Quem tem medo de “A Bruxa”? O cara do século XVII.

Inês Barreto
O Voo da Bruxa
Published in
7 min readJun 29, 2016

Alerta de Spoiler: este texto contém spoilers do filme “A Bruxa” (“The Witch”), de 2015, do diretor Robert Eggers. Se você ainda quer assistir, coloque um bookmark e volte quando puder. Se você já assistiu, siga em frente — e olhe para o lado. ;)

Imagine viver em um mundo no qual a bruxa maligna, que mata crianças e acaba com a comida das pessoas, é real? Que você tem medo de sair à noite porque ela pode passar voando por cima da sua casa? Ou que ela pode matar seus animais e seus filhos?

Parece absurdo, mas era esse o mundo em que os cristãos viveram na maior parte da História Ocidental. Hoje, quem acredita em bruxas se identifica com elas e tenta tirar essa pecha negativa. Mas como ignorar os mais de mil anos de um imaginário que atribuía à bruxa tudo de ruim que acontecia a uma comunidade?

É esse imaginário que o filme “A Bruxa” (“The Witch”, 2015) traz à tona, e é nesse ponto em que ele se torna um filme de terror: quando pensamos que aquela mulher espreita o tempo todo atrás de uma árvore, pronta para acabar com a sua vida e com a sua família.

A história traz algumas situações diretamente de documentos históricos, que ilustram bem o que o homem da Era Moderna pensava das bruxas. No filme, tudo isso acontece no contexto de uma família puritana dos Estados Unidos, longe de sua terra natal e isoladas da comunidade local. Ou seja: tudo isso era muito, mas muito mais potencializado. Só que eram situações comuns em muitas comunidades da Europa, que vieram para a América junto com os colonizadores europeus.

Imagine que você está no século XVII e se prepare:

Assassinato de bebês

Logo no começo do filme, o bebê da família é raptado e morto, e é aqui que todo o conflito começa. Crianças não batizadas eram os alvos favoritos das bruxas. Elas usavam a sua gordura para besuntar as vassouras ou produzir os unguentos para o voo noturno que levava ao sabá. O imaginário europeu está repleto de mitos da mulher amaldiçoada que mata crianças: entre os gregos, havia a Lâmia, uma serpente com cabeça de mulher que se alimentava de crianças (e homens); na Itália, nasceu o mito da strix, a bruxa da noite em forma de ave que atormentava e devorava crianças. Dessa palavra nasceram as formas italianas para bruxa — strega — e vampiro — strigoi.

O familiar

No filme existe uma lebre, e para mim não ficou claro se ela é a bruxa ou é seu animal de estimação. Mas, independentemente disso, histórias de bruxas que se transformam em bichos não são raros. Os favoritos eram os gatos, bodes, lobos e corujas, mas lebres e cachorros também entram na lista. O autor italiano Carlo Ginzburg relaciona essa ideia ao mito do lobisomem, muito popular nos países eslavos. Na mentalidade europeia, a bruxa também tem os familiares: demônios que tomam a forma de animais para fazer trabalhos, enfeitiçar ou vigiar vítimas.

Leite transformado em sangue

Quando o leite talhava ou empedrava nas tetas de vacas ou cabras, a culpa era sempre da bruxa. Eu não me lembro de referências ao leite virar sangue, como acontece em “The Witch”, mas acredito que isso pode estar ligado a um recurso visual do cinema. Podemos, aqui, relacionar também a cena em que o corvo da bruxa (ou a própria bruxa) bica o seio de Katherine, a mãe da família, enquanto ela acredita que está dando de mamar ao filho morto. O leite, assim como a colheita, está ligado à alimentação, e isso é um tema muito sensível dentro de uma comunidade rural que tinha recursos bem escassos.

Praga na colheita

Logo depois que o bebê desaparece, o pai, William, e o filho do meio, Caleb, estão conversando no meio da plantação, e vemos que seu milho está estragado. A perda da colheita é uma das principais acusações contra as bruxas. Em uma sociedade rural, que dependia muito da colheita para alimentar pessoas e animais e para a venda ou troca por outros produtos, essa era uma das piores desgraças que poderia acontecer. A comunidade sempre encontrava um bode expiatório, que normalmente era alguém que não se encaixava, ou que tinha algum tipo de atrito com o dono da safra perdida. A colheita era tão importante que, na região do Friul, na Itália, o historiador Carlo Ginzburg encontrou todo um culto cuja principal função era proteger a colheita da ação das bruxas.

O bode como demônio

São comuns os documentos que relacionam o bode como o demônio. Existem pessoas que defendem que essa é uma cristianização de deuses pagãos, uma forma de identificá-los com o mal. Há referências tanto a homens vestidos de bode quanto aos animais em si como sendo os chefes das reuniões das bruxas. Essa imagem foi eternizada por Francisco Goya em seu famoso quadro “O sabá das bruxas”, mas não é uma exclusividade espanha: documentações escritas e imagens mostram que essa relação existia na Itália, na França, na Bélgica e na Inglaterra, entre outros países. A historiadora Margaret Murray acreditava que o Demônio era um título assumido por um homem, o chefe do culto das Bruxas da região designada. Mesmo que sua tese seja controversa, essa visão fica bem explícita no filme, quando o bode da família, Black Philip, assume a sua forma humana.

O sabá

O grande momento do mito da bruxa é o sabá, a reunião de feiticeiras com o demônio. No filme, é o momento de clímax para Thomasin, quando ela acaba se transformando de verdade na bruxa que a sua família já havia acusado-a se ser. Existem muitos relatos e visões diferentes sobre o sabá, vindos de vários pontos da Europa e que assumiram um monte de interpretações. O mestre, Ginzburg, tem uma obra inteira sobre isso chamada “História Noturna”. Sua tese é de que o mito do sabá aparece tardiamente no imaginário já na Era Moderna (ou seja, não é uma ideia Medieval), a partir de vários elementos diferentes que se juntam os poucos e que vão se consolidando na mente dos inquisidores e dos cristãos mais humildes. Dentre esses elementos estão cultos da fertilidade à divindades femininas, a teoria da conspiração dos judeus e leprosos contra o Cristianismo, as crenças em espíritos da natureza, entre outras lendas e mitos. O sabá é uma das coisas que mais permanece no nosso imaginário, explorado pela cultura pop e ressignificado pelas bruxas contemporâneas,

Doenças neurológicas

Muitos historiadores relacionam os casos de epilepsia à bruxaria. Pessoas que tinham convulsões podiam supostamente estarem enfeitiçadas, ou serem as próprias bruxas. Isso acontecia, também, com o que hoje chamamos de doenças psiquiátricas, como depressão e esquizofrenia. Em todos esses casos, a acusação dependia de qual interesse havia por trás: de acusar a pessoa ou de usá-la para acusar outro. No filme, isso é ilustrado por Caleb, um dos filhos do casal, que é enfeitiçado pela bruxa na floresta e volta doente. Ele sofre uma convulsão, entra em um delírio religioso e depois morre, aumentando as suspeitas contra a sua irmã mais velha, Thomasin.

Ser mulher

Existiram acusações contra homens? Sim. Especialmente na Era Moderna, quando judaísmo e protestantismo tornaram-se crimes e os processos tinham, muitas vezes, o objetivo de recolher o dinheiro das pessoas para o Estado, ou de cortar suas influências políticas. Mas a maior parte das acusações de feitiçaria e bruxaria foram contra mulheres — parteiras, velhas, viúvas, mães de família ou garotas na puberdade -, como Thomasin, acusada de ser a bruxa pela sua própria família. Algumas das torturas usadas para gerar confissões eram especialmente criadas para mulheres e, graças aos papéis negativos que muitas mulheres assumem na Bíblia, elas sempre eram vistas com desconfiança e com uma alta dose de medo e misoginia. E em um mundo no qual a Igreja e o Estado, as duas instituições mais poderosas, eram dominados por homens, a mulher nunca tinha vez.

Deu para sentir um pouquinho de como acreditar em bruxas causava um enorme terror? O medo que o filme supostamente causa não está em todo o sangue, no demônio e no sabá, mas em viver num mundo no qual a bruxa espreitava — e ela poderia ser qualquer um, inclusive a sua filha.

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Inês Barreto
O Voo da Bruxa

Redatora e historiadora. Pesquisadora de feitiçarias e macumbas. Mestre e doutoranda em História pela @puc_sp