São Jorge e o Dragão (Vittore Carpaccio — 1502)

São Jorge e Ogun nas encruzilhadas brasileiras

Inês Barreto
Published in
4 min readApr 23, 2021

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Dia 23 de Abril é a festa de São Jorge, o santo que as umbandas e macumbas do Rio e de São Paulo relacionam com Ogun. Na Bahia, São Jorge foi relacionado do Oxóssi. Por isso, é dia de festa dupla, dos santos católicos e dos orixás.

E sempre nesses dias de santos surge uma grande discussão:

O sincretismo

Um lado diz que sincretizar o orixá com o santo foi algo feito de propósito para apagar a herança africana e tirou o real significado do culto ao orixá — e infelizmente, é o que vemos acontecer na prática em muitos terreiros.

Essa interpretação não está errada, mas deixa de lado outras camadas. Até um certo ponto, a correspondência dos santos e orixás aconteceu de forma orgânica. E, de outro, a Igreja ajudou nisso de propósito, criando um sincretismo artificial para ajudar na catequização.

Aqui eu quero trazer uma discussão da sociologia para a gente pensar nisso. Mais especificamente, o que Roger Bastide pensou e escreveu sobre o sincretismo no Brasil.

Para quem não conhece, Bastide foi um dos grandes nomes da sociologia brasileira. Ele era francês, mas viveu aqui entre 1938 e 1954, e foi um dos professores que estruturou a FFLCH-USP e formou uma geração de intelectuais importantes, como Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Fernando Henrique Cardoso e muitos outros.

Bastide estudou as religiões de matriz africana com uma proposta: elas seriam um caminho para entender a relação entre os negros e os brancos no Brasil.

No grosso da nossa sociedade os elementos portugueses foram os mais fortes, já que eles eram os colonizadores, as outras culturas foram sendo apagadas no processo. Mas para ele, as religiões de matriz africana inverteram o processo: dentro do Candomblé é criada uma reconstituição da sociedade da África no Brasil, e a lógica se inverteu: foram os elementos brancos que tiveram que se adaptar à cultura e a organização social africana.

Mas o que o sincretismo tem a ver com isso?

Bastide dizia que sincretismo é a chave para entender essa relação entre brancos e negros. Foi no sincretismo que a cultura negra pôde sobreviver entre o que foi imposto pelos brancos, nas frestas.

Mas isso não significa que as duas culturas se misturaram. O sincretismo funciona primeiro como um mosaico de correspondências. Depois, como uma sobreposição: São Jorge não se mistura a Ogun, mas os dois têm elementos correspondentes, parecidos, que acabam se sobrepondo e convivendo juntos.

E isso não acontece só com o orixá, mas também com o santo católico. Do mesmo jeito que Ogun arruma o Dia de São Jorge como seu, o santo se torna um grande protetor, do jeito que Ogun já era entendido por aqui.

Ogun por Bruno Brunelli do Pontos Ilustrados

São Jorge não absorveu Ogun

O santo turco é padroeiro de vários lugares: Inglaterra, Catalunha, Grécia, Lituânia… e Portugal. Quem decidiu que ele seria patrono do reino foi D. João I, no século 14, e dessa época até o período em que o Brasil foi colônia, era o santo que defendia a monarquia e as ordens militares do Rei. A sua história de como matou o dragão simbolizava as vitórias dos portugueses sobre os mulçumanos e os espanhóis.

Mas já nos anos 1600, em Lisboa, sua festa já tinha lugar para os africanos e negros que viviam na capital. Quem abria a procissão eram asirmandades negras, que vinham fazendo danças africanas e batuques.

Aqui no Brasil, São Jorge ganhou outras características. Foi muito cultuado em vários lugares pela influência portuguesa, mas o nosso país mudou o santo. Os soldados da Guerra do Paraguai, por exemplo, acreditavam nele como seu protetor e isso está até hoje nos pontos de Umbanda falando do Humaitá, lugar onde aconteceu uma batalha importante. Para nós ele é um protetor muito mais próximo e pessoal do que o do reino.

Sincretismos e encruzilhadas

Esse guerreiro aqui encontrou outros parecidos com ele. Não só o Ogun dos yorubás, mas também o Nkosi-Mucumbi dos bantos e o Gun dos fon. E o sincretismo por correspondência não aconteceu só entre o santo e o orixá, mas também entre as divindades africanas. O mosaico que Bastide falou está aqui, criado e pintado de azul-escuro e prata.

Por isso é importante prestar atenção em outros sincretismos. Não só o que aconteceu entre deuses africanos e cristãos, mas também entre outras culturas não-brancas e não-cristãs que sempre estiveram aqui, sobrevivendo na fresta.

Nós temos sempre que questionar e combater o embraquecimento dos Candomblés de todas as nações, da Umbanda, das macumbas e das encantarias. Mas é importante entender também que as encruzilhadas onde santos, orixás e voduns se encontraram estão na base da nossa cultura e é uma das coisas que, na essência, nos faz diferentes dos nosso colonizadores.

Referências deste texto:

Pagando as fintas para São Jorge: A devoção a São Jorge e a festa de Corpus Christi em Lisboa e Vila Rica (Século XVIII)
Crislayne Gloss Marão Alfagali — Revista História Social (Unicamp)
Acesse aqui

Metrópole das Mandingas: religiosidade negra e inquisição portuguesa no Antigo Regime
Daniela Calainho — editora Garamond

Diálogos Brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide
Fernanda Arêas Porto — Edusp/Fapesp

Almanaque Brasilidades: um inventário do Brasil popular
Luiz Antonio Simas — editora Bazar do Tempo

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Inês Barreto
O Voo da Bruxa

Redatora e historiadora. Pesquisadora de feitiçarias e macumbas. Mestre e doutoranda em História pela @puc_sp