As estruturas psicológicas de Clarke Griffin

Allan F. Gouvea
O Autômato
6 min readApr 16, 2020

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A série The 100 se passa após um apocalipse nuclear, que obrigou os humanos a se refugiarem em uma estação espacial chamada Arca. Depois de 97 anos o suporte de vida na Arca está acabando, obrigando seus líderes a enviar para a Terra uma nave com cem prisioneiros juvenis, com o objetivo de descobrir se o planeta está habitável.

Na primeira temporada da série, a protagonista Clarke Griffin teve um desenvolvimento muito bem construído, adquirindo uma personalidade com vários aspectos diferentes, fundamentados na necessidade da personagem em conciliar a sua sobrevivência e do seu grupo com a sua integridade ética e moral. Basicamente vemos uma luta entre suas instâncias mentais, definidas pela psicanálise como id, ego e superego.

Segundo o psicanalista Sigmund Freud, o ego é aquilo que o indivíduo mostra aos outros de acordo com os instintos do id e as regras do superego. O id é portanto formado pelos impulsos e desejos, o superego é a moral e os valores e o ego é a instância racional e mediadora. No caso de Clarke seu ego está diante do conflito entre o instinto de fazer o que for preciso para sobreviver e a necessidade de não se desviar dos seus valores morais. Esta relação do ego de Clarke com seu id e seu superego pode ser explicada pelo seu relacionamento com outros dois personagens da trama: Finn Collins e Bellamy Blake.

Finn e Bellamy / The 100, Temporada 1.

Bellamy desde o início era um sobrevivente, sendo realista e vendo o mundo como realmente é. Ele passou a vida protegendo sua irmã, Octavia, e a escondendo de todos os outros além da sua mãe, pois na Arca ter mais de um filho era um crime punível com a morte. Quando Bellamy levou Octavia a um baile de máscara, a mesma acabou sendo descoberta e presa, e a mãe deles morta. Estes traumas pessoais fizeram de Bellamy uma pessoa pouco sonhadora, mantendo os pés no chão e fazendo tudo que fosse preciso para garantir sua sobrevivência e posteriormente a sobrevivência de seus amigos.

Os 100 ao chegarem na Terra são atacados pelos terrestres, pessoas que descendem dos sobreviventes do apocalipse nuclear que não se refugiaram no espaço. A reação de Bellamy é apenas uma: lutar. Não importa quais meios utilizados, para Bellamy a sobrevivência não pode ser alcançada sem responder com fogo aos ataques dos terrestres, estando disposto a matar quantos forem necessários, chegando a aprisionar um deles para interrogá-lo e obter informações do inimigo.

“Precisamos saber contra o que estamos lutando, quantos são eles e porque estão nos matando. E ele vai nos dizer, agora.” — Bellamy Blake / The 100, temporada 1, episódio 7.

Bellamy interrogando Lincoln / The 100, temporada 1, episódio 7.

Sobre a relação entre Clarke e Finn, podemos dizer que Finn era tudo o que Clarke desejava (e costumava) ser. Finn era um pacifista com senso definido de certo e errado, o que o torna também um idealista por excelência. Enquanto a maioria no acampamento dos 100 estava disposta a lutar contra os terrestres — principalmente depois de terem adquiridos armas de fogo em um antigo bunker — Finn por outro lado foi até eles em busca de paz, pois não queria uma guerra entre o povo da Arca e os habitantes nativos da Terra. Finn havia sido esfaqueado por um terrestre chamado Lincoln e foi justamente este terrestre que ele buscou para oferecer a proposta de paz. Resumindo, Finn se torna a bússola moral do grupo em meio a uma guerra.

“O nosso povo todo está descendo para cá, a primeira nave aterrissa em dois dias e por causa dos ataques estão enviando muitos soldados, os homens que aplicam nossas leis. A arca vai sobreviver a qualquer custo, eles vão matar todos que saírem da linha. Quando aquela gente chegar aqui, se forem ameaçados, vão começar uma guerra e eu não quero isso[…] Quando os soldados chegarem será muito tarde, não vamos ter força para impedi-los, mas se virem que temos paz, podemos ter uma chance de mantê-la.” — Finn para Lincoln / The 100, temporada 1, episódio 9.

Clarke, diante da intenção pacífica de Finn, naturalmente fica desconfiada de que a paz possa mesmo ser alcançada, afinal os terrestres não pareciam dispostos a aceitar uma trégua. Porém ela decide ir com Finn até uma reunião marcada com a líder de um clã terrestre para tentar estabelecer um acordo e pôr fim à matança. Isso acontece porque Clarke também tem ideais pacíficos, além da vontade de proteger a todos. Conforme apontado por Finn, Clarke queria proteger a todos porque não pôde salvar seu pai. Antes de seu pai morrer, Clarke costumava ter várias das características de Finn: pacifista, divertido e ingênuo.

Mas a morte de seu pai, executado na Arca por traição, abalou seus ideais, fazendo-a desacreditar em um mundo (ou espaço sideral) melhor. Sua ingenuidade e seu amor por diversão foram suprimidos. Até que ao chegar na Terra ela conheceu Finn, que a fez sorrir e reviver sua visão de mundo que tinha na infância.

Clarke e Finn na floresta bioluminescente / The 100, temporada 1, episódio 1.

Com estes fatos é possível concluir que Bellamy representa o id de Clarke, enquanto Finn representa o superego. O superego da personagem tem como função conter os impulsos do id, que nesse caso são destrutivos devido à natureza inóspita do mundo em que ela se encontra. O ego de Clarke por sua vez, encontra-se em um tumultuoso confronto para mediar as intenções do id com os valores do superego. Clarke está sempre tentando manter o equilíbrio entre seu instinto de sobrevivência e a sua conduta moral.

Tal fato pode ser visto com precisão na já mencionada tentativa de chegar a um acordo de paz com os terrestres. Clarke está inicialmente indisposta a acreditar nisso e prefere manter uma postura de combate para com seus inimigos, atendendo aos seus instintos mais naturais provocados pelo id, no entanto as regras ditadas pelo superego lhe dão esperanças de não precisar lutar. Essa disputa leva Clarke até a reunião com os terrestres, acompanhada por Finn, para estabelecer os termos de paz, mas também a faz pedir a Bellamy que os siga em segredo com um pequeno grupo armado para o caso da reunião não ocorrer como o esperado.

O desenvolvimento da protagonista da série acontece nessa interação entre dois polos diametralmente opostos e que ao mesmo tempo se complementam. Sua relação com Finn (personificação de seu superego) é o relacionamento entre si mesma e seus ideais de infância, baseados em paz e esperança. Já sua relação com Bellamy (personificação de seu id) é o relacionamento que ela mantém com a necessidade de sobreviver, baseada em realismo. Não à toa a foto promocional da primeira temporada de The 100 mostra Clarke no centro, com Finn e Bellamy logo atrás, cada um em um lado diferente dela, como as famosas vozes do anjo e do demônio lhes dizendo o que fazer.

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Allan F. Gouvea
O Autômato

Geólogo e Escritor, foi aluno de História antes de ingressar na Geologia pela Universidade Federal do Pará. Leitor e apreciador de Fantasia e Ficção Científica.