A senhora procura seus óculos tateando a cômoda na cabeceira da cama. Abre os olhos para procurar melhor, mas não adianta quase nada e demora ainda alguns minutos para achar o óculos que havia caído no chão durante a noite.
Levanta e abre a cortina, a luz do sol atrapalha sua visão debilitada e reflete o calor pelas lentes de seu óculos fundo de garrafa. Anda quase rastejando para a mesa da cozinha, vai passar um café e abrir a porta para pegar o jornal no tapete da entrada. A primeira página está estampada com notícias da família imperial e seu novo monumento na antiga capital nacional. A senhora já tem mais de 80, coça a cabeça e tenta abrir o jornal e ler até o fim. A página de economia apresenta o gráfico do crescimento baixo, intitulado como “o crescimento sustentável de um novo país”, a senhora já apresenta sinais de cansaço até ali. Se levanta e vai regar as mudas de morango que tem na varanda, estão começando a dar frutos já. A cidade está cinza, cheia de prédios de até 5 andares, sinais que as coisas andam mudando. O asfalto é preto agora, está inteiro e em bom estado, isso que ela nem mora no centro, coisa que parecia impossível no seu tempo. É, é um novo país mesmo.
Agora trajada com sua calça legging e seu tênis, vai ao parque próximo de casa para dar aquela caminhada. Vê casais jovens se paquerando, alguns outros estudando ali perto, uma ou outra família fazendo piqueniques e rindo feliz pelo filho ter arrotado no meio da mastigação. A senhora passou por todas essas fases, mas já não se lembra o porquê não aproveitou tanto quanto essas outras pessoas. Meia hora após o início da caminhada, ela agora senta e espera o tempo passar. Tira da mochila a garrafa d’água e três pedaços de bolo que fez no fim de semana. Os pombos querem um pouco, ela dá as migalhas que caíram na camiseta para eles, que guerreiam pelo resto. Ela rapidamente associa-os aos cidadãos de seu tempo e dá uma risada envergonhada.
De volta em casa, ela corre para o banheiro, o papel é extremamente macio e ela pensa em como é feliz por ainda conseguir fazer suas coisas sozinha. Vai para o banho gelado e esquece a toalha do lado de fora. Sai nua pela casa e ao passar pela janela que abrira mais cedo, ao acordar, é atingida com um tiro certeiro na cabeça. O estrondo espanta os pássaros da região que voam para longe, o único barulho que foi ouvido naquela manhã.
Dias após, os jornais anunciam a morte da renegada senhora de 87 anos, pivô de um passado recente da história do país. Imagens de sua posse e de sua queda, os escândalos envolvidos e o ódio de mais de 150 milhões de pessoas. Na cara, a imagem da ex economista e o escárnio da nação. Milhares de trabalhadores e empresários nas ruas, fogo em prédios e edificações públicos. Paus e pedras. Gente nua. As ruas tomadas e o grito em uníssono, o ódio e o asco de um povo direcionado diretamente ao centro da pátria. Uma semana depois, já jogada em uma vala comum como indigente, saudosistas daquela época com jaquetas jeans surradas e boinas pretas lamentam o modo como foi tratado o corpo e a violenta morte da velha. Em seu enterro, alguns homens da cavalaria real e poucos parentes, que na época eram tão jovens que foram poupados, olhavam e ajudavam na abertura e no fechamento da vala. A ossada ali, misturada a tantos outros renegados dessa época negra. Esquecida.
Poucas semanas depois, as ações voltaram a subir no mercado. O mundo voltava ao seu eixo depois do último pivô da escuridão ter caído. Não se divulgou como a morte realmente ocorreu. Se soubessem que havia sido um condecorado, ele havia se tornado um membro da guarda real instantâneamente. A imagem era clara, os tempos eram outros. Não havia mais paz aos homens não íntegros, havia espaço para todos nessa nova terra de gigantes trabalhadores, homens esforçados e mulheres bravas. Imigrações de países em dificuldades em massa, a busca da esperança era a motivação daquele que era o primeiro país a fundar um novo sistema político, social e econômico. Tudo parecia certo aqueles tempos que tanto precisavam de tal harmonia com o mundo e com as pessoas, menos aquela podre maçã no cesto de frutas frescas. As lágrimas de desesperança de uma antiga crise, hoje abriam as portas para os novos Estados Unidos da América do Sul.