As donas da festa

Um caleidoscópio da representação feminina no carnaval carioca

Olga Lopes
ObjorC
5 min readSep 28, 2018

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A matéria Quem dá a letra do seu carnaval? foi publicada originalmente no dia 20 de fevereiro de 2017 no portal Gênero e Número, organização de mídia independente com produção focada no recorte de gênero em eixos temáticos como mobilidade urbana, esporte, cultura, entre outros. Conhecida por ser uma publicação online, que utiliza amplamente bases de dados públicos, na reportagem em questão também são apresentadas estatísticas pontuais sobre a participação feminina no carnaval do Rio de Janeiro, porém a proposta aqui é examinar o perfil de 10 mulheres que participam em diferentes cargos e atividades relacionadas à construção da festa.

Os textos desta série especial são assinados por Giulliana Bianconi e Maria Lutterbach, dentro de um contexto de produção majoritariamente feminino, composição de expediente raríssima em veículos da mídia tradicional. Esse diferencial se faz presente especialmente no tratamento conferido às personagens entrevistadas ao longo de todo o especial.

Já na arte de capa da matéria as fotografias de Elisa Mendes oferecem um vislumbre de mulheres de etnias, idades e biotipos diferentes, capturadas em poses descontraídas, em cenários que dão pistas sobre a diversidade de papéis que exercem dentro do contexto do carnaval.

O título da série, assim como as fotografias, reposicionam a presença feminina como protagonista, não só participante ou “objeto de desejo” na festa. “Quem dá a letra” é quem faz, executa e aqui vemos as responsáveis por fazer acontecer a “maior festa popular do Brasil”.

O carnaval enquanto fenômeno cultural também carrega em si as tensões e dilemas nos quais as mulheres estão imersas ao longo do ano.

Ao fazer uso de uma pergunta (Quem?), as autoras já expõem uma das temáticas da reportagem: muitas vezes não sabemos quem são essas mulheres, que ainda são minoria nesse e em outros espaços, mas elas existem e cada perfil mostra as estratégia e desafios que enfrentaram para ocuparem lugares de destaque, evidenciando sem sombra de dúvida que são parte fundamental da construção do evento. Apesar do número de personagens ter o potencial de assustar os leitores mais casuais, a linguagem do texto é leve e todos os perfis são objetivos e interessantes o bastante para tornar a leitura fluida.

Uma dificuldade de produzir um material como esse é o trabalho de pesquisa exigido para encontrar as entrevistadas e compor um bom panorama da representação feminina. Aqui a saída (ou talvez o ponto de partida) foi estabelecer parceria com o bloco de rua Mulheres Rodadas, fundado por duas amigas jornalistas, que reúne foliões de todos os gêneros que desfilam na quarta-feira de cinzas desde 2014 e durante todo ano realiza oficinas de percussão, palestras sobre o feminismo e shows. Esse tipo de colaboração facilita a tarefa de triagem de potenciais entrevistadas, dando uma pista de como tornar mais diverso o leque de fontes consultadas.

Apenas uma entrevistada é integrante do próprio Mulheres Rodadas, a professora de xequerê (instrumento musical de percussão) Patrícia Santos. As demais personagens citam desde agremiações renomadas, como a Mangueira, onde Sista Wolff conta como foi ser uma das primeira ritmistas na bateria; e Imperatriz Leopoldinense, Império Serrano e Salgueiro através da trajetória da carnavalesca Rosa Magalhães. Entre os blocos de rua, alguns exemplos são o Carmelitas, no qual Raquel Potí se apresenta com pernas de pau e o bloco Fogo da Paixão, em que Alice Pereira toca baixo. Se faz notar que a parceria com o bloco Mulheres Rodadas não limitou o escopo da reportagem apenas aos blocos, o que contribui para oferecer aos leitores um gostinho da pluralidade de “carnavais” que o Rio tem a oferecer, tanto pela perspectiva das que recentemente passaram a vivenciá-lo quando das que dedicam sua vida a ele.

Apesar de não se aprofundar nesses temas transversais, optando por valorizar o relato mais pessoal e particular das entrevistadas, a menção deles ao longo da reportagem ajuda a lembrar que o carnaval enquanto fenômeno cultural também carrega em si as tensões e dilemas nos quais as mulheres estão imersas ao longo do ano.

No caso da já citada Rosa Magalhães, seus 70 anos são tratados pela reportagem como fonte de experiência, observado no uso adequado de adjetivos como “calejada e vitoriosa”, abordando com naturalidade, leveza e bom humor suas queixas sobre o cansaço físico de supervisionar a preparação dos adereços e carros alegóricos. Os 40 anos de carreira de Rosa também servem de trampolim para discutir a reduzida presença feminina em postos de liderança no Grupo Especial carioca. Em sua comparação dessa atividade com trabalhos que exerceu como figurinista e cenógrafa para cinema, teatro e TV, ela ressalta que no carnaval sua liberdade de criação é infinitamente maior, o que nos leva a ver sua trajetória como exemplo de possibilidade para outras artistas iniciantes (como é o caso de tantas outras personagens da série), mas nesse caso específico também evidenciam que o controle criativo e estético das escolas de samba ainda é muito masculino, um problema quando pensamos que isso nos priva de interpretações artísticas mais diversas.

Além da representação feminina em si, a série perpassa temas como o machismo e racismo evidente nas antigas marchinhas de carnaval, maternidade e ocupação do espaço público, saúde mental, transgeneridade, assédio sexual nos blocos, entre outros. Muitas vezes as personagens são convidadas a opinar sobre temas transversais ao carnaval, como é o caso da coreógrafa e bailarina Aline Valentim, que abre a série e comenta as polêmicas acerca da apropriação cultural, enfatizando o papel da dança enquanto instrumento de resistência e expressão da cultura negra.

Se o jornalismo como um todo tem o papel de ser um espelho da realidade, ele falha ao não trazer à tona mais vezes histórias riquíssimas como as dessas mulheres, especialmente no contexto da cobertura repetitiva e superficial tão frequente nos meios de comunicação a respeito do carnaval e de outros eventos Brasil afora. A reportagem da Gênero e Número brilha ao nos indicar caminhos de renovação, não só no que diz respeito à sua pauta e abordagem, mas também ao cumprir sua função enquanto instrumento da sociedade civil capaz de dar voz e respaldo a quem, apesar de todas as dificuldades, contribui para manter viva essa manifestação da cultura popular brasileira.

O especial Quem dá a letra do seu carnaval? está disponível em:

http://www.generonumero.media/especial-carnaval-2017

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