

Então vamos entender como surge o Mito de Origem da Wicca e porque a gente tem que abandonar essa ideia.

Tudo começa no Charles Leland

A primeira vez que essa história de antiga religião aparece é no Aradia, O Evangelho das Bruxas. Lá o Leland chama a religião praticada pelas bruxas italianas de La Vecchia Religione, ou stregheria.

O próprio Leland explica, na introdução do texto, que ele teve acesso a tudo o que registrou, inclusive essa expressão, pela suposta bruxa chamada Maddalena. O problema é que essa é a única informação que temos sobre ela.

Você pode querer acreditar que ela era uma bruxa real, mas há uma grande chance dela nunca nem ter existido e o Aradia ser uma colagem de tradições orais e lendas da região da Toscana, que ele organizou como fez em outros dois livros, um sobre ciganos e outro sobre tradições e costumes etruscos.

Então a Velha Religião do Leland é uma suposição que não tem nenhuma fonte histórica que mostre que ele estava certo. Nenhuma bruxa italiana se refere a bruxaria dessa forma. O que a gente sabe sobre elas são coisas muito espaçadas, pinçadas de documentos da Inquisição, e que nem de longe formam algo parecido com uma religião.

Daí veio o Gerald Gardner

Quando o Gardner está criando a Wicca, ele compra a ideia da velha religião das bruxas vendida pelo Leland sem pensar duas vezes.

Na verdade, o Gardner faz um catadão de várias influências e bota tudo no Bruxaria Hoje, o seu primeiro livro explicitamente sobre o tema. E uma das coisas que ele mais bate é a de que a bruxaria sempre existiu, em todos os lugares, inclusive na Inglaterra. E sua maior prova disso seria o coven de New Forest, onde ele teria sido iniciado nos anos 1930.

O grande lance do Gardner é: “sempre existiu, em todo lugar. Mas eu fui o escolhido para falar dela agora”. Mais ou menos o que Leland fez: “eu fui privilegiado em ter acesso a ela”. Mas eles não são nem de longe os primeiros a falar disso.

Quem veio antes

Lá no século 18 já tinha gente na Alemanha e na França dizendo que a bruxaria era o que sobrou das religiões originais dessas regiões, e que ela tinha que ser redescoberta e usada para enfrentar o Cristianismo.

O autor mais famoso a defender que a bruxaria era uma religião de resistência foi o Jules Michelet, um historiador francês muito importante, que escreveu A Feiticeira, um ensaio sobre uma mulher do campo, devota de espíritos da natureza, que se ferra tanto na mão do senhor feudal que acaba transformando esse espírito no demônio. E juntos eles se vingam dos ricos.

O Michelet não estava fazendo um livro de história baseado em fatos reais. Ele estava fazendo um ensaio político, defendendo que pessoas pobres têm mais é que tacar fogo na elite e que o cristianismo alimentava essas desigualdades. Esse lado político foi deixado de lado por quem veio depois e que não entenderam a mensagem. Continuaram achando que a bruxaria era uma antiga religião de resistência. E isso foi passando adiante.

Até que vieram os wiccanos

Os sacerdotes e escritores wiccanos seguiram o Gardner nessa, que por sua vez estava alimentando o que Leland e Michelet já tinham proposto. Além de ter o principal nome da religião defendendo isso, tem um outro fator importante aí: a necessidade que todo mundo tem de legitimar o que faz.

A Wicca é uma religião com menos de 100 anos, que não teve uma formação orgânica. Ela foi uma colagem de influências do Gardner, que usou uma bela ajuda da mídia e da posição política que a Inglaterra ocupava no mundo pra fazer ela crescer. Do mesmo jeito que algumas ordens se dizem as legítimas descendentes dos egípcios, caldeus ou atlantes, o Gardner colocou a Wicca como legítima herdeira do paganismo europeu.

Existem sobrevivências desse paganismo? Claro que sim. Mas elas não são tão organizadas e explícitas assim, e nunca formaram uma religião. Elas estão em superstições, festas populares, remédios, simpatias etc.

Por isso a gente precisa parar de dizer que a Wicca é a Antiga Religião. Nenhuma religião é.

Hollywood manda beijos

É bem tentador ter essa visão, até romântica, de que se está descobrindo uma religião que viveu intocada. Mas isso é coisa de filme de Hollywood. Ou de Sabrina e o Mundo Sombrio e Luna Nera, que partem dessa mesma premissa. No mundo real, nada fica livre de influências e os processos históricos não são lineares.

E, para concluir, deixo um conselho: você que pratica a Wicca ou qualquer outra vertente moderna de bruxaria não precisa falar que ela é a antiga religião. E tá tudo bem!

Nós somos filhos do nosso tempo e temos religiosidade e espiritualidades contemporâneas que atendem muito mais a esse espírito. Elas não precisam ter vindo da Atlântida para serem importantes. Se ela faz sentido para você, tá tudo bem.

Este texto foi escrito baseado em alguns capítulos da minha monografia de conclusão de curso da faculdade de História. Não tenho ela completa, mas você pode ver uma cheiro dela no meu ResearchGate.

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Photo por Halanna Halila on Unsplash

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Inês Barreto
O Voo da Bruxa

Redatora e historiadora. Pesquisadora de feitiçarias e macumbas. Mestre em História pela @puc_sp