Lágrimas no Paraíso

André Petrini
Obscenidade Digital
6 min readJul 4, 2013

Poucas coisas poderiam estragar o paraíso de Maragogi, com suas águas em tons de verde-olhos-de-top-model, piscinas naturais com peixes de cores que parecem só existir ali, e o céu incansavelmente azul. É abduzida por este cenário que Cana Chorona vai morrendo sua vida, vertida em lágrimas a se arrastar pelas areias claras, implorando por um copo de bebida, um pedaço de peixe ou um afago para seu coração.

Chorona desde sempre, Dolores passou a ser a Cana há 11 anos, junto com a conta que abrira em todos os três botecos do vilarejo. Antes disso, trabalhava na vila dos pescadores consertando as redes que prendiam nos recifes ou fazendo artesanato que seria levado para venda na capital, à época ainda pouco desenvolvida no turismo. Seu marido levantava-se antes do sol e partia em uma pequena jangada, que após os dias de tempestade não comportava toda a sua sorte. Ganhara a embarcação aos 14 anos, como presente de seu pai. Se na época representava a liberdade contra o marasmo das areias de fogo, com o tempo passou a ser sua independência das cooperativas e locadoras de barcos que ficavam com grande parte do lucro dos pescadores. Após a desvalorização e o pescado valendo menos que chuveiro elétrico no deserto, o barquinho era suficiente para garantir o sustento sem conforto de sua esposa e filho. “O amor é todo luxo que nós precisa”, dizia afagando a cabeça do filho ainda novo, que não entendia por que eles não poderiam ter um ventilador igual a todas as casas da redondeza, para aliviar o calor de todo dia que chega e rouba a disposição de viver.

Foi na noite anterior aos seus 13 anos que o filho decidiu aproveitar a tempestade que se autoanunciava, para “pescar mais peixes do que tem no mar”, e surpreender a todos com o tamanho da sua ventura ainda tão novo, e que, com a ajuda de Iemanjá, haveria de ser suficiente para comprar um ventilador para a casa e um vestido de missa novo para sua mãe. Saiu ainda noite, com as estrelas encobertas, a lua tímida e os pássaros quietos. O vento agitava os coqueiros e bagunçava ainda mais seu cabelo opaco, mas jogava a água em sua face, molhando seus lábios rachados e revelando a sensação de aventura que bem conhecia de contos dos velhos pescadores.

O dia amanheceu cinza e por todos os cantos via-se gente arrumando os estragos da chuva nas casas e armazéns da região. A pequena igreja ficara totalmente destelhada, e a chuva acabou com os bancos recém adquiridos pelo Padre A., que todos começavam dizer, já contabilizava decepções demais na vida para ter que aguentar mais essa. Os moradores corriam em suas casas na tentativa de salvar uma cadeira aqui, uma muda de roupa lá, e foi por volta do meio-dia que Dolores percebeu um estranho silêncio pela vila, que embora aparentasse um cenário de guerra, estava manco de uma voz aguda de sotaque arrastado, que vinha dia após dia às 11:40 lhe perguntar se teriam pirão para acompanhar no almoço. Olhou pela porta o grupo de meninos que brincava na areia, mas eles não tinham visto seu filho naquela manhã. Saiu com passos cada vez mais apertados perguntando a quem encontrasse pelo caminho, mas a resposta era sempre a mesma. Voltando para casa, já num misto de desesperança e inquietude, resolveu passar pelo cais torcendo para perder a viagem, pois sabia muito bem que se encontrasse o que buscava, todo o resto estaria perdido. Seu coração de mãe desesperada lhe sufocava o peito a cada pulsada, como se tentasse fugir garganta acima e correr em busca do filho na frente do corpo, que lutava para arrastar os anos de má postura e noites na rede, de modo que Dolores teve que parar algumas vezes para respirar e só então continuar aquela maratona de 700 metros entre sua casa e o cais.

Quando chegou ao local, as ondas ora rebatiam com brutalidade, ora voltavam a amaciar as areias com cuidado materno. O cenário também era de caos, e vários barcos estavam aos pedaços. Pescadores se desesperavam pela já certa perda que teriam na temporada, pois ainda que conseguissem reformar as embarcações, não seria feito a tempo de abastecer a cidade durante as abundantes cheias. Mas embora a maioria dos barcos estivesse despedaçado, ainda era possível distinguir cada um deles e fazer a contagem a que Dolores se apressou a fazer, sofrendo um tanto a mais a cada barco que encontrava e não distinguia as letras de seu nome na lateral, sinal daquela singela homenagem que seu marido lhe havia feito. Dois barcos a menos, e não havia recontagem que corrigisse a falta. Além do “Dolores da Saudade”, também faltava o barco do sr. H., um homem de meia idade que surgiu no povoado enquanto caminhava sem rumo. Falava pouco, mas era de bons modos, de forma que foi prontamente acolhido pelos outros pescadores. H. sumiu naquela noite de tempestade com seu barco, e só foi visto novamente 16 anos e alguns meses depois, quando reapareceu na cidade com o mesmo barco que todos lembravam (tirando por uma falha na pintura aqui e outra lá, como se é de se esperar depois de tanto tempo), contando uma história para justificar seu sumiço que poucos acreditaram, mas ninguém se sentiu no direito de questionar.

Nos dias seguintes ao temporal, partes do “Dolores da Saudade” foram aparecendo pelo litoral de Maceió e as notícias chegavam a Dolores como flagelos que descascam a pele e corroem a carne. “E o meu filhinho? Meu menino tava junto? Vocês deram um pirão pra ele? Deve de tá com fome, tadinho do meu menino. Ele tá bem? Cadê ele, ‘cê já vai trazer?” E corria olhar para fora da casa, a verificar se lhe esperava ali, como a fazer uma surpresa daquelas que aumenta a expectativa pra aumentar o sabor, mas ele não estava, e não esteve nos vários meses seguintes, aos quais bastava que alguém passasse perto de sua casa para que Dolores corresse derramada em lágrimas ao abraço fantasma do filho semi-vivo que sumia à primeira vista.

Os amigos, preocupados com a situação da mãe que se recusava a acreditar no destino do filho, providenciaram uma despedida simbólica, com flores e uma muda de roupa do garoto sobre uma jangada que seria entregue a Iemanjá, assim como o menino havia feito com a própria vida. Na noite depois da cerimônia, Dolores saiu correndo pelas areias e por toda parte se ouviam os uivos de sua tristeza, que se arrastou por todo o litoral e em outros estados também foi se conhecendo sua história. A caminhada durou vários meses sem nenhuma notícia para o marido, que se abatera em uma depressão mortal com a certeza de ter também perdido a esposa, e quando ela voltou para casa já não era mais a pessoa a quem amara. Os meses de caminhada pelo litoral a gritar pelo nome do filho sem se alimentar, tomando cachaça para matar a sede do corpo e do coração levaram consigo o olhar de esperança, a pele brilhante e os cabelos negros.

Os anos passaram sem que Cana Chorona percebesse. Morria seus dias andando sem rumo pelas praias, e não raro seu marido era chamado em cidades próximas para buscar a esposa caída, resmungando, babando, espantando os turistas que “estavam lá para curtir o paraíso e não para lembrar que a vida tem dessas”. Estes mesmos turistas que não eram capazes de enxergar além daquela imagem decadente, e nem teriam a obrigação de fazê-lo, alguns dirão. Turistas que, se entre um gole e outro de suas caipirinhas atribuem aquele descontrole à fraqueza humana, ao sistema político, ao desemprego, aos capitalistas, à peguiça, tão logo alguém venha tirá-la dali, voltam à paz de suas férias. E nunca, nestes 11 anos de sua morte lenta, houve sequer um passante que a visse e pudesse imaginar o sofrimento que lhe revirava o estômago como tubarões destraçalhando o pescado no oceano a lhe inabilitar à ação. Em tempo algum houve sequer uma pessoa que pudesse ver aquela imagem e imaginar que um filho, ao morrer, leva junto a vida de sua mãe.

escrito por André Petrini.
Foto: ShotHotspot.com / cc

--

--