Semiótica negra

Luciano Justino
ObjorC
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10 min readDec 4, 2020

“Úrsula”, dos objetos

Maria Firmino dos Reis é autora do nosso primeiro romance abolicionista, “Úrsula”, publicado em 1859.

O livro é ainda notório por outras primeiridades, o primeiro escrito por uma mulher negra, o primeiro romance “afro-brasileiro”…

“Úrsula” é um romance hollywoodeano, uma história de paixões exacerbadas, loucura e morte. Amores e desgraças, “lágrimas de sincera dor”.

O enredo é um mamão com açúcar com pitada de sangue em torno do triângulo amoroso Tancredo, Úrsula e Fernando P., o comendador.

Tancredo, após cair do cavalo na mata, é salvo por Túlio, um escravo. Grato, Tancredo o alforria. Túlio, por gratidão, o segue na vida e na morte.

Durante a convalescença na casa de Luísa B., mãe de Úrsula, Tancredo se enamora dela: é correspondido. Momento antes de casar com Úrsula, Tancredo é assassinado pelo comendador, obcecado por ela. Na emboscada, Túlio também está junto, e morre. Úrsula casa-se com o comendador, mas enlouquece.

O epílogo: após uma vida de violência e desmando, assim nos sugere a narração, Fernando P., o comendador, se recolhe no “Convento das carmelitas” até sua morte, onde passa a se chamar Frei Luis de Santa Úrsula (que loucura). Deus há de julgá-lo, espera-se.

É isso.

Apesar das muitas primeiridades, o que me interessa nele é outra coisa, o que ele oculta.

Sempre que o leio me pergunto: mas como é possível?

Desigual, mal costurado, literariamente fraco, mas fundamental pelo que oculta.

No flanco, há o rebuliço de tantas coisas que mal aparecem, como se os muitos mundos do mundo invadissem o besteirol do relato, tão incômodos que tornam tudo um pouco inverossímil, esquisito, um livro cheio de atos falhos e movimentos sugeridos, mas gorados.

Raça, gênero e a completa ausência de relações de trabalho numa sociedade capitalista de mão de obra escrava aparecem como uma espécie de assombro, como iluminações incômodas a rondar a ordem romântica da instituição discursiva dita literária, com seu excesso de personalismo e de descrições da natureza, resoluções imaginárias pra conflitos bem mais maiores.

De fato, ele me interessa por estes momentos inverossímeis e inapropriados, mal costurados numa narrativa tão tradicional.

É com o episódio destoante, ex-cêntrico, da Preta Susana, que vou moer um pouco mais a estratégia de leitura do que venho chamando de semiótica negra, manipulando os objetos, imediato e dinâmico, da semiótica de Peirce.

Em resumo, quero aqui fazer 2 movimentos em torno de 2 objetos:

1. o universo dos protagonistas, Tancredo, Úrsula e Fernando P., e quais objetos são “percebidos” e “nomeados” nesse estrato da narrativa;

2. o discurso da preta Susana no capítulo IX, me fazendo as mesmas perguntas feitas pro estrato anterior, mas acentuando a singularidade desta personagem e deste capítulo.

1. Os objetos imediatos do romantismo romântico

Todo livro, como todo signo, toda palavra, cor, figura ou som, cheiro ou sabor, semiotiza um estado do mundo, “nomeia” e torna “imediato”, através do signo, um existente, que pode ser tanto o contexto da escravidão no Brasil do 19, como em “Úrsula”, quanto uma saudade, um cansaço, um odor que nos acende a memória.

Objeto imediato é aquilo que se dá a ver no signo; o que ele, o texto, efetivamente efetiva (perdoai o pleonasmo). O pescoço da Monalisa não nos aparece pelo simples fato de não estar no objeto imediato do quadro, que só mostra o que mostra, seu objeto imediato.

De certa forma, o mundo só nos aparece por objetos imediatos de signos, de textos… ou de operações textuais com as quais traduzimos o acontecer dos fenômenos, racionalmente, sensacionalmente.

Linguageiros como somos, pra nós tudo é sensação e sentido, onde/quando toda sensação se traduz em sentido porque tendemos a fazer semiose de tudo. Em outras palavras, o mundo e suas realidades são sempre mediados pela ação de um signo, de um sistema de linguagem, de uma certa institucionalidade discursiva.

No fundamental “Semiótica básica”, John Deely conta uma pequena narrativa pra ilustar o que é o objeto pra semiótica ou quando um objeto constitui semiose: um dia um jardineiro encontra um pedaço de coisa atrapalhando a cartografia de seu jardim, vai pô-lo no lixo, óbvio. Um paleontólogo, atento como todo paleontólogo, corre e salva não uma coisa, mas um fóssil do Pleistoceno de grande importância pra pesquisa dele e pra paleontologia em geral.

A atividade do paleontólogo é a de todo narrador, dar estruturalidade sensível ao lixo do jardineiro que, sem sacanagem, já interpreta: num presta, é lixo. A diferença entre eles, paleontólogo e jardineiro, é apenas de estrato e de tipologia das ações, porque sob este aspecto, ambos constituem signo, seja lixo seja descoberta.

Para uma mente humana, de jardineiro, de paleontólogo ou de narrador, um osso nunca está só, nunca é o que é, sem deixar de sê-lo a toda vez.

O que implica dizer que o objeto imediato constituído por um romance romântico do 19, no nosso caso, é sempre mediado por uma forte carga de discursividade, inerente não só à própria língua, “matéria” do processo semiótico em “Úrsula”, mas à própria instituição literária, de seus arquivos, valores, táticas, com os quais Maria Firmina dos Reis dialoga em várias frentes ao longo da narrativa.

A narradora de “Úrsula”, “uma maranhense”, exerce um controle absoluto sobre a produção de sentido do mundo que semiotiza. Essa agência inegociável da narração no romance é um dos aspectos mais instigantes e que mais merecem ser explorados no livro.

Úrsula é um romance político, cuja narradora, participante e invasiva, munida de palavras doces, duras e redentoras, não deixa os objetos entregues a si mesmos, nem dá margem pra que eles se percam, se esquisitem. Ela os significa, julgando-os, o que implica dizer, os-paralisa.

São várias as passagens como esta: “Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima — ama a teu próximo como a ti mesmo –, e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!… Àquele que também era livre no seu país… Àquele que é seu irmão?

Ou, sobre a “plácida” casa onde Túlio leva Tancredo pra convalescer: “esplêndida claridade de um sol vivo e animador iluminava as nuas e brancas paredes dessa plácida morada, e dardejando nas vidraças das janelas, refletia sobre elas as cores cambiantes do ocaso. Aí parecia gozar-se a vida; — aí ao menos o homem terá um momento de felicidade; porque longe do buliço enganoso do mundo, com a mente erma de ambições, vive nas regiões sublimes de um pensar livre e infinito como a amplidão — como Deus”.

“Úrsula” é um romance político porque produz uma semiotização sempre judicativa dos objetos, seja a escravidão seja a natureza, sejam os afetos dos protagonistas. Os juízos da narradora sobre a escravidão são indistinguíveis de suas “relações lógicas”, no sentido semiótico da expressão, de uma certa política dos afetos.

Mas uma política dos afetos à margem da produção econômica escrava e de produções de subjetividade negra.

Não há trabalho em “Úrsula”, ninguém trabalha em “Úrsula”, os conflitos inerentes à economia capitalista da escravidão e de uma singularidade negra não são pertinentes porque exteriores à trama e ao mundo dos objetos constituídos.

Não há conflito étnico e de classe entre o “senhorzinho” Tancredo e o escravo Túlio, porque a escravidão como produção semiótica de capital, trabalho e afeto, num livro muito afetado, não é definidora das relações. O objeto imediato do signo sempre se transfere pra uma ética dos afetos marcadamente cristã, fora de qualquer conflito efetivamente social.

2 fragmentos:

“Apesar da febre, que despontava, o cavaleiro começava a coordenar suas ideias, e as expressões do escravo, e os serviços que lhe prestara, tocaram-lhe o mais fundo do coração. É que em seu coração ardiam sentimentos tão nobres e generosos como os que animavam a alma do jovem negro: por isso, num transporte de íntima e generosa gratidão, o mancebo, arrancando a luva que lhe calçava a destra, estendeu a mão ao homem que o salvara. Mas este, confundido e perplexo, religiosamente ajoelhando, tomou respeitoso e reconhecido essa alva mão, que o mais elevado requinte de delicadeza lhe oferecia, e com humildade tocante extasiado beijou-a”.

“E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos e puros como a sua alma. Era infeliz, mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista”.

Túlio é virtuoso porque é dócil, não há nenhuma ação dele ou que potencialmente se anuncie nele que sirva de engate a uma ruptura com a cadeia lógica da escravidão, não só econômica.

Os próprios afetos e seus enquadramentos são eles mesmos parte da manutenção desta cadeia, as produções de subjetividade que a narradora manipula é branca, patriarcal e escravocrata.

O mundo sem Fernando P. e “gerido” por Tancredo seria tão patriarcal e racista como o do comendador.

Por isso, discordo de Eduardo Assis Duarte quando diz, no posfácio da obra, que o livro “aborda a escravidão a partir do ponto de vista do outro” e faz do negro “parâmetro de elevação moral”.

A escravidão não dá a base das estruturas de sentimento dos personagens e a elevação moral do negro nada mais é que a manutenção da ordem do capital branco e escravocrata, representado menos por Fernando P., o comendador, um personagem inverossímil e delirante, romântico num sentido excessivamente literário, e mais por Tancredo e sua “cordial” fraternidade.

A literatura romântica, ou a instituição discursiva dita literária na primeira metade do 19 se torna assim a resolução imaginária pros conflitos que envolvem essas relações e nivela a todos num mundo em cuja harmonia raça e trabalho não são pertinentes.

P.S.: Uma comparação, sobrancelha a sobrancelha, do dócil Túlio com o violento “Simeão, o crioulo”, a primeira das três novelas abertamente racistas de “Vítimas algozes” de Joaquim Manoel de Macedo, há de nos mostrar o controle que ambos exercem sobre o imaginário da escravidão e dos muitos devires-negros no período, cada um a sua maneira, lógico.

2. “A preta Susana” e os objetos dinâmicos

Quem leu “Visões da liberdade”, de Sidney Chalhub, “Onda negra medo branco: o negro no imaginário das elites”, de Celia Maria Marinho de Azevedo, ou “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves não pode se contentar com os objetos imediatos da narrativa principal de “Úrsula”.

Em termos semióticos: os objetos imediatos de “Úrsula” não podem fugir dos objetos dinâmicos do contexto escravo, múltiplo, plural, conflituoso e que esses grandes livros dão a ver.

Se o objeto imediato é o referente, aquilo para o qual o signo aponta e que só pode ser vislumbrado no próprio signo, o objeto dinâmico é o próprio real, o real e sua irredutibilidade.

A importância do livro está em trazer, enquanto virtualidade, os devires-negros que a narrativa principal torna não pertinentes. Eles se imiscuem, inegociáveis e aberrantes, tagarelas. São esses devires-negros ao mesmo temp0 bloqueados e virtualizados que tornam o livro inverossímil demais e esse é seu maior mérito.

O capítulo IX, intitulado “A preta Susana”, é o exemplo maior destes aberrantes que se imiscuem pelas bordas da narrativa principal dos protagonistas.

Nele, tudo é diferente, o ritmo, o estilo, a escrita, dominantemente oral, a visão do contexto escravo.

Ao receber de Túlio a notícia de sua partida com Tancredo, ela profere:

“Pouco poderei demorar-me neste mundo. Meu filho, acho bom que não te vás. Que te adianta trocares um cativeiro por outro! E sabes tu se aí o encontrarás melhor? Olha, chamar-te-ão, talvez, ingrato, e eu não terei uma palavra para defender-te”.

A preta Susana, com sua radical singularidade, coloca um impasse, um impróprio, um engodo, na trama sem conflito político que constitui a base da narrativa. Susana não deixa a narrativa seguir sem colocar da tradição, o trauma.

É com ela e só com ela que o mundo do trabalho aparece, é ela que faz o enlace entre trabalho e produção de subjetividade:

“Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e o amendoim eram em abundância nas nossas roças. Era um destes dias em que a natureza parece entregar-se toda a brandos folgares, era uma manhã risonha, e bela, como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso enorme no coração. Sim, eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a primeira vez que me afligia tão incompreensível pesar. Minha filha sorria-se para mim, era ela gentilzinha, e em sua inocência semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah! Nunca mais devia eu vê-la…”

É ela que pluraliza os objetos imediatos do signo nos dando conta de algo mais, algo além, que está fora do que a narrativa nos conta, mas um fora definidor, um fora fundamento, resultado e matriz de todas as relações, capaz de dar nova luminosidade ao próprio estatuto dos protagonistas e à ética da narração.

Susana indicia objetos dinâmicos que revelam o caráter ideológico dos objetos imediatos do eixo principal da trama.

No conto dentro do romance, que é este capítulo, Susana temporaliza a experiência, historiciza o relato, traz pra superfície dois temas caros pra toda semiótica negra, ancestralidade e diáspora.

“Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos às praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!”

O mundo de Susana, em outras palavras, os objetos imediatos do signo deste capítulo IX, é em tudo oposto ao objeto dinâmico imaginário do mundo sem conflito em torno de Tancredo, do qual Túlio é apenas apêndice.

Diz sobre Susana a narradora: “uma mulher escrava, e negra como ele: mas boa e compassiva”. Não, a preta Susana não era boa nem compassiva, para além da perspectiva abertamente racista da adversativa, como se negra por hipótese não pudesse ser boa e compassiva; a preta Susana é o nome que se dá ao inominável, ao assomar de uma semiose que o discurso literário romântico e seus correlatos ideológicos não podem conter.

Susana é irrupção destes outros, que só um objeto imediato plural pode vislumbrar como objeto dinâmico.

Claro que a narração retoma logo logo, ainda mesmo no capítulo IX, o controle sobre os objetos imediatos do signo. Mas Susana abre o vislumbre ao produzir seus objetos imediatos a partir de outro lugar, de outro olhar, de outra história.

Encravada entre dois dos capítulos mais românticos do livro, “Luísa B.” e “A mata”, deixa no ar esses incômodos fragmentos de coisas interditas, mas que fazem o signo vibrar mundos do mundo.

“Úrsula” é, por tudo isso, um romance fundador e fundamental. É preciso reescrevê-lo.

Campina Grande, 04 de dezembro de 2020

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Luciano Justino
ObjorC
Writer for

Poeta, escritor, docente e pesquisador do Programa de Pós graduação em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba.