ObjorC Entrevista

Uirá Machado

Editor do caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo

Equipe ObjorC
ObjorC

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Capas do caderno Ilustríssima

“O jornalismo cultural precisa entender o que é a cultura brasileira”

Em visita à Universidade Estadual da Paraíba para divulgar a nova edição do Manual de Redação da Folha de S. Paulo, Uirá Machado, editor do caderno Ilustríssima, compartilhou com a equipe do ObjorC sua experiência com o jornalismo cultural e as características da produção semanal de um caderno dedicado ao debate sobre cultura e comportamento. Entre os diversos aspectos abordados ao longo da entrevista, ganham destaque as nuances em torno do jornalismo cultural, além de um panorama sobre o uso de novos formatos para a produção de conteúdo e as estratégias de abrangência editorial da Folha de S. Paulo frente ao mercado do jornalismo em suas perspectivas. Também aborda a questão da diversidade cultural brasileira na perspectiva da Folha de S. Paulo, que se reflete nos dilemas, desafios e limites enfrentados por um veículo de circulação nacional no entendimento da cultura brasileira em seu aspecto múltiplo e diverso.

Bacharel em Direito e em Filosofia Uirá Machado já foi editor do caderno ‘Opinião’ e repórter da editoria ‘Poder’ na Folha

ObjorC - A Folha atualmente conta com dois cadernos voltados para cultura. Quais as principais diferenças e aproximações de abordagem entre a Ilustrada e a Ilustríssima?

Uirá Machado - A Folha tem hoje a Ilustríssima, a Ilustrada, a Revista Serafina, tem o Guia da Folha que é cultural, tem a Revista São Paulo que não deixa de ser de cultura e o F5 que não tem versão impressa, mas que cobre celebridades. Então, temos pelo menos seis canais diferentes de reportagens sobre o mundo cultural. Isso mostra claramente que a Folha dá uma importância muito grande ao tema e que dá uma importância maior do que qualquer outro veículo, pelo menos quando se fala dos grandes veículos.

A divisão interna da Folha ficou da seguinte maneira: Ilustrada, Guia, Revista e F5 estão dentro de um mesmo guarda-chuva que é o núcleo de Cultura, a Ilustríssima está separada e a Revista Serafina está separada. Procuramos manter algum contato obviamente, não podemos bater cabeça, temos que saber o que cada um dos cadernos está fazendo, mas cada produto desses que eu mencionei tem a sua proposta específica.

O F5 tem uma proposta específica de fazer a cobertura de celebridades, ou subcelebridades, e a Ilustríssima estaria em um polo oposto que é fazer a cobertura cultural mais aprofundada. Entre esses dois campos você tem os demais produtos do jornal. Eu acho que isso só vem a acrescentar, favorece que leitores com interesses culturais variados consigam encontrar na Folha um produto adequado ao seu gosto.

ObjorC - Quais os desafios contemporâneos para a produção do jornalismo cultural no Brasil?

Uirá Machado - Acho que tem uma série de desafios, mas o maior é um desafio que não é contemporâneo, é um desafio que sempre existiu. O jornalismo cultural precisa entender o que é a cultura brasileira. É um país muito grande e a gente com frequência imagina que a cultura está representada pelo mainstream ou por o que a academia ou uma certa elite reconhece como cultura, quando na verdade a cultura é muito mais diversificada. Acho que o maior desafio é entender o que, de fato, são as expressões da cultura brasileira que merecem ter a atenção do jornalismo cultural.

ObjorC - Como você avalia a responsabilidade profissional do jornalista que se dedica à cobertura cultural?

Uirá Machado - O jornalista cultural tem uma facilidade e uma dificuldade. A facilidade é que ele lida com uma área muito mais flexível e muito menos polêmica do que o jornalista que cobre política ou economia, por exemplo, que são campos de um jornalismo mais “duro”, por assim dizer. A responsabilidade desses jornalistas talvez seja mais imediata. No caso do jornalismo cultural há uma flexibilidade maior, mas acho que a responsabilidade do jornalista cultural existe na medida em que, se for bem feito, esse jornalismo vai ditar tendências, vai ditar modas, vai ditar comportamentos e ele vai dizer o que é bom e o que é ruim, o que merece ser levado em consideração e o que não merece. Mas como mencionei anteriormente, o Brasil é um país muito grande, é cada vez mais difícil acertar qual é a cultura que merece ser destacada no jornal.

ObjorC - De que forma o jornalismo cultural pode contribuir com um recorte mais fiel da diversidade cultural brasileira?

Uirá Machado - Eu posso te dar um exemplo: quando morreu aquele cantor sertanejo, Cristiano Araújo, a Folha deu, a princípio, uma notícia pequena porque não estava no radar da cobertura jornalística cultural da Folha que ele era um cantor de tamanha penetração no Brasil. Então, essa é uma dificuldade que a mídia tem, e que fica bem representada nesse caso. Eu acho que o jornalismo cultural deveria sim fazer de tudo para registrar a diversidade brasileira, agora tem uma dificuldade.

No caso específico da Folha, por exemplo, a empresa tem uma posição contra cotas, contra qualquer reserva de mercado em qualquer área que seja. Então, ao mesmo tempo em que o jornalismo cultural tem a obrigação de estar antenado com as tendências que de fato são representativas de segmentos importantes da sociedade, ele não pode fazer isso apenas para preencher algumas cotas ali, para dizer que tem.

Não é que vai ter manifestação cultural de cada estado brasileiro, por exemplo. Não necessariamente cada estado brasileiro tem do ponto de vista de um jornal que vive lá em São Paulo a penetração suficiente para ser a capa do caderno. Existe uma dificuldade muito grande em tentar perceber num movimento mais amplo da cultura o que de fato é uma tendência mais permanente e o que é mais passageiro.

No especial Música muito popular brasileira a Ilustríssima discute hábitos de consumo de música no YouTube

Eu procuro na Ilustríssima me manter antenado com o ambiente acadêmico, com a produção das mais diversas universidades, estar em contato com as mais diversas editoras, para saber o que elas estão publicando, para ter uma noção do que está acontecendo de maneira mais ampla e não só no meu universo mais imediato. A mesma coisa a gente tenta fazer com as manifestações culturais, tentando entender o que está acontecendo, mas lamentavelmente a gente não consegue dar conta da realidade, então acabamos fazendo recortes que são recortes parciais.

O que gente tenta fazer para combater isso (a falta de diversidade) é procurar, se esforçar para conhecer um maior número possível de manifestações e se policiar para não cair sempre no mesmo tipo de cobertura. É mais fácil para um caderno semanal como é a Ilustríssima, mais difícil para um caderno diário, mas eu procuro variar o tema que está na capa do caderno, por exemplo. Então se eu já publiquei cinema vou tomar um cuidado para dar espaço para o teatro, para música, para literatura, para outros temas de debate que eu julgo importantes, notícias falsas, política, economia. Então eu vou tentando me obrigar a manter uma diversidade que continuará sendo parcial, continuará sendo um recorte, mas eu procuro me obrigar a estar em contato com uma diversidade maior de manifestações.

ObjorC - As reuniões de equipe também fazem parte desses esforços para diversificar tematicamente a cobertura?

Uirá Machado - Faz parte da cultura da Folha ter reuniões de planejamento e de avaliação, isso é assim há muito tempo e vai continuar sendo assim, inclusive é uma recomendação que está nesse novo manual que a gente acaba de lançar. No caso da Ilustríssima, a equipe é formada por três pessoas, eu e mais duas. Então nós nos sentamos ali perto e nossas reuniões na verdade são o tempo inteiro, porque a gente está sempre debatendo, mas eu procuro fomentar isso sim.

A gente mantém uma planilha de todos os textos que foram publicados por edição. Eu estou o tempo inteiro olhando essa planilha e o meu planejamento futuro para garantir que nenhuma edição vai perder em diversidade de temas, e para garantir que, ao longo das edições, não exista só uma diversidade de temas, mas dentro dos temas, diversidades de manifestações culturais.

Processo de escolha do conteúdo da Ilustríssima

Então, eu tento, de alguma maneira, garantir que se falamos de cinema clássico, vamos falar também de cinema mais pop, de séries, de documentários… Se falamos de teatro vou falar de teatro de longa duração e de teatro pop. Já falamos de funk, de música erudita, de balé, da dança do Nordeste, de dança de algum estado específico do Nordeste. Para falar de maracatu, do carnaval ou de alguma dança do Rio Grande do Sul, buscamos as efemérides para dar algum gancho específico. Procuramos ter esse tipo de diversidade aliando isso aos critérios mais amplos da Ilustríssima, quais textos vão render alguma reflexão, quais textos vão render uma análise de fôlego.

ObjorC - Sobre os critérios de seleção, como é escolhido o conteúdo que compõe uma edição da Ilustríssima?

Uirá Machado - A Ilustríssima é um caderno peculiar porque passou por algumas fases. Quando foi criado, o editor era uma pessoa muito voltada para a área de literatura, então foi um caderno que no nascimento publicava muitas resenhas, com uma atenção muito grande para esse segmento da cultura que é a literatura. Depois, foi passando por algumas transformações. O editor que me antecedeu procurou deixar o caderno com mais temperatura jornalística. No sentido de que a Ilustríssima se voltou, também, para alguns debates importantes fora do campo cultural, principalmente na área econômica.

Quando eu assumi a Ilustríssima, a orientação da direção do jornal foi a de que eu levasse isso adiante. Então hoje eu entendo a Ilustríssima não como um caderno de cultura em sentido estrito, isso é a Ilustrada, mas como um caderno de cultura e debates. Por isso, com muita frequência, as capas da Ilustríssima não são da área cultural em sentido estrito, e quase todos os números, se não todos os números, sempre tem pelo menos um texto que não é da área cultural.

Quando a capa é sobre cinema, teatro, literatura, música, sempre um texto do caderno não vai ser da área cultural. A minha percepção do caderno é a de que ele precisa ser um caderno influente, tem que pautar debates e trazer ideias novas para os seus leitores. Já trouxemos uma reportagem sobre como funciona a engrenagem das notícias falsas no Brasil.

Matéria de capa sobre o fenômeno das notícias falsas. Ilustrações feitas pelo artista Zé Otávio

Foi uma reportagem de cultura em sentido amplo, porque de alguma maneira as notícias falsas estão embrenhadas na cultura brasileira hoje. Já o último número da Ilustríssima foi sobre 2001Uma Odisséia no Espaço, que é um filme excepcional, inclusive do ponto de vista filosófico, mas não deixa de ser uma discussão sobre cinema.

ObjorC - Como você enxerga a contribuição dos veículos impressos como a Folha enquanto espaço de discussão sobre cultura?

Uirá Machado - Eu acho que dá para fazer jornalismo cultural de longo prazo em qualquer plataforma, não é obrigatório que seja no impresso. A gente ainda fica um pouco vinculado à ideia de que a internet é sempre o imediato, mas não precisa ser assim. Você pode, tranquilamente, ter um site que publique textos que demandem uma elaboração mais longa e que funcionam para a internet apenas, não tem nenhum problema em relação a isso.

Em qualquer plataforma é fundamental que existam canais para esse tipo de material mais aprofundado, mais reflexivo, seja na área cultural em sentido estrito, seja na área cultural em sentido amplo. Isso precisa existir e não pode morrer de jeito nenhum, se não a gente vai, cada vez mais, afastar o leitor do conteúdo que está sendo pensando mais próximo da academia, por exemplo. Vão se tornar dois universos muito separados, e só os acadêmicos vão discutir textos mais longos e o leitor que não é interessado no ambiente da universidade vai ficar restrito às pílulas de informação. Acho que a gente não pode cair nisso, precisamos de alguma maneira preservar esse jornalismo de fôlego.

ObjorC - Que caminhos de inovação estão pautando o futuro do jornalismo cultural?

Uirá Machado - Acho que temos muito ainda a desenvolver no campo da linguagem. Vejo algumas iniciativas interessantes, mas são poucas que trazem reportagens em outros formatos. Agora a Ilustríssima lançou um podcast quinzenal, é um novo formato, é uma conversa que eu faço com o autor de um livro, então é um jeito diferente de abordar o livro, porque não é uma entrevista convencional, é uma oportunidade para dar espaço a um livro acadêmico.

No segundo episódio do podcast da Ilustríssima Conversa o convidado foi o autor Francisco Bosco

A gente sempre esbarra numa dificuldade técnica: criar animações, por exemplo, custa mais dinheiro; fazer vídeos não é tão fácil; infográficos demandam uma apuração mais difícil e um artista capaz de elaborar um infográfico que possa comunicar… Mas, acredito que temos muito a evoluir no campo da linguagem e o jornalismo de dados é a fronteira mais imediata que precisa ser aprofundada. Estamos treinando novas pessoas nessa área. Precisamos, cada vez mais, de jornalistas capazes de colher dados na internet e transformá-los em informação digerida para o leitor.

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