Nove clichês comuns da Fantasia

Allan F. Gouvea
O Autômato
Published in
7 min readMay 12, 2020

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A Literatura Fantástica — e estilos semelhantes — é tão fascinante que já foram escritos milhares de livro sobre o gênero. Naturalmente que após tantas publicações surgiriam alguns padrões e clichês narrativos. Venho por meio deste texto, não como escritor, mas como leitor observador, explanar alguns dos clichês mais comuns na Fantasia. Você consegue identificar alguns deles?

1 — A tecnologia está parada no tempo

Em várias obras de Alta Fantasia nós temos um mundo com ambientação medieval, ou pelo menos semelhante a Idade Média. Mas o estranho é que o mundo está desta maneira a bastante tempo. Em algumas sagas há uma grande história contada no começo para explicar algum evento importante em um passado longínquo, depois há um lapso de tempo de algumas centenas ou milhares de anos para o presente. E o mundo continua exatamente o mesmo!

As pessoas se vestem da mesma maneira, podendo haver a mesma forma de governo e principalmente o mesmo nível tecnológico. A razão disso parece ser que escrever fantasia que diverge demais da Europa medieval pode ser arriscado, por isso não há espaço para trabalhar muito bem os avanços tecnológicos ao longo das eras.

Há casos em que o atraso tecnológico pode ser explicado pelo conhecimento estar retido nas mãos de um pequeno grupo (como os meistres de Game of Thrones) que não estão preocupados com avanços, ou que naquele mundo não existem os recursos que há no nosso mundo. Ainda assim outras alternativas poderiam ser encontradas, o gênero Steampunk utiliza a tecnologia a vapor para isso, mas os autores continuam construindo mundos com cidades de 5.000 anos, bibliotecas com milhares de livros e mesmo assim ninguém nota que se você ferver água o vapor faz com que a tampa da panela suba? Estranho.

Exemplos: As Crônicas de Gelo e Fogo, Mistborn, O Senhor dos Anéis, Star Wars, Tormenta (RPG)

2 — A magia foi perdida a muito tempo

É muito comum que em mundos fantásticos exista magia, todavia tão comum quanto a magia é a perda da magia no momento em que a narrativa está acontecendo. A magia existiu durante muito tempo e agora está extinta, seja porque as pessoas deixaram de acreditar nela, seja porque alguma autoridade a proibiu ou pode até mesmo ser que não haja explicação nenhuma. O fato é que magia outrora existente agora está a tempos sem dá as caras. Porém justamente no momento atual da história fantástica a magia convenientemente está voltando. Poderia haver muitos momentos em que a magia pudesse voltar, mas tinha que ser naquele em que o herói da trama está vivendo.

As vezes a ausência e retorno da magia não estão representados na magia propriamente dita, mas em algum elemento mágico daquele mundo. A antiga Ordem dos Cavaleiros de Dragões está extinta e os dragões não são visto a muito tempo, entretanto o herói convenientemente encontra um ovo de dragão perdido e com isso faz ressurgir a Ordem.

Exemplos: As Crônicas de Gelo e Fogo, As Crônicas de Shannara, Trono de Vidro

3 — O herói órfão e/ou que sofreu muito

Ao abrirmos um livro de Fantasia há uma grande chance de encontrarmos um herói órfão, que perdeu os pais muito cedo e tem levado uma vida difícil desde então. Este é um dos clichês mais comuns, até mesmo As Crônicas de Gelo e Fogo já trabalharam em algo assim com o personagem Jon Snow. A razão disso é muito simples: protagonistas que sofreram muito despertam a empatia do leitor.

Uma das formas de mostrar que um protagonista sofreu muito é fazê-lo órfão, mas não apenas isso, ele precisa ter sido órfão desde a infância, afinal poucas coisas são tão tristes quanto uma criança sem pais. Claro que há casos em que o protagonista não sofre tanto, pois é/foi criado por outra família que o acolheu, contudo a perda dos pais verdadeiros sempre será um fantasma em sua vida.

Exemplos: A Crônicas do Matador do Rei, Eragon, Harry Potter, Império das Tormentas, Jogos Vorazes, Mistborn, Rangers, Star Wars, Trono de Vidro

4 — O herói que carrega um fardo

Parece ser uma extensão do tópico anterior, no entanto possui um aspecto diferente. Para uma boa e velha Jornada do Herói não basta o protagonista ser órfão e ter sofrido muito, ele precisa carregar um fardo que ninguém mais carrega, fardo que pode assumir várias formas, como um sacrifício que ele precisa fazer, uma decisão difícil que ele precisa tomar ou uma tarefa nada benigna que ele precisa cumprir para salvar a todos. Em alguns casos o herói é o único que pode enfrentar o vilão malvado e poderoso e em outros ele precisa portar um objeto cujo poder maligno apenas ele pode resistir. A personagem Clarke Griffin de The 100 (série de Ficção Científica que mescla elementos do fantástico com viés científico) definiu muito bem o papel narrativo do fardo em uma única frase: “Eu aguento para que eles não tenham que aguentar”.

Exemplos: As Crônicas de Shannara, Harry Potter, Naruto, O Senhor dos Anéis, The 100

5 — Humanos são ambiciosos e detestados por outras espécies

Na fantasia o que mais se tem são espécies (referidas mais como raças) diferentes dos humanos e que possuem sapiência e senciência. Elfos, anões, fadas, gnomos, duendes, centauros, as criaturas são as mais variadas e cada uma possui sua cultura, civilização, modo de pensar e agir, porém quase sempre estes seres enxergam os humanos com desconfiança, vendo-os como gananciosos, traiçoeiros e mesquinhos, com os próprios humanos muitas vezes dando motivos para estes estereótipos.

Duendes veem os bruxos (que são humanos) como arrogantes e prepotentes, enquanto na visão dos elfos os homens são mais suscetíveis a serem corrompidos e atraídos pelas sombras. Não importa muito que os humanos do mundo real sejam bastante diferentes e diversificados entre si, no mundo fantástico eles tendem a seguir comportamentos padrões a toda espécie.

Exemplos: Avatar (Filme), Harry Potter, O Senhor dos Anéis

6 — Protagonista humilde com origem nobre

Quando o protagonista é apresentado como uma pessoa pobre e que sofre preconceito por isso, é muito possível que ele na verdade não tenha sua origem tão humilde assim. O garoto esquisito que é perseguido na escola é na verdade filho de um deus, o bastardo esnobado pela nobreza é o filho legítimo de um rei, a assassina mais temida do reino é uma princesa perdida, o garoto órfão que rouba para sobreviver é filho de uma nobre que abandonou os títulos ou aquele menino que todo mundo detesta é filho do grande herói que salvou o vilarejo.

Exemplos: As Crônicas de Gelo e Fogo, Percy Jackson, Naruto, Trono de Vidro

7 — O Escolhido

Há muito tempo atrás (ou não tanto tempo assim) um mal assolou o mundo até ser impedido por um grande herói. Entretanto o mal não morreu totalmente e um dia retornará para trazer escuridão ao mundo, mas não tema, existe uma profecia que diz que o grande herói retornará ou que surgirá outro e este herói terá o poder de salvar a humanidade.

Obviamente o caminho deste herói não será fácil, ele precisará primeiro cumprir as etapas da Jornada do Herói (o que pode incluir morrer e ressuscitar) para só depois salvar o mundo. Ele enfrentará traições, sofrerá perdas terríveis e em vários momentos terá sua coragem abalada. Toda estas intempéries no entanto não o destruirão, pois ele tem algo que ninguém mais tem e que está relacionada com o próximo tópico.

Exemplos: As Crônicas de Gelo e Fogo, Harry Potter, Mistborn, Percy Jackson

8 — “A verdadeira força está dentro de você”

Apesar de haver magia, feitiços incríveis, superpoderes ou armas poderosas, não é nada disso que vai derrotar o grande vilão no final. O herói vencerá o antagonista com o amor - a arma mais forte o mundo, ou superará um grande desafio com o poder da amizade.

Um rechonchudo lutador de Kung Fu abrirá o Pergaminho do Dragão para saber o grande segredo e não verá nada além seu reflexo, entendo que o grande segredo na verdade era ser ele mesmo. Ao mesmo tempo uma mãe que estava prestes a ter seu filho morto se joga na frente do feitiço que iria matá-lo. Ela morre no lugar de seu filho e este sacrifício proporciona à sua prole proteção máxima, pois nada é mais forte que a magia do amor. Ou então o grande vilão da trama se redime de tudo que fez ao ver seu filho ser eletrocutado, voltando a lutar pelo lado do bem e morrendo como parte final de sua redenção.

Exemplos: Harry Potter, Percy Jackson, Rangers, Star Wars… E toda a franquia de Digimon.

9 — Mapa horizontal com montanhas no leste

Este aqui parece não fazer sentido nenhum, todavia se trata de uma tentativa quase unânime dos escritores de Fantasia de recriarem a Europa medieval. Nos mundos fantásticos criados pelos escritores há quase sempre um mapa e este geralmente é um continente quase todo cercado de água, exceto no leste aonde normalmente estão as montanhas.

A Europa é exatamente deste jeito, com o mar mediterrâneo ao sul, oceano atlântico no oeste, o oceano ártico no norte e os Montes Urais ao leste. Como já mencionado no primeiro tópico, dificilmente os autores se aventuram a escrever Fantasia que se afaste demais da Europa medieval e isto é refletido até na composição geográfica do mundo.

Exemplos: A Crônica do Matador do Rei, Eragon, O Senhor dos Anéis, Rangers

Este texto, embora apresente certo teor satírico, não tem como objetivo criticar histórias construídas sob a luz dos tópicos apresentados. Os clichês aqui referidos parecem estar batidos de tanto que já foram usados, mas não precisam ser necessariamente evitados. Os arquétipos e elementos da boa e velha Jornada do Herói são características universais presentes em várias narrativas fantásticas e mitológicas. Cabe ao escritor saber usá-los de maneira criativa para que possam apesar de tudo soar originais.

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Allan F. Gouvea
O Autômato

Geólogo e Escritor, foi aluno de História antes de ingressar na Geologia pela Universidade Federal do Pará. Leitor e apreciador de Fantasia e Ficção Científica.