Semiótica negra

Luciano Justino
ObjorC
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8 min readNov 30, 2020

Sobre sapatos e botas: a semiótica negra lendo o “Último capítulo” de Machado de Assis

Publicado em 84 na coletânea “Histórias sem data”, “Último capítulo” é um conto… obscuro…, um verdadeiro labo B na obra de Machado de Assis.

O conto é o “testamento” de um suicida, o resumo de uma vida de azares: “sou um grande caipora, o mais caipora de todos os homens”.

Apesar do propósito inicial de “sair calado”, como convém a um suicida discreto, o narrador Matias Deodato resolve explicar o porquê da decisão final sobre seu pífio legado, “poucos livros, roupa de uso e um casebre que possuo em Catumbi, alugado a um carpinteiro”: empregar todo o dinheiro arrecadado “em sapatos e botas novas, que se distribuirão por um modo indicado, e confesso que extraordinário”.

A razão de tão insólita decisão é justificada no final do conto:

“Vi passar um homem bem trajado, fitando a miúdo os pés. Conhecia-o de vista; era uma vítima de grandes reveses, mas ia risonho, e contemplava os pés, digo mal, os sapatos. Estes eram novos, de verniz, muito bem talhados, e provavelmente cosidos a primor. Ele levantava os olhos para as janelas, para as pessoas, mas tornava-os aos sapatos, como por uma lei de atração, interior e superior à vontade. Ia alegre; via-se-lhe no rosto a expressão da bem-aventurança. Evidentemente era feliz; e, talvez, não tivesse almoçado; talvez mesmo não levasse um vintém no bolso. Mas ia feliz, e contemplava as botas”.

“A felicidade será um par de botas? Esse homem, tão esbofeteado pela vida, achou finalmente um riso da fortuna. Nada vale nada. Nenhuma preocupação deste século, nenhum problema social ou moral, nem as alegrias da geração que começa, nem as tristezas da que termina, miséria ou guerra de classes; crises da arte e da política, nada vale, para ele, um par de botas. Ele fita-as, ele respira-as, ele reluz com elas, ele calca com elas o chão de um globo que lhe pertence. Daí o orgulho das atitudes, a rigidez dos passos, e um certo ar de tranquilidade olímpica… Sim, a felicidade é um par de botas”.

Convenhamos, esse motivo, de última hora, num convence: “vi passar um homem” que “ia feliz, e contemplava as botas”. O motivo parece solto, mal costurado no enredo, num conto tão afeito às datas e aos minutos, a uma urgência na notação dos fatos, culminar num fato jocoso, de claro nonsense…

A críticas sobre “Último capítulo”, pouquíssima, resolve tudo na chave mestra da ironia e do ceticismo atribuído ao teor filosofante da obra do autor.

Menos filosófico e irônico, pra mim ficou sempre a impressão de um conto de enigma num sentido muito particular, na medida em que embora se queira explicar ou aparente cinicamente fazê-lo, o narrador mais embota a verdadeira razão de sua decisão do que de fato a explica. É como se o autor quisesse vender a seus leitores do 19 e a nós um engodo, uma falsa pista.

O que me leva a pensar que a justificativa embusteira funciona muito bem pros leitores das muitas revistas banais para as quais Machado escrevia, as Veja, Caras ou Contigo da época; pacificar, mas apenas aparentemente, o medo branco dos recorrentes devires negros, cuja consequência imediata foi a abolição da escravatura poucos anos depois de sua publicação.

Mas que, por sob a camada superficial, algo mais relevante se revelasse, para além do riso e do sarcasmo.

Pena a crítica machadiana ter comido essa lebre, a da ironia e do ceticismo. Considero o “Último capítulo” um conto em que falta o essencial, e em se tratando de um mestre da narrativa, essa falta é tudo, porque intencional.

Hoje estou convencido de que o que falta é exatamente o enlace disso com a questão racial no brasil da segunda metade do 19. Ou melhor, o que aparentemente falta, pode ser escavado a partir de uma outra leitura, a de uma semiótica negra.

O conto foi escrito entre 80 e 83, no contexto imediatamente anterior à abolição e que já encontra um número relativo de negros livres circulando pelas ruas da capital do país, cujos sapatos são um símbolo de liberdade, visto uma marca do negro escravo era andar sempre descalço.

Pra me ajudar, cito 2 excertos do ótimo “Sobre sapatos, identidade e símbolos de liberdade”, de Selma Vital:

“O estabelecimento de regras sobre a forma como um escravo negro devia se vestir teria desdobramentos e outras aplicações à medida em que as cidades passam a ser habitadas por negros livres. A forma de vestir poderia permitir acesso a um espaço antes exclusivamente branco ou torná-lo ainda mais hermético. Regras no sentido de estabelecer o que era apropriado vestir em determinados locais, limitavam sobremaneira a presença (cada vez maior) de negros livres e mulatos e sua mobilidade nos cenários urbanos, além de servir como instrumento de controle social, especialmente quando a escravidão já se esfacelava, na segunda metade do século XIX”.

“Enquanto os horrores das marcas a ferro quente, máscaras de flandres e cicatrizes de tortura pareciam coisas do passado, as imposições de vestimentas funcionavam como formas mais sutis de estigmatizar e controlar a população negra, agora presença crescente nas cidades. Tudo isso com a embalagem de modernidade que era tão cara ao ideário de fins do século XIX quanto excludente”.

Nesse período, a diferenciação pela vestimenta, particularmente pelo uso ou não de sapatos, tornou-se um fator importante de cidadania relativa, e de distinção. Sidney Chalhoub, no fundamental “Visões da liberdade”, menciona negros que preferia carregá-los nos ombros, dado o incômodo de usá-los nos pés.

Logo, o efeito do uso das botas, que o narrador enquadra numa satisfação de ordem pessoal, é sobretudo social.

Nada disso está no conto, o que quer dizer que uma leitura textual, excessivamente literária, terá como consequência erigir uma cegueira como vitória do ato interpretativo.

Não há nele qualquer menção à raça e à escravidão, muitos menos a seu iminente fim, se o homem que passa, feliz e satisfeito com seus sapatos novos, é negro ou não, a função política, digo eu, das botas o indicia, um sujeito pobre que talvez “sequer tenha almoçado” ou “carregue vintém”.

A raça é o que falta, falta que só uma leitura negra, a leitura de uma semiótica negra, é capaz de dar conta, dar conta de um mundo que falta por sob a expressa ironia e vacuidade de tudo.

Ora, isso implica dizer que uma semiótica negra não necessariamente está interessada numa “literatura negra”, numa literatura que assume textualmente uma subjetividade negra, princípio que os pesquisadores da literatura negra adotam como parâmetro.

A semiótica negra é uma estratégia de leitura, logo todo objeto lhe pertence, nenhum em particular.

Nesse sentido, “Último capítulo” não é um conto negro, mas que nem por isso deixa de ser do maior interesse pra uma semiótica negra, ele até a exige.

Mas por quê? Porque só o estatuto do signo na semiótica é capaz de alcançar o devir negro não revelado do qual ele é portador, para além da camada aparente do que é dito.

Como se sabe, o signo na semiótica desencadeia um processo, que Peirce chama de “semiose”, um processo que deve envolver 3 instâncias, 1. o significante, o texto tal qual nos aparece, neste caso o próprio conto; 2. o objeto, aquilo a que o texto se refere, seu referente, os momentos que antecedem o ato do narrador e sua vida pregressa que o justifica; 3. o interpretante, os hábitos interpretativos que levam o intérprete a compreender o que é dito de uma determinada maneira.

É a estatuto do interpretante no conto que precisa ser problematizado, voltarei a ele.

Em resumo, o conceito de signo de Peirce compreende o processo, lógico, destas 3 instâncias: “um signo ou representamen é tudo aquilo que, sob um certo aspecto ou medida, está para alguém em lugar de algo”.

Contudo, “está no lugar desse objeto não em todos os seus aspectos, mas apenas com referência a uma espécie de ideia”.

O que é essa “espécie de ideia”? O que une signo e objeto e para o qual culmina o processo semiótico, o interpretante, o efeito cognitivo que a cultura, os hábitos, os repertórios e, digo eu, os afetos e os humores dos intérpretes, que, juntos produzem o “sentido” do signo, do texto.

O interpretante é o fim, no sentido de finalidade, e o futuro do signo.

Ora, o signo não alcança, nunca, a totalidade de seu objeto, o mundo real ou imaginário; o-contém, sempre e no máximo, “sob certo aspecto”, que Peirce chama de objeto imediato do signo, esse aspecto do mundo real ou imaginário que foi possível ao signo representar, nomear, mostrar, e só ele.

Ler “Último capítulo” numa perpectiva negra, de uma semiótica negra, é interferir no interpretante do signo, no seu futuro, é molhar a dialética signo/objeto no “mar da história”, que o conto enovela nas margens da ironia e do teor filosofante de que tanto gosta a crítica.

Dito de outro modo, se “o signo sempre funciona como mediador entre o objeto e o interpretante”, nas palavras de Lucia Santaella, escavar este interpretante para fazê-lo nomear outros sentidos, é reiniciar o processo semiótico em outra base, capaz de modificar tudo e dotar de sentido novo o velho conto e suas interpretações dominantes.

Uma semiótica negra há de partir do caráter inegociável da história, desta história, que o conto retrata ao refratar. Romper com a interpretação apriorística, habitual, que mais desnorteia que revela.

Articular as botas ao devir negro por liberdade não pressupõe a busca de um realismo ontológico por traz do signo que revela uma verdade última do real. Trata-se antes de descascar o estreitamento do real para abri-lo a outros mundos do mundo.

Em outras palavras, ao descascá-lo, o que se revela não é a polpa da verdade, mas pequenas sementes, estados outros de coisas, que um novo interpretante deve nomear, reiniciando um novo processo semiótico, anti-racista, não-ontológico, histórico em toda amplitude.

A semiótica negra não força uma barra, transformando o texto na casa de Mãe Joana, embora não veja nisso nada demais, que o leitor faça de sua casa e de seus textos o que bem entender.

O que me permite fazer tal operação é o fato de no conto serem muitos os descaminhos entre o que se diz e o que efetivamente acontece. Cito 2: o episódio do casamento do narrador com uma senhora rica, “teu casamento é um dogma”, mas ela prefere outro; ou a descoberta pelo narrador da correspondência amorosa da esposa, alguém sem desejo e incapaz de um ato de vontade expressa, segundo ele, descoberta apenas mencionada, aparentemente sem importância, a ponto de não receber dele nenhum comentário adicional, o que deixa o leitor com o livro na mão.

O narrador está a toda vez colocando um entrave no processo semiótico, sempre querendo gorá-lo, quebrando sua continuidade lógica. As palavras servem para não dizer ou para dizer o que lhe é colateral.

O novo interpretante aberto pela semiótica negra entende “Último capítulo” como uma narrativa de enganos, o maior deles é o narrador não mencionar os verdadeiros motivos que levaram o passante à “felicidade”, o simbolismo de seu par de botas.

Enfim, uma semiótica negra quer estranhar o “Bruxo”, para melhor relê-lo, tecer novos fios que façam brotar novos sentidos.

Concluo com uma frase do conto: “o advérbio pertence ao estilo, não à vida”. A semiótica negra quer trazer Machado à vida.

Campina Grande, 30 de novembro de 2020

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Luciano Justino
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Poeta, escritor, docente e pesquisador do Programa de Pós graduação em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba.