Imagem por Adam J. Marin (https://www.brotherwisegames.com/name-of-the-wind-art)

O dia em que nos inquietamos com o futuro é aquele em que deixamos a infância para trás

Allan F. Gouvea
O Autômato

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Uma das séries literárias que eu mais gostei de ler foi “A Crônica do Matador do Rei” de Patrick Rothfuss. Esta saga é tão incrível que a capa de seu primeiro livro ganhou uma citação de George R.R. Martin que se refere a ele como “a melhor fantasia épica de 2011”. O Nome do Vento — primeiro livro — nos apresenta o protagonista Kvothe (pronunciado de forma semelhante a ‘quote’) que parte em busca de vingança contra aqueles que mataram sua família.

A princípio não parece se tratar de uma narrativa original, contudo o romance não foca na aventura de um grande guerreiro à procura de justiça, o epicentro da obra está justamente em mostrar como uma pessoa comum lida com as perdas e como estas perdas podem dá um sentido para sua vida, um objetivo para continuar seguindo em frente. E este objetivo muitas vezes pode significar a perda da inocência, pois traçar uma meta de vida significa esquecer a despreocupação que temos na infância. No início do capítulo 12 de O Nome do Vento, Kvothe na condição de narrador em primeira pessoa nos diz:

“Quando crianças, raramente pensamos no futuro. Essa inocência nos deixa livres para nos divertirmos como poucos adultos conseguem. O dia em que nos inquietamos com o futuro é aquele em que deixamos a infância para trás”.

Esta afirmação é tão significativa porque resume o maior desafio de se tornar adulto, que é adotar uma perspectiva de vida e pensarmos diariamente no dia de amanhã. Quando crianças nós somos imediatistas e levamos uma vida baseada em momentos. Quando adultos nos preocupamos com o futuro e nos tornamos ansiosos.

Porém apesar desta frase estar presente na referida obra, este é um tema recorrente em diversas franquias. A perda da inocência da infância simbolizando a passagem para a vida adulta pode ser observada em várias histórias já escritas, com cada personagem sofrendo esta passagem ao seu modo e com suas próprias peculiaridades. O que Kvothe diz é na verdade algo que sintetiza um dos conflitos primordiais presentes em histórias da literatura fantástica.

A Jornada do Herói mais uma vez nos brinda com exemplos de protagonistas que de início não se preocupavam muito com que poderia acontecer no dia seguinte, mas que logo se viram diante da inevitável necessidade de se preparar para a vida adulta. Estes exemplos são tão numerosos que gerariam uma longa discussão e aqui apresento alguns do exemplos mais conhecidos, destacando as situações gerais em que em cada um ocorre.

1 — Kvothe (A Crônica do Matador do Rei)

O personagem que nos deu a emblemática frase sobre deixarmos a infância para trás é o mesmo que em momentos antes no livro definiu sua própria infância como “uma infância feliz, crescendo no meio de um interminável parque de diversões”. Nada poderia corroborar mais com a ideia de não que não pensamos no futuro quando criança.

Kvothe é filho de artistas itinerantes e passou os primeiros doze anos de sua infância viajando com a trupe da família, de povoado em povoado, realizando apresentações artísticas. Para ele o mundo se resumia àquilo e parecia que nunca iria mudar. Claro que ele como toda criança já sabia que um dia iria crescer, entretanto esta não era uma questão presente em seus pensamentos. Tudo o que importava para ele era continuar vivendo daquele jeito que o deixava feliz e que em seu inconsciente seria eterno.

A mudança aconteceu quando seus pais decidiram compor uma canção sobre um lendário grupo chamado O Chandriano. Infelizmente este grupo nunca gostou de que informações a seu respeito fossem reveladas e em uma única noite assassinou toda a trupe, exceto Kvothe que estava brincando no bosque naquele momento. Foi neste momento que Kvothe, ao se ver sozinho no mundo, percebeu que sua infância não seria para sempre. Ele passaria os próximos anos vivendo nas ruas de uma cidade chamada Tarbean, lutando diariamente para sobreviver e sempre se preocupando com o próximo dia. Posteriormente ele muda seus objetivos e em vez de sobrevivência diária ele se dedica a investigar sobre o Chandriano para não apenas vingar sua família, como também entender o que motivou tal grupo a assassiná-la.

Mas o fato importante é que a vida passou a ter um significado, ele encontrou no massacre de sua família um objetivo para continuar vivendo e com isso elaborou planos para o futuro, fazendo-o deixar a infância para trás. A vida adulta lhe deu uma perspectiva no momento em que a despreocupação infantil lhe foi tirada.

2 — Frodo (O Senhor dos Anéis)

O protagonista do livro escrito pelo pai da fantasia moderna foi durante três décadas o que podemos definir como um perfeito hobbit. Ele vivia no Condado e morava com seu tio em uma toca chamada Bolsão. Frodo conhecia as histórias de aventuras de seu tio Bilbo quando este era mais novo, todavia estas história lhe pareciam lendárias e representavam uma realidade muito distante da sua. A vida pacata e bucólica do Condado tem os ingredientes perfeitos para que um hobbit criança tenha uma vida tranquila e sem preocupações com o futuro. Ironicamente no caso de Frodo esta preocupação com o futuro que deixa a infância para trás veio no ano em que ele deixou de ser oficialmente criança.

“Mais doze anos se passaram. Todo ano os Bolseiros davam animadas festas duplas de aniversário em Bolsão; mas agora se entendia que alguma coisa muito excepcional estava sendo planejada para aquele outono, Bilbo ia fazer onzenta e um anos, 111, um número bastante curioso, e uma idade muito respeitável para um hobbit (mesmo o Velho Túk só havia chegado a 130); e Frodo ia fazer trinta e três, 33, um número importante: o ano em que se tornaria um adulto.” — A Sociedade do anel, p. 21.

Aos 33 anos Frodo não apenas atingiu a maioridade, ele também passou a de fato se comportar como adulto, uma vez que passou a pensar no futuro. Seu tio Bilbo partiu do Condado e deixou com ele a responsabilidade de guardar o Um Anel. Posteriormente ele também foi incumbido da missão de levar o anel de volta para as Fendas da Perdição e ali destruí-lo. Este caminho além de tirar de Frodo a sua despreocupação de infância lhe levou a um destino que o deu feridas que jamais cicatrizariam, tudo isso, novamente falando, coincidindo com o exato ano em que ele se tornou um hobbit adulto. Frodo perdeu a calma e tranquilidade da infância no Condado e ganhou a inquietação com o futuro.

3 — Harry Potter (franquia homônima)

A primeira infância de Harry Potter não foi muito boa, já que ele vivia com seus tios que detestavam magia e por isso o maltratavam de todas as formas. No entanto ele recebeu a chance de ter uma vida feliz em uma lugar fantástico chamado Hogwarts. Ali Harry estudou magia e fez amigos, tendo pela primeira vez laços e afetos verdadeiros e nisso se resumiu a sua vida durante anos, sem muitas preocupações com o futuro.

Tudo o que importava para Harry era estudar em Hogwarts e aproveitar toda a magia que a escola lhe oferecia: as aulas de Defesa contra as Artes das Trevas, o Quadribol, o chá na cabana de Hagrid aos sábados, os feriados em Hogsmeade e principalmente a companhia de seus amigos. Claro que questões como qual profissão ele seguiria ao se formar vinham à tona conforme os anos passavam, porém não eram preocupações relevantes, não apresentavam ameaça ao modo de vida simplório e alegre que ele tinha.

Até que a última tarefa do Torneio Tribuxo veio e com ela a morte de Cedrico e o Retorno de Voldemort. Harry passou a enxergar os testrálio e a inquietação com o futuro pairou em sua mente. Agora ele teria muito com o que se preocupar, pois sabia que Voldemort tentaria matar ele e as pessoas que ele amava. Todo o mundo bruxo estava sob ameaça do Lorde das Trevas e cada vez mais Harry percebia que ele estava no centro da luta. Aqueles dias em que seu único medo era não ser pego fora da cama durante a noite foram aos poucos se extinguindo, até culminar no dia em que Harry decidiu não voltar para Hogwarts e focar seus esforços em destruir Voldemort. Se o mundo bruxo lhe deu a chance de ter uma infância feliz, também lhe tirou esta infância na mesma medida, o imergindo em uma vida adulta repleta de preocupações com o futuro.

4 — Jon Snow (As Crônicas de Gelo e Fogo)

O bastardo de Winterfell não tinha uma vida ruim, apesar do desprezo recebido pela esposa de seu “pai” e de não ser herdeiro de nenhum título. Ao contrário da maioria dos bastardos de Westeros, Jon Snow foi criado em um castelo, desfrutando de todas as regalias que a vida nobre poderia lhe dá. Ele não precisava se preocupar em ajudar os pais no trabalho como normalmente acontecia em uma família camponesa e podia dormir tranquilo sabendo que teria o que comer no dia seguinte.

No entanto ele ainda era um bastardo e isso aos poucos foi pesando cada vez mais em sua perspectiva de vida. Na visão dele seu meio-irmão Robb herdaria Winterfell e o título de Protetor do Norte, enquanto Bran e Rickon governariam castros em seu nome, ao passo que ele, sendo filho ilegítimo não teria nada para herdar. Ele precisava encontrar algo para dedicar a sua vida ou viveria para sempre da caridade de seus meios-irmãos.

Ao partir com seu tio Benjen para a Muralha e ingressar na Patrulha da noite, ele deixa para trás a sua infância e busca um propósito para si mesmo. Talvez o que tenha verdadeiramente motivado Jon Snow a vestir o manto negro da patrulha não fosse a vontade de servir aos Sete Reinos, mas a inquietação com o futuro que Kvothe tanto fala. Jon sabia que os dias despreocupados na companhia de Robb e Theon logo chegariam ao fim, ele tampouco poderia ficar para sempre brincando de espadas com Arya.

Obviamente que mesmo na Muralha a vida de Jon Snow continuou tendo um caráter imediatista, o que mudou era que em vez de correr pelo castelo com seus irmãos Starks, ele agora defendia os Sete Reinos ao lado de seus irmãos juramentados. Contudo foi nesse novo imediatismo que ele encontrou de fato algo para guiar sua vida: a luta contra os Outros (Caminhantes Brancos).

A ameaça vinda do norte fez com que o bastardo temesse pelo destino de todos aqueles que viviam ao sul da Muralha, percebendo que chegaria um dia em que o exército dos mortos marcharia pelo continente, trazendo desordem e destruição. Algo devia ser feito, o reino dos homens precisava se prevenir e ele escolheu fazer parte dos que um dia teriam que lutar. E deste modo, Jon Snow pôde enfim deixar a infância para trás e adentrar na agitação da vida adulta, que é movida a preocupações com o futuro.

Deixar a infância para trás ao se inquietar com o futuro não é algo exclusivo dos heróis da ficção, todos nós passamos por esse processo. Em um momento somos crianças brincando num parquinho, mas em pouco anos estamos pensando em qual carreira vamos seguir, nos preocupando com o vestibular ou como vamos fazer para pagar as dívidas que eventualmente começam a aparecer. Não é à toa que muitos dizem que a melhor fase da vida é a infância, já que — salvo exceções — é uma época que se resume a nos divertirmos sem pensar demais no futuro e quando as tribulações da vida adulta chegam nós pensamos na infância como um tempo bom que nunca mais volta.

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Allan F. Gouvea
O Autômato

Geólogo e Escritor, foi aluno de História antes de ingressar na Geologia pela Universidade Federal do Pará. Leitor e apreciador de Fantasia e Ficção Científica.