Pílulas de Música

Luís Adriano M. Costa
ObjorC
Published in
11 min readMay 14, 2020

Entre umas e outras com Moraes Moreira

Posologia — Como forma de aumentar os efeitos da pílula, acessar os links indicados ao longo do texto.

Moraes Moreira ia fazer um show em São Paulo, com o Spok Quinteto, pelo projeto “Frevo Pernambucano, Sotaque Baiano”. O repertório ficou a cargo do maestro pernambucano: “Spok bicho, o repertório é com você. Você sabe o que eu canto, o que eu gosto de cantar, os frevos e tal”.

Almoçaram juntos no dia do show por volta das 13h. Spok mostrou o repertório a Moraes Moreira, que logo se deu por falta de alguma coisa.

- Peraí, e cadê a Spok Frevo Spok?

- Não Moraes, não precisa tocar não.

- Precisa meu velho, precisa. Por que você não colocou?

- Porque nada a ver eu colocar meu velho. Vou fazer um repertório e colocar uma música em minha homenagem? Mas, se você quiser tocar…

- Quero tocar! Bote aí! É o meu bis. E qual é o seu?

- Moraes é Frevo.

- Oxe, o que é isso?

- É um frevo que a gente fez pra você.

- Sério? Então tá lindo! Como é?

- Calma, você vai ver na hora…

Deixa que a música Moraes é Frevo não existia. Spok queria retribuir a gentileza do sempre gentil Moraes Moreira. Cuidou de dissuadir o baiano da ideia de fazer a passagem de som para ganhar tempo, voltou para o hotel e quase como um mantra repetia: “Meu Deus, me dê uma melodia, me dê uma melodia, me dê uma melodia…”.

Algum tempo depois, chega Spok mais apressadamente ao encontro dos músicos, que já estavam fazendo a passagem de som. Interrompeu e já foi anunciando:

- Para, para, para tudo aqui.

- O que foi?

- Pega essa música agora bicho!

- Que doidice da porra é essa Spok?

- A gente tem que pegar essa música agora!

Foi solfejando a melodia e finalizando a música ali mesmo no palco, com os músicos, que ainda não sabiam do que se tratava.

- Bicho, o que é isso hein?

- Meu irmão, essa é a música Moraes é Frevo. A gente vai tocar no bis.

Quando estavam terminando a passagem de som, repetindo, burilando, ajustando a mais nova composição, chegou Moraes. Ao ouvir o frevo em sua homenagem, vibrou: “Adorei bicho!”.

Os diálogos podem não ser tão certeiros assim. A história é contada por Spok. Eu já conto a história que Spok contou. E confirmou comigo! Moraes soube tempos depois. O certo é que Spok recebeu um frevo canção de presente, gravado em 2008, no álbum “A história dos novos baianos e outros versos”. E o baiano de Ituaçu ganhou um frevo instrumental, lançado em 2014 pela SpokFrevo Orquestra, no álbum “Ninho de Vespa”.

Spok acertou na mosca. Deixou em vida uma merecida homenagem, um frevo do tamanho de Moraes, com uma melodia que lhe chegou como que psicografada para o baiano que com suas composições alcançou algumas das principais vozes da música popular brasileira.

Nomes como Gal Costa, Simone, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Marina Lima, Ney Matogrosso, Elba Ramalho, MPB 4, Baby do Brasil, Marisa Monte, Fagner, A Cor do Som, entre outros tantos, fizeram sucesso com suas músicas. Dono de um extenso repertório, também alcançou um público variado.

Gerações se encontram em torno de Moraes. A geração de Manu, Pupu e Patrícia; que esbarra com a turma de Rafa e Helô; e se depara com a tropa de Luciano, Galego, Geraldo e Rangel; até o abraço na geração contemporânea de Moraes, como Biu, Seu Sílvio e Seu Fernandes.

Anônimos, desconhecidos uns dos outros, mas que se reúnem nas lembranças guardadas, cantadas e aqui contadas através das músicas de Moraes. E não foram poucas. Composições colecionadas ao longo dos seus 50 anos de carreira, pra lá de 500, distribuídas em seus mais de 40 discos. E como ele mesmo dizia: “a música é também do público”.

Até porque depois que a música é entregue o rumo e o significado na cabeça de cada um é de cada um. Misturam-se letras, histórias, melodias inteiras ou pedaços de canções. E isso está longe de ser um problema. Se em meio a tantos hits lançados dia a dia, um deles foi pinçado e está compondo um mosaico na memória afetiva de alguns, ainda que confuso, é porque pegou. E Moraes fez isso como poucos.

A música Sintonia, um dos maiores sucessos da carreira do baiano, em parceria com Fred Góes e Zeca Barreto, presente no disco “Mestiço é isso” (1986), deve ser uma das recordistas em histórias, pelo menos a julgar pelos anônimos aqui reunidos…

Era uma roda de violão de amigos. Rangel puxou logo aquela levada para causar impacto. Todo mundo parou para prestar atenção. O momento era aquele. A certeza do gol! Da consagração! Fez o misancene todo e na hora que foi soltar o gogó com o famoso verso que abre a canção “Escute essa canção, que é para tocar no rádio, no rádio do seu coração…”, aparece o padrinho Pedro, que nunca tinha cantado uma música numa roda de violão na vida inteira, atropela todo mundo e sai com essa: “Não me canso de falar que te amo, e que ninguém vai tirar você de mim…”, trecho da música Ninguém vai tirar você de mim, que ganhou fama na voz de Roberto Carlos nos anos 60. E Rangel teve que engolir o verso e aprumar o rumo da canção. Quanto ao padrinho Pedro, a culpa é sempre daquela azeitona.

O tio Ítalo também adorava tocar essa música no violão para toda a família, se recorda Pupu. Já Seu Sílvio lembra de um vizinho amigo que chegava sempre para uma visita. Era o Diolgo. Um sujeito gente boa que usava calçados de número 44 para um pé quarenta e pouco, o que lhe causava uma certa estranheza no jeito de andar. Sempre que passava por lá, entre um papo e outro, Diolgo soltava a voz: “Deixa eu ‘pindentar’ na tua onda, deixa eu ‘pindentar’ na tua praia…”. E Moraes deixou sem deixar e sem saber, um tal de “pindentar”.

Sintonia inspirou paixões. As possíveis e as impossíveis. A música foi tema de um amor platônico para o Galego, que via a atriz Maria Zilda Bethlem na novela “Hipertensão”, da Rede Globo, ao som de Sintonia, ali pelos anos 80. Era um desiderium, um olimpo, uma motriz infernal dos hormônios, que quando batia sete da matina dava uma explosão irradiada nele. E a danada da música ficava ressoando o resto do dia, atanazando o pouco juízo do Galego. A musa se foi. Ficou a canção, corporificada em Maria Zilda. Ficou também a certeza que ela, a famosa atriz, era doida por ele. Eu acho até que o Galego se via no galã Túlio, interpretado por César Filho, e que na trama ignorava o amor de Carina, personagem de Maria Zilda. Seria o alter ego do Galego? Aí é coisa da psicanálise freudiana. Ele e o Galego que se entendam.

A música tocou muito nas rádios também. Disso Biu não esquece. E ainda cantarola o trecho da canção em meio ao nosso papo. Amante das rádios AM, ele escuta essa canção sempre associando à mensagem radiofônica, um meio de comunicação que lhe fala muito. Como fala para Patrícia também. Ela guarda a lembrança da música saindo pelas ondas do rádio, preenchendo a cozinha, a sala, os cômodos vizinhos, chegando ao quintal, com todos cantando na antiga casa que reunia a família inteira. Dessa recordação, Pombo Correio também faz parte de um modo muito especial. Quase o prenuncio de um tempo futuro que parecia guardar todas as boas possibilidades da vida.

Penso que fosse algo assim para a pequena Manu ao ouvir sua mãe cantar. Imagine a criança sonhar com a imagem de um pombo mensageiro voando o mundo com uma carta no bico? A mensagem é de amor. E embora a dor de uma saudade lhe chegue sempre que escuta a canção, é dona Suely que se faz presente, espanta a tristeza e acalenta o coração da menina que cresceu ouvindo Moraes na voz da sua querida mãe.

Pombo Correio é o primeiro grande sucesso do artista depois que deixou os Novos Baianos, em 1974. Gravada em 1977 no disco “Cara e Coração”, ganhou as telas no mesmo ano como trilha sonora da novela “Sem Lenço, Sem Documento”, da Rede Globo. Originalmente, a música se chamava Double Morse, uma versão instrumental de Dodô e Osmar, de 1952. Moraes pediu permissão para colocar a letra e se consagrou como o primeiro cantor dos trios elétricos baianos. Ali também já se mostrava para o país. Era Moraes Moreira e não mais um “ex-Novos Baianos”.

Com o início da carreira solo, veio uma maior aproximação com Armandinho e alguns sucessos. Entre eles, Chame Gente, música que dá nome ao disco de Dodô, Osmar e Armandinho, de 1985. Moraes gravou dois anos depois no já citado “Mestiço é Isso” e, posteriormente, uma versão ao vivo no disco “A história dos Novos Baianos e outros versos” (2009).

A canção tornou-se um hino do carnaval baiano e se alastrou por todo o Brasil. Fez tanto sucesso que veio da Bahia de São Salvador para a Baía da Traição causar frisson no coração de Marcone. Luciano é quem conta. Diz que todas as vezes que Marcone ouvia a música chorava lembrando de um carnaval que passou com a sua ex-mulher. Bastava começar a introdução e já vinha o mesmo chororô, o que levava um outro amigo a dizer: “vai chorar de novo Marcone!”. O problema é que a música estava estourada. Tocava o tempo todo. Coitado do Marcone… A música não é das mais românticas, mas quem explica as coisas do coração. E do coração do Marcone, então?

Meninas do Brasil, presente no disco “Bazar Brasileiro” (1980), é mais um registro importante na carreira de Moraes Moreira e marca a parceria com o poeta cearense Fausto Nilo, uma das mais frequentes na sua trajetória. Juntos, emplacaram sucessos como Pão e Poesia, Coisa Acesa, Bloco do Prazer, Santa Fé e Chão da Praça.

Difícil escolher uma dessa cepa, mas Meninas do Brasil é um desses acertos primorosos. Uma letra que se renova a cada escuta, emoldurada por um arranjo que não se pensa uma coisa sem a outra. Como que tivessem nascido de um mesmo sopro. E tornou-se um sopro divino aos ouvidos de Geraldo, capaz de se pensar no dom da música em aproximar os homens de Deus com a gravação posterior por Jussara Silveira, Rita Ribeiro “Rita Benneditto” e Teresa Cristina, no álbum “Três meninas do Brasil” (2009). A interpretação das três meninas não saiu da cabeça de Geraldo. Sonhava dia e noite. Dormindo e acordado. Chegou ao despautério de sonhar em casar com as três… Se pode? E não era sonho…

Contraindicações: As histórias aqui reunidas são todas baseadas em fatos reais, com personagens também reais. Em caso de alguma reação adversa, não interromper a leitura. Se os sintomas persistirem e a leitura for interrompida, acessar o link a seguir: Besta é tu — Pepeu Gomes/Moraes Moreira/Galvão — Acabou Chorare (1972).

Um velho novo baiano

É lugar comum, mas não se fala em Moraes Moreira sem mencionar os Novos Baianos. Do encontro com Paulinho Boca de Cantor, Luiz Galvão, Baby do Brasil e Pepeu Gomes restou álbuns emblemáticos e uma das histórias mais incríveis da música brasileira. Uma rapaziada que saiu da Bahia para o Rio de Janeiro com o sonho de viver de música numa comunidade alternativa. Na bagagem, um caldeirão de influências. Uma diversidade de gêneros musicais, com a forte presença do rock dos The Rolling Stones, The Beatles, Janis Joplin, Jimi Hendrix e The Hoo. O som que já soava inovador para a época, ganhou força com a influência do violão sincopado de João Gilberto. Com ele, vieram referências como Assis Valente, Noel Rosa e Wilson Batista.

A história é conhecida e já contada pelos quatro cantos. Assunto para uma outra pílula e olhe lá… Moraes saiu dos Novos Baianos. Mas, nunca deixou de ser um deles. A sua obra revela. Ele também nunca escondeu isso, seja nas entrevistas sempre concedidas com bom humor ou mesmo nas suas canções. É o caso de Sambadô/Deixa os pés no chão, que abre o seu último álbum “Sertão” (2018). Em algum lugar por ali ele conta sobre os velhos e novos baianos como pioneiros na música brasileira.

No encontro do velho com o novo, “Acabou Chorare” (1972) é um álbum singular nessa história. Menos por ter sido eleito pela Revista Rolling Stones Brasil como o disco mais importante da música brasileira de todos os tempos. A quem diga até que o trabalho posterior, “Novos Baianos F.C.” (1973), seja ainda mais emblemático na trajetória do grupo. Seja como for, “Acabou Chorare” deixou sua marca para gerações que se seguiram. É botar o som, sentir a pancada e ver a década de 70 passar cinquenta anos pra frente.

Mistério do Planeta é uma dessas pedradas. Tocou tanto na chácara de Seu Fernandes, que filhos, esposa e amigos esconderam o disco. Acabava ali o mistério do planeta e começava o mistério do disco. A trela rendeu algumas horas. A piada permanece até hoje, junto com a lembrança do inconfundível violão de Moraes. Sem deixar de lembrar da letra para além daquele e desse tempo de Galvão. Mistério do Planeta voltou às paradas do sucesso na chácara de Seu Fernandes e cia. Nunca mais parou e nem vai parar de tocar.

“Acabou Chorare” traz também Preta Pretinha, mais uma com a marca de Moraes. Galvão escreveu a música para um amor não correspondido. Ele corria. A barca corria mais. A moça da barca foi embora. E nasceu mais um clássico dos Novos Baianos. E se Geraldo não casou em sonho com nenhuma das três meninas, foi com Preta Pretinha que ele se entendeu. Aí sim, um amor correspondido. Pretinha é apelido carinhoso que traz a barca pra perto. Já para Rafa, a canção é sinônimo de praia, dos verões que passava em Formosa. Nesse caso, até cheiro de protetor solar Preta Pretinha tem, num tempo em que nem se falava em câncer de pele!

De um jeito ou de outro, Moraes foi e continua presente. Lembranças de gerações, sempre com uma boa história guardada. Anônimos ou famosos. Basta dizer que no seu mais recente álbum “A Pele do Futuro” (2019), Gal Costa começa e termina o show com duas do velho novo baiano: Dê um rolê, parceria com Galvão, em “Novos Bahianos + Baby Consuelo no Juízo Final” (1971); e Festa no Interior, dessa vez com Abel Silva, que estreou com Gal no álbum “Fantasia” (1981).

Dê um rolê é outra para além desse tempo. E virou trilha de amizade para Helô. A lembrança é de um festival de música psicodélica. Uma viagem de ônibus de Londrina, no Paraná, para Rio Negrinho, em Santa Catarina. Jovens ansiosos pelo melhor carnaval de suas vidas. O acampamento numa fazenda. Quatro dias de música, performance, arte espalhada por todos os lados. Foi assim que conheceu Tassia, a atriz. E a amizade eternizada no refrão “Eu sou, eu sou, eu sou o amor da cabeça aos pés”, cantado pra sempre, em cada novo encontro.

A atriz virou musicista. E em tempos de pandemia, impossibilitada de fazer suas apresentações, criou o projeto “Peça uma canção”. De Tassia para Helô, chegou a versão ao piano de Mistério do Planeta. Tão inédita quanto a amizade que se formou.

Festa do Interior, como dizia um amigo conterrâneo de Moraes, foi o pipoco do trovão azul! E bota pipoco nisso. A música chegou às rádios num dia e no outro já estava estourada na voz de Gal Costa. É som para toda e qualquer boa festa junina ou carnaval. Essa lembrança é minha. Do carro via as estrelas que brilhavam ao som da música e se confundiam com as estrelas do céu. Era uma viagem animada aquela ao som de Gal, na companhia de familiares e de Moraes. Pensava que a noite ficava acesa com as fogueiras. Com os estouros. Com as bombas numa tal guerra magia. Era uma noite clara. Eram bombas do bem. Pareciam enfeitar o céu inteiro. Ali mesmo, onde trincheiras de alegria explodiam de amor.

Alegria, saudade, paixão, amizade e amor. São esses os motes da trilha que Moraes Moreira nos deixou. E se engana quem achar que acabou. Ficaram, pelo menos, vinte músicas inéditas a serem gravadas por vozes femininas. Era esse o projeto dele. Que venham mais essas!

Nas histórias e nas canções. Vamos encontrar Moraes por aí. Sempre assim, leve. Porque como ele mesmo diz na sua Arco Íris, presente no seu acústico (1995):

“Vou indo no trem da vida

Passagem só a de ida

Pra mim não tem essa de voltar;

Todo lugar é bonito

E o meu caminho infinito

Aonde vou me encontrar…”

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Luís Adriano M. Costa
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Aborda aqui histórias e papos diversos sobre o universo da música dissolvido em pílulas de texto. É jornalista, professor do Decom/UEPB e idealizador do ObjorC.