Forte e sem açúcar

André Petrini
Obscenidade Digital
3 min readJan 21, 2013

Já fazia muito tempo desde que Dona Alice pedira, com a voz baixa e suave, um cafezinho à aniversariante e ainda não o recebera. Pessoas sentaram-se à mesa com ela, comeram, beberam, experimentaram as famosas sobremesas da anfitriã, levantaram-se, outra rodada de pessoas seguiu o mesmo fluxo, e Alice continuava com a sensação de garganta seca e cabeça pesada. É como quando você acorda esperando que o dia seja maravilhoso e ele não é, simplesmente porque você esperava que fosse. Parte das coisas boas da vida está no inesperado e, a essa altura, nem o melhor café do mundo vai superar o amargor daquela demora. Depois de tantas artrites, Alice achava uma falta de caridade fazer um ser humano passar tanto tempo esperando por um simples café. Preto, forte e sem açúcar, como havia sido a vida inteira.

É um fato bem conhecido para essa senhora, de que quando se chega a certa idade e ela fica aparente em sua pessoa, o velho vira também um ponto turístico, tal qual as pirâmides, as torres e os monumentos. As pessoas olham, admiram e ficam se perguntando como aquilo, depois de tantos anos, continua de pé. Alice, que já não se levanta com a mesma facilidade de sua juventude, aproveita a curiosidade alheia para lembrar e se felicitar com a própria vida, como quem relê continuamente o mesmo livro porque já não há mais tempo para começar um novo.

- 97 anos. Eu acho que é isso. Deve ser 96 ou 97… Não lembro se já fiz aniversário esse ano. Isso, foi 1915. Você é bom pra fazer conta de cabeça, heim? Sabia que eu era professora? Me aposentei aos 43, sem nunca ter uma falta e nenhum aluno reprovado. Depois eu fui dar aula de piano, pra ocupar a cabeça, sabe? Mas foi aí que eu me encontrei. Passava o dia inteiro ouvindo e tocando os meus queridinhos. Você conhece Strauss? Ahhh, então eu vou pedir pro meu filho gravar um disco pra você. É maravilhoso. Eu ouço todo dia, antes das minhas orações. Meu filho? Tem 55, o meu menino. Só tive um, sabe? Pra poder educar direito, e ensinar tudo com bastante cuidado. Agora eu tô morando com ele, porque ele é medico e insistiu que era pra poder cuidar de mim. Assim é bom, né? Ainda tenho umas coisas pra ensinar pra ele, e posso ficar perto dos pequenos. Ele é tão atrapalhado, que é capaz de qualquer dia fazer miojo na panela de pressão hahaha. Ainda bem que tem o moço que cozinha pra gente lá. E o meu café, heim? Ainda não trouxeram. A sua esposa está aqui? Ela não é ciumenta? Ah, que bom… tem muita mulher ciumenta hoje em dia. Sabe, eu fui casada por 52 anos, 1 mês, 14 dias, 6 horas e 28 minutos e desejo que vocês sejam tão felizes quanto eu fui. É fácil, viu? Só precisa ter paciência, porque ninguém é perfeito. E estar com alguém que goste de ler. Você gosta de ler? Que bom! Eu conheci o meu velhinho numa praça, num dia lindo e ensolarado. Como todo bom romance, né? Eu estava lendo Dom Quixote quando ele sentou ao meu lado e falou a minha parte preferida do livro: “Quando se sonha sozinho é apenas um sonho. Quando se sonha juntos é o começo da realidade”. E aí eu fiquei toda apaixonada, porque quando você encontra alguém que gosta do mesmo livro que você, é como se tivesse reencontrado um amigo de infância depois de muito tempo. Por mais que ele não saiba da sua vida hoje, vocês continuam compartilhando uma história. E depois disso eu compartilhei uma vida inteira com aquele homem que fez a minha história ser um sonho. Ahhh, chegou meu cafezinho! Nossa, não deu nem uma xícara! É por isso que eu te disse, moço: só precisa ter paciência, porque senão você nunca chega no felizes para sempre. E se é pra parar o livro no meio, é melhor nem começar.

André Petrini
Foto: RobW_ / cc

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