O Complexo de Édipo de Ivar

Allan F. Gouvea
O Autômato

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Ivar, o sem-ossos é um dos personagens mais controversos do mundo das séries. Filho de Ragnar e Aslaug, cruel e carismático, ele consegue ser amado por uns e odiado por outros, dividindo opiniões no fandom de Vikings. Porém muitas de suas atitudes sanguinárias e narcisistas podem ser explicadas se avaliarmos a forma como ele foi criado por sua progenitora. Tendo recebido atenção e protecionismo desenfreados de sua mãe — que pouco fez para repreendê-lo em momentos em que devia –, Ivar acaba por desenvolver uma personalidade mesquinha e egocêntrica, como consequência de um Complexo de Édipo não dissolvido.

Complexo de Édipo é um fenômeno psíquico proposto pelo psicanalista Sigmund Freud em seu livro “A Interpretação dos sonhos” de 1900. Segundo Freud, há uma fase na infância em que o filho experimenta desejo amorosos em relação a sua mãe e passa a direcionar ódio ao pai. Ao sentir desejos pela mãe, o menino passa a ver o pai como um obstáculo, despertando a vontade de livrar-se dele.

A resolução acontece quando em determinado momento da vida (geralmente aos três anos de idade) o menino recebe proibições — a família e a sociedade lhe impõem regras e ele se dá conta de que não pode fazer tudo o que quiser. E quando percebe que não pode assumir o lugar do pai, o menino renuncia à mãe, pois constrói a ideia de que será castrado como castigo se persistir nos mesmos comportamentos, fenômeno que Freud chama de Complexo de Castração.

A ausência dessa castração simbólica e um Complexo de Édipo não resolvido podem acarretar consequências e repercussões negativas na vida adulta, tais como dificuldade em manter relacionamentos (amorosos ou não), dificuldade em lidar com frustrações, não aceitação emser contrariado e crença de que todos os seus desejos devem ser atendidos. Em suma, todas características encontradas em Ivar Ragnarsson.

Para entendermos como o complexo edipiano atua no personagem nós precisamos analisar sua trajetória, desde seu nascimento. Em determinado momento da série, Ragnar ao voltar da Inglaterra procura sua esposa Aslaug para fazer sexo, porém ela tem uma profecia e diz a Ragnar que ela daria luz a um monstro caso os dois tivessem relações naquele momento. Como a relação acabou acontecendo o “monstro” nasceu, se tratando na verdade de um bebê cujas pernas não possuíam ossos, o que fez Ragnar querer sacrificá-lo (prática comum naquela época), fato que não foi consumado, pois Ivar ao ser abandonado em uma floresta pelo pai, foi resgatado por sua mãe. A partir de então todos os esforços de Aslaug se concentraram, basicamente, em cuidar de Ivar, o que significava protegê-lo a qualquer custo, mesmo que para isso tivesse que mantê-lo isolado de todos.

Ivar abandonado na floresta por Ragnar e resgatado por Aslaug. Vikings, Temporada 2, Episódio 8.

Conforme Ivar vai crescendo a relação entre seus pais vai se deteriorando, o que era previsível, pois o casamento entre Ragnar e Aslaug não era baseado em amor, mas em interesses mútuos. Ragnar não poderia ter mais filhos com sua primeira esposa, Lagertha, pois segundo o Vidente esta nunca mais conceberia novamente. Ragnar, considerado descendente de Odin agora e agora um Jarl (lorde nórdico) se uniu a Aslaug — de origem nobre — para continuar tendo filhos dentro de sua estirpe.

Após o nascimento de quatro filhos (sendo Ivar o mais novo) o casamento entre os dois se desgastou a tal ponto que relações extraconjugais se tornaram comuns por ambas as partes. Enquanto Ragnar esteve em outra expedição na Inglaterra, Aslaug se envolveu com um misterioso homem chamado Harbard. Quando Ragnar retornou Aslaug o procurou, mas ele se absteve de fazer sexo com sua esposa.

Vikings, Temporada 3, Episódio 5.

Estes fatos trazem à luz uma questão muito importante sobre o personagem Ivar: ele nunca passou pelo Complexo de Castração. Recebendo toda a atenção da mãe e não tendo o pai como ameaça, o garoto assume que pode de fato assumir o lugar do pai e não teme ser castrado como castigo. A partir de então Ivar, o desossado passa a acreditar que todos os seus desejos devem ser atendidos, uma vez que além de não ser castrado também não lhe foi imposta nenhuma proibição pela sua família, neste caso, a mãe.

O protecionismo exagerado de Aslaug para com seu filho mais novo a fez negligenciar os cuidados com os seus outros filhos, mas especificamente com Sigurd, que era o segundo mais novo, criando a primeira dificuldade de relação de Ivar. Ao longo da segunda parte da quarta temporada da série nós vemos Sigurd zombar e debochar de Ivar a todo momento, tentando diminuí-lo de todas as formas, o que pode ser explicado pela perda do cuidado maternal que ele teve por causa de seu irmão.

A falta de proibições e o Complexo de Édipo não dissolvido se somaram ao fato de Ivar ser tratado com pena por todos que o conheciam, deixando-o frustrado e aborrecido, pois ele não queria que os outros sentissem pena dele e sim que o enxergassem como uma pessoa igual às outras, não como um aleijado digno de piedade.

“Tirando minha mãe, eu nunca soube o que é ser amado, ou amar de verdade. Meu pai me deixou para morrer quando eu era um bebê, por eu ser um aleijado. Todos sempre me trataram primeiramente como um aleijado. Tudo que eu sempre quis era que eles me amassem. Mas vi que era impossível. Então eu fiquei com raiva de todo mundo. Eu senti raiva toda a minha vida.” — Ivar. Vikings, Temporada 5, Episódio 14.

Agora somando a falta de proibições, a não dissolução do Complexo de Édipo e o ódio que o personagem sentia por todos, resultou em uma pessoa profundamente egocêntrica e com pouca empatia, que se importa apenas com suas próprias vontades e necessidades. O primeiro momento em que isso pôde ser observado nitidamente foi durante o quinto episódio da quarta temporada. Ivar estava brincando com outras crianças com uma bola de couro que cada uma jogava para a outra. Preso em seu carrinho de mão Ivar não participava da brincadeira, mesmo implorando para que as outras crianças jogassem a bola para ele, até que Floki a tomou e a deu para ele. Neste momento um menino tenta pegar a bola da mão de Ivar e os dois travam um embate por ela até Ivar matar o garoto com um golpe de machado na cabeça.

A reação de todos foi de medo e espanto, mas a mãe de Ivar ao ver aquilo apenas o pegou no colo dizendo para ele não ter medo, pois ele não era culpado pelo que aconteceu, demonstrando com clareza que ela não impunha nenhum limite às ações do filho, tudo isso, claro, para protege-lo. Com a sua mãe nunca o repreendendo por mal comportamento ele cresceu achando que as regras sociais não valiam para ele.

Vikings, Temporada 4, Episódio 5.

Alguns episódios mais tarde ele soube da morte de Siggy, que era filha de Bjorn, portanto sua sobrinha. Ela havia sido morto por negligencia, seu pais e seus avós estavam em expedição, tentando invadir a França e ela ficou aos cuidados da esposa de Ragnar, que a deixava sempre sozinha e à deriva para cuidar de Ivar e dá atenção ao seu amante, Harbard. Certo dia Sigurd encontrou-a morta em um rio e foi avisar aos outros. A reação de Ivar foi simplesmente indiferença.

Sigurd avisa Aslaug e Ivar sobre a morte de Siggy. Vikings, Temporada 4, Episódio 9.

Após a morte de sua mãe ele perdeu seu único freio moral e começou uma guerra contra seus irmãos. A partir de então o desenvolvimento do personagem corre em uma única direção, que é a do culto a sua própria personalidade, chegando a se declarar um rei e não aceitar que ninguém lhe faça oposição. Isso tudo culmina na morte do Vidente de Kattegatt, pois Ivar o matou quando o mesmo além de não aceitar apresentá-lo como um deus para a sociedade também falou coisas desagradáveis a seu respeito.

“Você é Ivar, o Desossado, filho de Ragnar. Tudo está escuro. Nós vamos, todos nós, adentrar a escuridão. A sua carruagem está tão quebrada quanto as suas pernas. Uma cobra se aninhou em seu crânio e seus olhos o traem. Seu caminho está cheio de lixo e imundície. O horror! O horror!” — Vidente. Vikings, temporada 5, episódio 14.

Em outro momento a personagem Thora, ao ser interrogada por Ivar, diz que ele não é um deus e que o pai dele, Ragnar, não faria o que ele estava fazendo, pois ele deixava o povo livre para pensar e fazer o que quisesse.

Vikings, Temporada 5, Episódio 19.

E assim, podemos inferir que o comportamento agressivo, egocêntrico e cruel de Ivar, o desossado é o resultado de uma criação falha. Os cuidados excessivos de sua mãe e a ausência de seu pai para castrá-lo fizeram com que ele desenvolvesse uma personalidade sádica e individualista, resultando no que mais tarde seria uma guerra familiar que ameaçaria tudo aquilo pelo que Ragnar lutou e conquistou durante toda sua vida.

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Allan F. Gouvea
O Autômato

Geólogo e Escritor, foi aluno de História antes de ingressar na Geologia pela Universidade Federal do Pará. Leitor e apreciador de Fantasia e Ficção Científica.