Semiótica negra

Luciano Justino
ObjorC
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6 min readNov 26, 2020

O devir negro da literatura feita no brasil

Uma das mais instigantes questões da crítica literária no brasil é o debate em torno de uma literatura negra, negro-brasileira e/ou afro-brasileira.

O próprio nome tem sido objeto de uma sadia disputa.

Mas não só, há quem, não obstante produzindo uma relevante literatura negra, negro-brasileira e/ou afro-brasileira, recuse terminantemente qualquer adjetivação. Se diz produzir somente literatura, assim, intransitiva.

Parece a esses importantes autores que a alma da literatura não tem cor, que é possível existir uma literatura simplesmente, “um reino encantado da criação pura”?, para retomar aqui o sarcasmo de Pascale Casanova.

Como se William Shakespeare não tivesse sido ele mesmo um investidor da Companhia da Virgínia, uma das mais relevantes empresas do tráfico atlântico?

De saída, recuso qualquer concepção de literatura que não tenha nome. Toda ela é só adjetivo, sendo a ausência dele uma forma tática de escondê-lo por sob o manto de uma abstrata universalidade, que é, no fundo e nada mais, análoga à invisibilidade oportunista de toda branquitude.

O que estou chamando de devir negro na literatura feita no brasil não é só uma posição de autor. É também uma estratégia de leitura.

Ler Mrs Dalloway numa perspectiva de gênero ou modernista não é o mesmo que numa perspectiva negra, sem que nada impeça o imbricamento de todas elas.

Assim como ler o incômodo As vítimas algozes de Joaquim Manuel de Macedo numa perspectiva brasileira é muito diferente de lê-lo numa perspectiva negra.

Por óbvio, não se trata de um debate terminológico, mas político.

Minha ideia é tratar do tema em pelo menos 3 crônicas.

1. Do nome, os devires da crítica

No seu pioneiro Introdução à literatura negra, Zilá Bernd afirma que “o conceito de literatura negra não se atrela nem à cor da pele do autor nem apenas à temática por ele utilizada, mas emerge da própria evidência textual cuja consistência é dada pelo surgimento de um eu enunciador que se quer negro”.

Luiza Lobo, na seção “Literatura afro-brasileira” de seu Crítica sem juízo, abre (Ôba) a dissidência. Ela recusa incluir na rubrica autores não negros: “poderíamos definir literatura afro-brasileira como a produção literária de afrodescendentes que se assumem ideologicamente como tal, utilizando um sujeito de enunciação próprio”.

Em Por um conceito de literatura afro-brasileira, Eduardo de Assis Duarte, que tem feito um trabalho de enorme relevo sobre o tema, provam os 4 volumes que organizou de Literatura e afrodescendência no Brasil, aprofunda o conceito de Luiza Lobo com base em 5 elementos distintivos: 1. uma voz autoral afrodescendente; 2. temas afro-brasileiros; 3. “construções linguísticas marcadas por uma afro-brasilidade”; 4. “um projeto de transitividade discursiva, explícito ou não, com vistas ao universo recepcional”; e 5. “um ponto de vista ou lugar de enunciação política e culturalmente identificado à afrodescendência”.

Ele questiona a operacionalidade do termo literatura negra porque “negro”, entre outros fatores, carrega, desde a Bíblia, os signos de muitas negatividades, inferioridade, morte, pecado, além de conter uma largueza semântica que excede a questão, como na expressão “romance negro”.

Afro-brasileiro, ao contrário, diz ele, “remete ao tenso processo de mescla cultural em curso no Brasil desde a chegada dos primeiros africanos. Processo de hibridização étnica e linguística, religiosa e cultural”.

Mas não é bem isso o que pensa Cuti, no importante e provocador Literatura negro-brasileira (Ôba 2).

Para começar, ele afirma: “um afro-brasileiro ou afro-descendente não é necessariamente um negro-brasileiro”.

Para ele, “afro-brasileiro e afro-descendente são expressões que induzem a discreto retorno à África, afastamento silencioso do âmbito da literatura brasileira para se fazer de sua vertente negra um mero apêndice da literatura africana”.

E conclui: “atrelar a literatura negro-brasileira à literatura africana teria o efeito de referendar o não questionamento da realidade brasileira por esta última”, pois “a literatura africana não combate o racismo brasileiro”.

A crítica de Cuti à continentalização nostálgica de uma certa África, implícita no prefixo ‘afro’, encontra eco no A casa de meu pai, de Kwane A. Appiah, “a razão de a África não poder presumir como dada uma vida cultural, política e intelectual africana é que não existe tal coisa: existe apenas um sem número de tradições, com suas relações complexas — e, com igual frequência, sua falta de qualquer relação — umas com as outras”.

Assim, para Cuti, a literatura negro-brasileira “nasce na e da população negra que se formou fora da África, e de sua experiência no Brasil”. “Os sentimentos mais profundos vividos pelos indivíduos negros são o aporte para a verossimilhança da literatura negro-brasileira”.

Vê-se, nestas posições, que a questão está longe de um paralisante consenso. Demonstra, antes, o potencial crítico do debate, enriquecido por novos aportes vindos da filosofia, da sociologia, da antropologia, da história e do direito.

2. Devém

Parece haver, contudo, dois aspectos definidores em todos eles: uma produção de subjetividade própria, um eu enunciador que se assume enquanto tal; a singularidade desta experiência no contexto brasileiro.

Se devemos evitar qualquer menção a uma África abstrata e totalizante, criação ela mesma do colonialismo, convém recusar ainda mais qualquer totalização da experiência negra numa auto-imagem sempre a mesma, o que implica um único passado, com fatos e artefato recorrentes, mas também utopias de futuro definidas a priori.

Enquanto autoria ou eu enunciador, devir negro é o nome de um inominável, de uma relação sempre em face do heterogêneo e que o faz “algo que não se deixa imobilizar; é despistador, profético, multiforme, do qual, na verdade, não se pode dar versão definitiva, pois é hoje o que não era ontem e será amanhã o que não é hoje”, nas palavras de Alberto Guerreiro Ramos.

A singularidade deste eu enunciador é sua vivência de estruturas de poder e controle que têm na raça e no racismo um de seus fundamentos, mas não se esgota neles.

Ora, é urgente questionar neste contexto o enlace entre raça, nação e literatura.

Se já há vasta crítica e problematização do racismo na literatura produzida no brasil, longe está de haver o movimento análogo no questionamento de sua vinculação, por assim dizer, “nacional”.

A nação brasileira (vejam vocês que locução) é uma invenção e um fundamento da colonialidade do poder, para lembrar Anibal Quijano. Uma identidade imaginária construída pelo colonialismo em seu enlace com o racismo, cujas estruturas profundas permanecem entre nós, sempre se reconfigurando para manter os mesmos privilégios dos mesmos.

O reprocessamento e a invenção ininterrupta de memórias, sem dúvida um dos grandes méritos desta literatura, são uma crítica permanente da — nossa — história.

A memória, inclusive a do futuro, é o lugar do cuidado, do cuidado com a ideologia da unidade de uma história de cartas dadas “em branco”, com seu temário, com seus acontecimentos e dimensões de tempo, com suas produções de subjetividades vicárias.

Por isso, não existem temas negros, geralmente os mesmos da história oficial da nação. Todos nos importam. Onde estava o Queiroz dá um ótimo romance, negro. Os lucros dos bancos nem se fala.

Assim, devemos fazer com o devir negro da literatura feita no brasil operação análoga a que Haroldo de Campos fez com Portugal nO sequestro do barroco…., pois seu lugar é o de uma história aberta e vertiginosa para além das identidades nacionalizantes, cuja relação com a chamada literatura brasileira só pode ser paradoxal, não pressuposta, impertinente.

A nação é aquilo contra a qual o devir negro age, porque tem como princípio, para usar as palavras de Lélia Gonzalez e seu conceito de amefricanidade, “ultrapassar as limitações territorial, linguístico e ideológico”, incorporando “todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas)”, e não pode deixar o edifício da nação intacto.

Se o brasil é um fa(R)do absolutamente inegociável, o devir negro da literatura feita no brasil, negra, afro-descendente e/ou negro-brasileira, é a própria fissura.

Campina grande, 26 de novembro de 2020

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Luciano Justino
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Poeta, escritor, docente e pesquisador do Programa de Pós graduação em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba.