ObjorC Entrevista

Saulo Queiroz

Diretor de Programação da Tv Itararé/Editor do programa Diversidade

Equipe ObjorC
ObjorC

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Logo do programa Diversidade, TV Itararé

“…a gente privilegia a fala do outro que nos deu o privilégio de falar.

mais de 20 anos na imprensa campinense, o jornalista Saulo Queiroz passou por diversas empresas, atuou como radialista, produtor executivo, ocupou o cargo de gestor do Teatro Municipal Severino Cabral, além de escrever e dirigir vários espetáculos de teatro. Toda essa bagagem o credenciou a criar o departamento de programação da TV Itararé, onde também viria a ser o responsável pela produção de conteúdo cultural do programa Diversidade. Numa conversa franca quanto às perspectivas do jornalismo cultural na cidade e região, Saulo Queiroz compartilha suas experiências, questiona modelos, práticas, e aponta caminhos para uma melhor formação dos profissionais no jornalismo, com destaque para o jornalismo cultural.

Atualmente cursando o mestrado em Jornalismo Profissional (UFPB), Saulo Queiroz discute as perspectivas em torno do jornalismo cultural

ObjorC: Em que contexto foi criado o programa Diversidade?

Saulo Queiroz: O Diversidade surgiu um ano depois da criação da TV Itararé. A TV foi fundada em 2006, dia 29 de setembro de 2006, e exatamente no dia 30 de julho de 2007 o Diversidade estreou. Mas, estreou sob resistências internas, porque a minha proposta inicial era que o programa fosse como é hoje, um programa diário de jornalismo cultural, com duração de meia hora. Muita gente achou que era um absurdo, que Campina Grande não tinha produção suficiente para gerar pautas para um programa diário. Mas, com pouco tempo a gente provou que era exatamente o contrário, se tivéssemos duas edições diárias do programa, de segunda a sexta, teríamos pautas suficientes para cobrir. Quando a gente fala em jornalismo cultural, ainda é uma coisa arraigada na mente do público e das pessoas que produzem a comunicação: jornalismo cultural, indústria cultural, agenda cultural. Mas, o jornalismo cultural não é só isso, tem raízes na crítica, na reflexão, tem raízes em outras áreas nas quais hoje em dia a gente não o vê tão atrelado, devido ao fortalecimento da indústria cultural. O capitalismo tem tentáculos muito fortes, então as empresas de comunicação passaram a seguir os ditames da indústria. Aqui, por se tratar de uma TV pública, a gente tem uma liberdade que me permitiu romper desde o começo questões de duração, tanto é que desde o começo a gente investiu em conteúdos longform, reportagens mais longas, entrevistas mais longas. A agenda cultural é pautada também na indústria cultural e showbusiness local, mas não só nisso. Nós somos a única TV hoje em dia que divulga diariamente a agenda dos museus de Campina Grande. As agendas culturais das outras emissoras raramente noticiam que nós temos museus; a gente tem uma média de seis museus em atividade aqui em Campina Grande.

ObjorC: É preciso estar atento aos assuntos que nascem com os segmentos populares, a cultura que se manifesta em diferentes espaços da sociedade. A gente sabe que o Diversidade tem como uma de suas premissas trabalhar a informação nesse caminho de resistência na construção de um jornalismo mais plural, sensível, principalmente, em relação aos agentes populares. Nesse sentido, quais seriam os principais critérios de seleção das abordagens desenvolvidas pelo programa?

Saulo Queiroz: Critérios de noticiabilidade no jornalismo já é um mistério, imagina no jornalismo cultural, tanto que é o objeto do meu estudo no mestrado, porque vários fatores se cruzam. Acho que no Diversidade uma coisa que ajudou muito ao programa ter essa cara plural foi romper com determinadas regras que impediam que alguns assuntos, personagens ou eventos tivessem valor notícia. Logo quando o programa estreou, eu lembro que a gente se sentou para fazer uma reunião de pauta e ia ter o show de Zé Ramalho aqui, a equipe ficou no maior frisson e uma pessoa da equipe sugeriu: “Por que a gente não faz Baixinho do Pandeiro, que é mais acessível?”. É até engraçado, parando para pensar, mas é uma sacada boa, porque Zé Ramalho tem a grande mídia na mão de certa forma, ele é noticiado desde que surgiu. Não é que não mereça ter espaço, mas vamos fazer Baixinho do Pandeiro? E fizemos uma matéria com Baixinho do Pandeiro encantadora. Então, o que foi que aconteceu? A gente rompeu o

primeiro paradigma e criou um critério de noticiabilidade que é esse: não vamos nos pautar pelo que está estabelecido. Elba Ramalho é importante, Baixinho do Pandeiro é importante, a biblioteca central é importante, mas tem uma biblioteca nas Malvinas, vamos mostrá-la. Tem uma menina que descobrimos recentemente tocando pandeiro e fazendo um repertório baseado no melhor da música nordestina, Eloisa do Pandeiro, em Areia, vamos trazê-la. Então é um trabalho mesmo de você cavar, ir atrás, sem esse preconceito que é ditado pelas regras do dia-a-dia que atribuiria a um pouco de acomodação da parte dos jornalistas, um pouco do fator comercial quando é uma TV comercial, que há uma pressão muito grande nesse sentido.

ObjorC: O programa constantemente entrevista pessoas dos mais diversos segmentos, algumas estão falando de seus projetos pela primeira vez. Quais os principais desafios em lidar com personagens em contextos diferentes? Isso é algo levado em consideração na estruturação das pautas?

Saulo Queiroz: O problema é anterior à estruturação das pautas. Precisamos ver esse perfil de visão plural das pessoas que vem trabalhar com a gente. Na construção da pauta, a gente trabalha com muita liberdade, as orientações que eu dou para pautas geralmente são orientações orais, até porque o nosso sistema de trabalho na programação é um sistema que a divisão de tarefas tem aspectos positivos e negativos. A gente deixa que as pessoas atuem um pouco em tudo, até por contingências do departamento que não tem muita gente. A gente sabe que é fundamental enquanto mediadores da sociedade que é plural, dar voz a todas as manifestações artísticas, culturais, religiosas. Nesse sentido, a gente não tem tolhimento, não tem amarras, obviamente isso passa por um processo de edição posteriormente, mas a edição é muito respeitosa, a gente privilegia a fala do outro que nos deu o privilégio de falar.

ObjorC: O programa acaba funcionando como um registro histórico de diversas manifestações culturais que ocorreram e que ocorrem em Campina Grande e região. Como é que você avalia essa função do jornalismo cultural como registro da memória da cultura local?

Saulo Queiroz: O Diversidade é um repositório da memória cultural, histórica e estética da nossa região. Não é o repositório ideal, porque ele passa por uma edição e é uma edição que tem uma condição que obedece aos traços das diretrizes da “casa”, que são diretrizes muito maleáveis. Eu ainda acredito que a melhor forma de ter um repositório nesse sentido é também partir para depoimentos orais que não sofram muita edição, sejam mais espontâneos — pegar a pessoa que tem história pra contar, gravar e disponibilizar lá na internet, isso é uma fonte rica. Acredito que, mesmo com essas limitações, somos hoje, na internet, o repositório nos últimos dez anos mais importante da nossa cultura. As pessoas podem baixar, o canal não é monetizado já para não ter determinadas limitações, porque a partir do momento que monetiza tem algumas regras, então a gente tem isso aberto para quem quiser baixar e utilizar em trabalhos, em pesquisas, em sala de aula ou em documentários.

ObjorC: Vocês produzem séries especiais ou reportagens mais longas que nem sempre encontramos em emissoras comerciais. Qual a importância de operar dentro de uma outra lógica de produção?

Saulo Queiroz: Operar nessa lógica desde o início, para mim, tem sido um elemento de manutenção da minha própria pessoa aqui dentro, porque se eu não o tivesse, eu certamente não estaria mais aqui. Estou falando como a voz de liderança do programa e do departamento.

Eu não conseguiria agir se determinados temas fossem vetados. Operar dentro dessa lógica para mim é o único caminho possível, se não tiver como não tem razão de manter um programa que se propõe plural. E aqui vou até fazer uma comparação, vejo muito o Metrópolis e tenho visto que o Metrópolis muitas vezes, em muitas edições, tem seu conteúdo voltado para uma agenda. Não sei se por uma questão de redução do tempo (hoje em dia ele está com quinze minutos em média) mas eu vejo muito o Metrópolis atrelado a uma agenda cultural. É interessante e importante que seja feito, mas poderia ter algo como a gente faz por aqui, coisas atemporais, não atreladas ao factual cultural.

ObjorC: Você aborda a importância de operar dentro de uma outra lógica de produção, com espaço para a pluralidade. Mas, pensando no momento em que a gente está vivendo hoje, com certo conservadorismo revelador de um olhar que estigmatiza, estabelece padrões, que vai de encontro à diversidade, que avaliação pode ser feita quanto ao papel de uma emissora pública diante desse contexto?

Saulo Queiroz: Estamos vivendo um momento histórico, que está em andamento, a gente não sabe o que será praticado no Brasil. Inclusive, em relação aos órgãos de comunicação, porque um presidente que é eleito dentro de uma república, dentro de um sistema democrático, que já impede, antes de ser empossado, que determinados órgãos participem de coletivas de imprensa, eu já acho meio… E ainda quero acreditar que as pessoas vão ter bom senso. Eu ainda quero acreditar. Então, em se tratando especificamente daqui da Fundação Pedro Américo e da Tv Itararé, eu sou até meio repetitivo nesse sentido, eu acredito que Campina Grande tem uma sorte muito grande, porque a nossa capital tem uma TV pública, que é a TV UFPB, que enfrenta muitos problemas para manter uma programação, para criar conteúdo. Então, além de termos como criar conteúdo, nós temos liberdade. Eu não vou dizer uma liberdade 100% porque não existe uma liberdade assim. Estou falando em termos de pauta, de propostas de programas.

ObjorC: Pensando nisso, seria o caso de passarmos por uma necessária reformulação dos modelos que temos aqui no Brasil, com uma ampliação do espectro, contribuindo para que a nossa experiência em torno de um sistema público fosse mais efetiva, com conteúdos mais diversificados?

Saulo Queiroz: Sem dúvida nenhuma. Porque a gente está num sistema capitalista cruel, em que uma vez atrelado ao lucro, tudo fica mais difícil. Então, numa TV pública a primeira coisa que é rompida é isso: o fator lucro não entra. Aliás, em TV pública nem se fala de lucro, já que é um investimento. O que entra, que passa, é reinvestido na própria emissora. Então, é fundamental que haja essa liberdade e as TV’s públicas podem fazer isso, os órgãos criados dentro de um sistema público de comunicação podem agir dessa forma. Há um outro lado, que é perigoso,

quando há subvenção estatal porque uma vez que tem ligação com o governo, a sociedade tem que fiscalizar para que o governo não use o órgão público para propaganda partidária. Isso é fundamental. Sobre outro aspecto, vou falar até de uma rádio na qual eu fui testemunha de algo muito curioso. Vai responder bastante essa pergunta. Dentro desse espectro de atuação das rádios na Paraíba, mais especificamente em Campina Grande, até meados da década de 90, você ouvia as rádios e a programação de rádio era baseada nas playlists das gravadoras que chegavam via representantes — que eram figuras que vinham também imbuídas de um dever de criar, às vezes, até um sistema de jabá. Mas era sutil e naquela a música brasileira tinha uma produção bacana do ponto de vista estético, melódico, de letra, mais rico do que muita coisa que está sendo produzida hoje. Então nós tínhamos uma certa diversidade. A gente tocava desde o forró pé-de-serra até o novo disco de Gal Costa, de Caetano, Pink Floyd, Pet Shop Boys, enfim… Por volta de 1992, nessa rádio foi instituído o jabá documentado. O que era isso? A criação de um contrato de envolvimento. O contrato de envolvimento só podia ser celebrado entre uma parte que tivesse como pagar e a emissora e, geralmente, os artistas locais que trabalham com forró, não tem como fazer esses investimentos. Resultado: abriu-se dentro dessa rádio vários horários para tocar as músicas das bandas Mastruz com Leite, Limão com Mel, e dos empresários do Ceará, que na época estavam ‘bombando’, investindo muito. E veja, eu não estou querendo comentar nada que envolva demérito ou mérito estético das bandas. Eu estou falando especificamente da questão comercial, o quanto é injusta. E aí eu testemunhei a chegada de Marinês e Biliu de Campina com os CD´s debaixo do braço pra pedir pra tocar. E eu vendo aquilo lá, o cúmulo da hipocrisia, porque eram recebidos, a promessa de que iriam tocar era feita e os discos eram arquivados. Porque não tinha como tocar, a programação estava contratualmente comprometida. Daí respondendo de forma direta: é fundamental que o espectro se amplie, tenha mais de uma TV Pública, tenha mais de uma rádio pública, do contrário, esses registros, essas formas de arte e comunicação autênticas, genuínas, não atreladas à Indústria Cultural perdem a voz, e as pessoas não vão conhecer.

ObjorC: Falando sobre essa questão, como você enxerga a possibilidade desse campo do jornalismo ser encarado como entretenimento em alguns veículos jornalísticos?

Saulo Queiroz: Eu acho que é isso, é um mercado. O mercado é muito forte, tem tentáculos visíveis e invisíveis. E estão movendo as pessoas ali. Quando você menos espera, você diz ‘puxa vida, eu não sabia, aquilo é por causa daquilo’, tem um interesse ali por trás, entende? Às vezes é um diretor que está com determinado posto, que tem algum acordo comercial com uma empresa de shows, está entendendo?

ObjorC: Como a gente pode, positivamente, interferir nisso?

Saulo Queiroz: Tem dois problemas aí. Um diz respeito aos veículos públicos, que aqui temos poucos. Por exemplo, temos a TV Itararé, e o outro diz respeito aos veículos comerciais que, embora sejam comerciais, são concessões públicas. O que é que falta? Atuar enquanto cidadãos. A gente não fiscaliza, a gente não reclama, a gente não denuncia. Eu vou dar um exemplo. Eu estava ouvindo uma rádio aqui de Campina Grande após a eleição do atual presidente. Eu comecei a ouvir um debate — entre jornalistas, viu?! — e mais uns convidados, de apologia a uma série de coisas que vão contra qualquer princípio que você tenha de civilidade, e foi ao ar. É uma concessão pública. Precisamos cobrar ética e lisura de quem está usando os meios de comunicação, que são, afinal de contas, meios também que fortalecem a política, infelizmente ou felizmente.

ObjorC: Voltando a essa questão do jornalista cultural, também tem uma questão de formação. Quais as principais características de um jornalista cultural? Você acha que uma formação específica pode ajudar no desenvolvimento de um olhar mais sensível? E quais seriam as orientações que você daria para um estudante de jornalismo interessado em atuar na área?

Saulo Queiroz: Eu vou citar Wellington Pereira, jornalista, professor, doutor, especialista em Jornalismo Cultural, de João Pessoa, que, numa postagem há alguns meses, falou de como está sendo difícil para os professores de jornalismo incutir nos jovens e estudantes que é importante ler em profundidade. Não é só ler, é ler em profundidade.

Quando eu leio, dependendo da velocidade, do tempo que eu tenho entre a primeira leitura e a segunda, eu não vou ter como digerir aquilo, entende? Fatalmente, os conteúdos ficam curtos e rasos. Aí como é que você está fazendo uma formação em jornalismo, vai ser um comunicador, e você não lê em profundidade? Você tem que ler em profundidade as coisas. É difícil? É. Requer tempo? Requer. Para o jornalista, é fundamental que ele tenha uma visão múltipla da sociedade, sendo ele mediador de várias vozes.

ObjorC: Com a experiência do programa ao longo desses anos, como o Diversidade vem apoiando o desenvolvimento cultural da região e atuando na formação de novos públicos nesse segmento?

Saulo Queiroz: Eu encontrei com Elton Paulino outro dia, professor de Arte Mídia e é produtor audiovisual, inclusive, premiado e tal. E aí eu conversava com ele sobre o Diversidade, até pedindo algumas dicas de possíveis pessoas que pudessem assumir um quadro que ele tinha no programa, que era o Cineclube, e que ele falava de cinema. Aí ele disse: ‘Olhe, Saulo, eu quero aproveitar aqui pra registrar uma coisa, agora é que a gente está percebendo o quanto o Diversidade foi importante no boom que a gente teve audiovisual na época do surgimento do Comunicurtas em diante’. Não só especificamente do Comunicurtas, todas as produções que estavam sendo feitas na cidade de audiovisual a gente tentava noticiar, e conseguimos noticiar a maioria delas. Eu disse: ‘Mas isso favoreceu em que sentido, do ponto de vista mesmo da prática?’. Aí ele disse: ‘Vou lhe dar um exemplo. Pra gente se inscrever em editais, geralmente eles pedem que seja noticiado em algum órgão de comunicação’. Então, eles colocavam as reportagens do Diversidade, e conseguiram passar em vários editais. Olha que coisa boa, está vendo?! Então, os reflexos que a gente não aferiu ainda e que vem, às vezes, de um testemunho como esse. Então, eu acredito que a gente fortaleceu muito. Um outro depoimento que me deixou muito feliz foi o de Álvaro Fernandes, do SESC. Álvaro disse que, até antes do Diversidade, eventualmente as TV’s o procuravam para fazer as matérias relacionadas ao Palco Giratório, as ações do Sesc. Ele disse que depois do Diversidade e da TV Itararé, é impressionante, ligam sempre perguntando. Nem sempre fazem as matérias, mas a gente vê uma procura maior das ações culturais do SESC. E acredito que, em outras áreas, o Diversidade também ajudou muito ao abrir um pouco a mentalidade de quem pauta.

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